Se bem que dizer que um qualquer século o foi “cheio de contradições”
seja uma frase que poderia ser aplicada praticamente a toda a história humana,
o olhar retrospectivo que parte do século XXI encontrará no XIX o cadinho de
muitas das contradições que nós próprios herdámos (ainda filhos do XX) e que,
por isso, são mais ressoantes nas nossas experiências. Apesar de todo o livro,
começando pelo título, parecer estar concentrado numa só pessoa, a matéria de Kardec é precisamente o estranho, fluido
e etéreo caldo que foi sendo formado pelas forças culturais do século XIX.
É possível que a figura de Allan Kardec seja relativamente secundária
na Europa - mesmo no interior dos interessados pelos assuntos do ocultismo,
dominadas por outros nomes como Blavatsky ou Crowley – mas no Brasil é um nome
não só de grande importância como extremamente influente ainda nos nossos dias,
o que se poderá explicar pelo substrato sincrético do imaginário e da
sensibilidade religiosa-espiritual desse país (com todo o perigo de generalização
e idiotia que uma afirmação destas pode sofrer). As ligações ao Brasil são
tocadas não só pela menção, na introdução de Marcel Souto Mayor, a “Chico
Xavier”, ou Francisco de Paula Cândido, que é visto como um herdeiro e
proponente das lições de Kardec no Brasil (senão mesmo sua “encarnação”), como
na aparição desta figura numa das cenas “visionárias” do livro (a elas
voltaremos). Logo, o surgimento de um livro dedicado - não é propriamente uma biografia - a Kardec, ou melhor ainda, à
“transfiguração” do homem da ciência Hippolyte Denizard Rivail em o pai do
espiritismo, terá uma recepção significativa naquele país.
Outro aspecto surpreendente é a estranha acalmia do projecto. Isto é, Kardec abdica totalmente de fazer explorações melodramáticas e histriónicas dos eventos retratados. Apesar de tudo – isto é, a matéria fantástica e espiritual – é uma obra sossegada. Até mesmo no que diz respeito às imagens, desenhos tecidos na cor tranquila da grafite, moldada e dúctil. Podemos dizer termos três esferas de representação neste livro: primo, o “mundo real”, digamos assim, ou todos os momentos em que vemos cenas que se desenrolam no mundo tangível e consensual que habitamos, secundo, as cenas “oníricas” ou “visionárias” e que corresponderão ora à vida de um druida gaulês - o original Kardec de que Rivail seria uma encarnação e de quem adoptaria o nome – e, tertio, todas aquelas cenas em que vemos o mundo dos espíritos em contacto com o mundo dos vivos, desde as séances das mesas até aos fenómenos estranhos na ilha de Reunião (de onde parte um outro grupo de personagens secundários mais importantes, os Baudin, e que faz adivinhar uma história cultural, multicultural mesmo, belíssima) e até na casa de Rivail… Em relação à primeira, digamos que é ela que compõe a maioria do livro, ou pelo menos a sua primeira metade, que retrata a vida de Rivail antes do contacto, e a sua “aprendizagem”. Quanto aos momentos de “entrada perpendicular” dos espíritos no nosso mundo, mesmo quando há registos visuais de intervenção sobrenatural, os autores têm uma predilecção em mostrar as reacções das personagens à volta, e a capacidade de Rosa em dar a ver com rigor as suas expressões leva-nos a ver-se formando o espanto, o medo, a angústia da dúvida, a apreensão estúpida, o fascínio acrítico e a cuidadosa aproximação de todas elas. Com Rivail, como é natural, o principal visado da focalização contínua.
A esfera “visionária” é usualmente introduzida ou marcada por uma qualquer estratégia visual diferenciadora: ora o fundo da página é a preto, e não a branco, ou a figuração das personagens passa a ser feita a linhas mais simples, mas sem a textura de grafite dos ambientes (já para não falar da temática, que remete à invasão romana da Gália, à derrota de Vercingetórix, e as actividades do druida). Esses são os casos das visões de Rivail, apesar de não existir qualquer modo indiscutível de deixar isso claro (através de, por exemplo, uma focalização no rosto do protagonista antes ou depois dessas cenas, ou vendo-o a acordar: porém, a segunda cena é seguida por uma das Baudin a ser acordada por Rivail, o que poderá “anexar” essa visão à mulher). O importante, porém, é que esse acesso é narrativamente autónomo e, por isso, obriga à inferência do leitor, que sempre pode ser ambivalente.
