A dupla Catel Muller e José-Louis Bocquet parece querer construir uma série de biografias em banda desenhada sobre algumas das mulheres que fazem a história alargada e multifacetada do feminismo, entendido como o esforço pela conquista não apenas de direitos legais, mas de respeito, cidadania cultural e social, e espaço de acção pelas mulheres na sociedade moderna ocidental. Na verdade, quer a artista quer o argumentista trabalham nesse sentido noutros títulos com esse intuito, mas o trabalho conjunto - iniciado com Kiki de Montparnasse, dedicado a uma verdadeira salonnière do século XX, de resto, irmanada por esse aspecto à personagem deste novo livro - parece ser mais programático.
A figura deste livro, como já havíamos apontado na abordagem ao de Sfar, é a autora da Declaração dos direitos da mulher e da cidadã, de 1791, decalcada a partir da carta análoga dedicada ao “homem”. Esse documento, aliás, surge na sua íntegra (preâmbulo e os dezassete artigos) no livro, primeiro como documento manuseado pelas personagens, e depois ganhando espaço autónomo no plano de composição (duas páginas), perfeitamente marchetado na matéria visual-narrativa do livro. Uma das premissas do feminismo, ou das várias vagas do feminismo, ou melhor ainda, dos feminismos, é precisamente a de multiplicarem, sucessivamente, a atenção para com as diferenças internas na luta pelo “progresso” das liberdades e direitos dos cidadãos: a primeira diferença seria a da mulher em relação ao homem - o que levaria à conquista do voto, mas apenas no século XX -, mas depois das minorias étnicas, sexuais, políticas, no interior da hegemonia das sociedades. Marie Gouze, mais conhecida pelo seu pseudónimo Olympe de Gouges, pelas suas peças teatrais e affiches, todos quase sempre com contornos polémicos, no verdadeiro sentido da palavra, dedicou a sua vida adulta a duas frentes de batalha: a da conquista dos direitos da mulher, enquanto “cidadã” da nova França republicana, e a dos homens e mulheres, sobretudo negros, que apenas existiam como mercadoria: os escravos. Não estando sozinha nessas batalhas, ainda assim é necessário compreender a raridade e coragem deste gesto no seu século XVIII.
Os autores evitam fórmulas simples de construção desta biografia, sobretudo no que diz respeito à posição, e acção, política assumida por Olympe. Não vemos nenhuma “cena primal” ou “chocante” que a tenha alertado para esta ou aquela realidade, a qual passaria a ser sua missão corrigir. Em vez de uma abordagem psicologizante, tão-somente nos é dado ver a sua educação, o quadro social em que vive, as pessoas com quem vai contactando, as circunstâncias nas quais se vai encontrado e que tanto a vão moldando como a ajudam a moldar o que pode da sua vida, assim como as discussões, descobertas e desvios que lhe são garantidos pela educação, pela leitura, pela escrita, e pelas - exploradas no livro - três vias de exposição do pensamento na esfera pública: as discussões de salão (a cena mais “famosa”, digamos assim, é um diálogo entre Condorcet e Benjamin Franklin sobre a escravatura), a escrita panfletária, mais ou menos anónima e muito respondida, e o teatro, que é outra das paixões e conquistas seguidas pela protagonista.
O livro não é de forma alguma uma abordagem pedagógica e fácil. Na verdade, a leitura dos capítulos curtos - separados por páginas de capítulo mostrando um edifício, uma morada e uma data, relativo às circunstâncias da vida de Olympe correspondentes -, que avançam rapidamente no tempo de cena em cena significativa na vida e/ou carreira intelectual e política de Olympe, é passível apenas de recompensa maior com um conhecimento (sólido, atrevemo-nos a imaginar, na nossa própria ignorância) do enquadramento cultural específico de que trata… Aliás, por esse lado, talvez a estrutura narrativa de Olympe de Gouges não seja a mais fluida e expedita, ao longo das suas quatrocentas páginas, mas esse não é argumento em relação à banda desenhada em si, mas sim em relação ao (este) leitor. Pois o modo de expressão em si permite já que se experimentem todos os graus de elipses culturais e exigência intelectual possíveis. Seja como for, uma vez que a banda desenhada (ainda?) trabalha no interior de uma economia de saberes que a torna muitas vezes factor “de introdução” a muitos temas, o volume é acompanhado de anexos tais como curtas biografias das personagens, uma cronologia e uma bibliografia.
A estratégia dos autores para ir dispensando pequeníssimas informações sobre o quotidiano, os negócios, as ruas, o ambiente e a vida intelectual torna-a num tecido contínuo - a rivalidade entre o “austero Rousseau” e o “epicurista Voltaire” (pg. 53), por exemplo, matiza a era, com Olympe nutrindo um pequeno ódio pelo autor de Candide devido às posições em relação a Jean-Jacques Lefranc, Marquês de Pompignac, que é apontado na obra como seu suposto pai (apesar de jamais o ter assumido publicamente), outra das informações que nutre a vida da protagonista. De resto, a “moderação moral” de Olympe, que a leva mesmo a tentar interceder pela vida de Luís XVI, é, toda ela, rousseauniana, levando à letra as lições da Nova Heloísa em toda a sua vida.