As páginas finais são reservadas para a transformação derradeira de Rivail em Kardec, tratando-se mesmo de um clímax elucidativo, mas sempre fazendo o livro se distanciar das mais habituais expectativas contemporâneas de sword & sorcery. A esmagadora maioria do livro segue uma composição de página convencional, sólida e sóbria, oscilando-se entre construções regulares ou “retóricas”, com pequenos e expressivos desvios. Mas neste último bloco, as separações habituais das vinhetas diluem-se num pano contínuo de negros, marcando talvez a final fusão entre os mundos. Estas últimas páginas são duplas e mostram rostos ou cenas que compõem a história do final do século XIX e o busílis do século XX (de certa forma é um cliché, mas recordemo-nos que é esse precisamente o âmago do livro, que é dar a ver em que medida as tais contradições do século XIX são o cadinho das do XX), passando por Nietzsche, Freud, Einstein, Hitler, Gandhi, os Beatles, Borges, Chaplin, Hawking… A matéria verbal, que é a escrita ditada a Baudin pelo espírito Zéfiro, Zéphyr ou “Verdade”, e que se dirige a Rivail, ganha uma autonomia própria, plástica, que vai obrigando a inverter as páginas, até terminarmos “de cabeça para baixo”, com o druida aparecendo uma última vez, sob os auspícios do símbolo dito “triquetra”, e finalmente virando para a última página, surgindo Rivail rebaptizado como Kardec. Um livro que se termina, fisicamente, por ler de cabeça para baixo é um estratagema material, físico, e relativamente inusitado para dar conta da inversão na vida de Rivail que acabámos de testemunhar…
A arte de Rodrigo Rosa, do que nos é possível conhecer de obras anteriores, parece ser mutável no interior de uma abordagem naturalista, expressiva, em que se respeitando as formas e proporções anatómicas permite um “intervalo” de expressão da linha, sem jamais chegar a estilizações demasiado vincadas. Neste livro em particular não há trabalho de cor, mas isso não significa que não haja trabalho de volume, densidade, e luminosidade: bem pelo contrário, o domínio da grafite e do pincel, das tramas, texturas, sombras, leva a que se crie uma espécie de contínua ambiência espessa, submersa e nocturna, independentemente dos momentos de dia ou das fontes de luz se representam. A inscrição de Rosa parece-nos ser de toda uma escola norte-americana da banda desenhada, em que a clareza da figuração está em primeiro lugar, mas uma enérgica mais-valia do lápis surge das formas.
Há uma grande diferença entre a experiência do século XIX e a do XX. Uma das noções mais estruturantes e influentes de Walter Benjamin é a de que a modernidade veio trazer uma alteração da consciência, a que ele deu o nome de choque, e que é resultante de todos os sistemas tecnológicos que viriam a determinar a cultura (como pela fotografia e o cinema), a guerra, a indústria (raízes e primeiras consequências das quais se sentem já no século XIX, como provam as discussões neste livro das políticas de profunda transformação urbanística que o Prefet Haussmann obriga Paris a sofrer, e de que modo isso impacta na “psique” social e histórica). Em contraste com essa experiência quebrada, em bocados, estaria a experiência tradicional, com a sua estrutura unificada. Um contínuo. A razão pela qual as experiências de actividades que nos parecem agora suspeitas poderiam ser exploradas ao lado de outras mais austeras, sem que os paradoxos necessariamente levassem à dissolução da relação, mas antes pelo contrário, encontrassem nela a sua energia, é precisamente aquilo que pauta o gesto de Rivail/Kardec, que age como que uma espécie de elo dessas (agora) experiências distanciadas entre si. Para essa noção também concorrem muitas das estratégias visuais do livro, desde vinhetas que se unem “sob” os intervalos, por jogos de olhares entre personagens – Rosa não desenha pupilas, mas sim olhos negros, isolados, mas a expressão humana não se vê diminuída, como antes se verifica uma estranha intensificação desses olhares (e que nos recorda nesse ponto uma certa luminosidade líquida à la Guy Davis) – à própria “luz de grafite” que atravessa a obra.
É, portanto, notório que o livro não seja tanto uma biografia completa de Kardec, tampouco uma investigação sobre os seus “poderes mediúnicos”, mas antes um retrato das condições imediatas desta sua transformação. É claro que a inteligência e equilíbrio de Ferreira e Rosa permite que o livro não possa ser visto nem como um panfleto proselitista das doutrinas fundadas por Kardec nem tampouco um tratado de desmistificação. É um livro que pode, julgamos nós, ser apreciado tanto pelos cépticos como pelos crentes, havendo matéria - apesar da visualização das “visões” - para satisfazer ambos os argumentos possíveis. Até mesmo por leitores que não tenham qualquer interesse, por assim dizer, no tema central e alargado do livro, e somente queiram ler esta história de forma desarticulada com as suas correspondências históricas.
É o contínuo dessas experiências descontínuas, então, que se une, como as mãos dadas dos médiums sobre o tampo da mesa redonda…
2 comentários:
Bela leitura e texto!
Caríssimo Carlos Ferreira, obrigado pela sua nota, e os meus parabéns pelo livro. Espero que possa vir a ler novos livros seus sempre que possível, apesar da dificuldade do trânsito atlântico...
Obrigado e sucesso!
Pedro
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