A focalização quase sempre segue a própria Olympe, mas há momentos em que alguma atenção é dada à perspectiva e emoções de outras personagens. Alguns capítulos são curtíssimos e/ou apresentam-se como uma colecção de pranchas singularizadas num pequeno diálogo ou evento, e apenas a sua colação fará emergir o sentido maior, nalguns casos mesmo fazendo-se uma espécie de mini-história (como no caso do nascimento e morte da bebé Julie, ou a escrita, estreia e sucesso da sua peça teatral Le Couvent, ou les vœux forcés). Todavia, como já havíamos debatido anteriormente, o aspecto axial é mesmo a importância desta figura na emergência de um pensamento contrário à situação do seu tempo no que dizia respeito às liberdades das mulheres (quase todas subsumidas às vontades ora dos pais ora dos maridos) e à questão da escravatura, que Olympe tomava a partir da sua perspectiva humanista. Este prisma é crucial. No diálogo entre Condorcet e Franklin que é aqui retratado, não será por acaso que um dos pais-fundadores dos Estados Unidos seja algo cínico quando diz que a sua luta abolicionista seja conduzida “por um ângulo económico…/ Quantos escravos houver que trabalhem sem pagamento, são cidadãos que não gastam o seu pagamento”. Isto dito em 1777, anos depois de ter liberto os seus próprios escravos. É claro que não se procura aqui um simples confronto entre duas posições ou justificações, já que a cena com Franklin se resume a duas páginas, e as relações de Olympe com esta matéria se desdobram em diálogos, relações humanas, as suas primeiras peças teatrais, etc.
De resto, esta é de facto uma questão complexíssima que não poderia ser justificada por uma biografia de uma só pessoa, mesmo que por vezes os factos da rivalidade política que ditam a sorte destas personalidades se vejam baseadas, senão subsumidas, a porfias de carácter artístico e literário. Seja como for, procura-se entender a rede maior das relações na polis, pois afinal de contas, mesmo a ideia do abolicionismo depreende uma posição de poder jurídico de quem o pode fazer, e não da vontade do ser humano escravizado - que muitas vezes não o é, mas mera mercadoria, propriedade, investimento.
Quanto à democratização do papel social da mulher - feita depois da conquista do voto para os actores e os judeus (recordando o que se disse no início, da conquista sempre a passos curtos pelo interior de diferenças)- , a escolha da frase de Olympe de Gouges, retirada da sua Declaração, na contra-capa é avisada: “A mulher nasce livre e vive, no direito, igual ao homem. A mulher tem o direito de subir ao cadafalso; ela deve ter igualmente o direito de subir à Tribuna” (artigos 1 e 10). A escolha é avisada por vários motivos, não só por ser a sua herança no pensamento feminista, democrático e humanista, mas - marcado pela presença do desenho de uma guilhotina - por ter marcado também o seu fim, no período tirânico, assassino e mesmo demente de Robespierre (que Olympe conhece e imediatamente forja antagonismos inevitáveis), surgido da apaixonante Revolução Francesa. Os últimos capítulos, na verdade, mostram muitos dos paradoxos e resvalamentos advindos desse processo, dos factos políticos até ao uso da própria língua. As tricas e as alianças particularistas que levavam a sucessivas atomizações dos “partidos” e “clubes” (Olympe era Girondina) minaram o bom porto da Revolução e ditaram, em parte, a sorte desta mulher, que se oferecia a escaramuças polemistas sem pejo. Algures no livro, Olympe sabe que é vista como “uma agitadora intempestiva e deslocada”. Infelizmente, nalguns círculos actuais, ainda hoje seria vista assim. Mas mesmo quando o perigo assume cada vez mais um aspecto seguro, e um amigo lhe diz que o seu “estatuto de mulher não [a] protegerá ad vitam aeternam”, ela responde, imediata, segura, e enclausurando - precisamente pelo perigo que essas palavras acarretam - a sua lição: “Então isso significará que finalmente me entendem e as minhas palavras fazem esquecer o meu sexo!”.
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
11 de maio de 2012
Olympe de Gouges. Catel e Bocquet (Casterman)
Publicada por Pedro Moura à(s) 8:05 da manhã
Etiquetas: França-Bélgica
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5 comentários:
onde está "...tentar interceder pela vida de Luís XIV" não seria Luís XVI?
Claro que sim, gralha inadmissível (mas gralha, pois está mais do que repetido no livro e na lição de História). No entanto, não seria mal que mais cabeças de reis rolassem...
Abraços e obrigado,
Pedro
eu sempre soube que näo eras täo culto quanto o teu vocabulário é extenso
desculpa se te faz mossa, mas adoro !!!!
nunca te perdoei as insinuacöes às minhas supostas más traducöes quando há aí gente a escrever em pseudo alemäo, e nem tu nem outr@s euruditas da bd topam
eu é que näo deixo passar, e espero pelo momento certo
näo engulo injusticas
Não percebo muito bem a razão do teu regozijo, mas faz favor. Não me lembro de ter alguma vez ter feito alarde e presunção de ter mais cultura ou mais ignorância do que a parte de cada que me cabe, não deixando de exercer o que posso da primeira nem escondendo a segunda. Não me recordo também de ter acusar de má tradução, pois não tenho alemão para isso; terei feito um comentário sobre gralhas, erros ortográficos, mas não tornando isso impeditivo de apreciar o teu trabalho artístico e editorial. Penso que isso não de modo algum ofensivo, se formos todos adultos, o que penso que sim. E gralhas, todos as fazemos.
Estás à vontade para fazeres vitórias do que quiseres.
Até breve,
Pedro
percebi que era gralha mas não acho bem fazer rolar cabeças de reis com métodos tão drásticos como a disgrafia, para mais quando a gangrena já tinha resolvido o assunto...
abraço
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