27 de junho de 2005

The Complete Peanuts. Charles Schulz (Fantagraphics)


O que é uma obra-prima? Pode ser vista como algo “incontornável” no entendimento de uma determinada arte? Quer queiramos quer não, são aquelas obras cuja amplitude de influência é enorme, um trânsito de significados tão intenso na direcção para fora de si que os escuda fortemente de uma possível ruína do tempo. Peanuts, ou Charlie Brown, como é por cá conhecida a série, lida por gerações atrás de gerações, mesmo em Portugal (um raro caso se sucesso verdadeiramente internacional), é um desses exemplos. Como já disse aqui sobre outras edições, vivemos numa época feliz de acessibilidade a determinadas obras, e agora eis que surge a edição integral da grande obra de Charles M. Schulz.
Estes são apenas os primeiros dois volumes, com as tiras publicadas entre os anos de 1950 e 54. Ainda nos primórdios da tira, vemos um Charlie Brown que não reconheceremos, mais assertivo, seguro, até mesmo gozão, e sempre se relacionando mais ou menos “amorosamente” com duas raparigas, Patty e Violet (personagens que desapareceriam do alinhamento mais famoso). Também não entendemos a quem pertence Snoopy, se a Charlie Brown ou se a Shermy, ou se às raparigas, nem percebemos as relações familiares entre eles. É um universo que apenas existia a cada strip, e sem necessidade de formar uma maior coesão para fora delas. É paulatinamente que essa coesão se vai formando, como se existisse um local central que aos poucos organizasse as vidas de cada personagem.
Não se pense, porém, que não vale a pena passar por esta estranheza. Pois os temas estão logo lá, mesmo que a melancolia ainda demorasse a se tornar o tom central. Muitas das tiras versam sempre um aspecto do mundo que não tem valor próprio senão o que o observador lhe atribui, e basta um pequeno evento ou duas palavras para o ponto de vista de uma primeira aproximação se alterar diametralmente no final (como a tira de 31 de Janeiro e a de 10 de Agosto de 1951).
Vemos aqui as primeiras tentativas goradas de Charlie Brown em levantar um papagaio ou pontapear a bola (não é ainda a Lucy quem a retira), o início do génio musical de Schroder, um Snoopy a tornar-se cada vez menos canino e cada vez mais idiossincrático, a primeira atestação da palavra “blockhead” (“tolo”) atribuída a Charlie Brown, as tessituras ainda fluidas das personagens a que nos habituaríamos.
As tiras seguem, mas sem abusos de maior, o ritmo da vida meio-urbana das pequenas cidades americanas do interior (tal como se diz no prefácio, é um retrato da midwesterner St. Paul, cidade onde Schulz nasceu), pontuada pelo Halloween, o Natal, outros eventos. Mas cada uma das actividades das crianças, por mais específicas que sejam ao seu universo local, são as mais compartilháveis e humanas de todas, já que são retratos de uma permanente necessidade pelos outros o que aqui se louva, assim como dos pequenos deslizes egoístas a que todos temos direito. A melancolia não deriva de uma mera falta de inocência destas crianças, que a possuem de alguma forma (mas não tout court, não posso concordar com “o filtro da inocência” de que Umberto Eco fala a propósito de Peanuts), mas pela vaga sensação de que já entendem ser a vida um instante fugaz, e que qualquer prazer aponta já a morte... (“uma intensamente e particularmente sentida rememoração da dor”, diz Gary Groth numa entrevista ao autor, no The Comics Journal #200). São inúmeros os exemplos destas personagens a pensar a velhice, a decadência, o fim. Mas a quase ausência dos adultos, até mesmo como ruído de fundo, faz com que essa melancolia surja a cada vez como uma manhã promissora. É como se, mergulhando na melancolia, emergíssemos com júbilo. Provas? Charlie Brown não desiste, e lá tenta pontapear a bola de novo, ou erguer o papagaio, ou ganhar um jogo de xadrez, ou encontrar a Abóbora Gigante, ou falar com a moça de cabelos ruivos... again and again and again...
Se bem que algumas tiras jogam com efeitos visuais, até mesmo subdivisões internas, painéis sem texto, tiras inteiras sem falas, uma das linhas de força mais significativas de Schulz são as palavras, mesmo que o autor o negue e até recorra ao slapstick quando acha que é “demasiado sério”. O vocabulário nem sempre é o mais simples (para uma tira deste tipo), e se houve alguém alguma vez que comparou as tiras de banda desenhada com os haiku, então Schulz é de facto o seu Matsuo Bashô. Vejam, por exemplo, logo no primeiro volume, as tiras de 21 de Janeiro e de 2 de Outubro de 1952*. Algumas piadas e situações são recicladas, ou usadas vezes sem conta como é sabido, mas isso apenas reforça o aspecto de “temas e variações” (palavras do próprio Schulz), ou da composição poética citada. É magnífico como “economia de meios” ganha toda a sua reverberação em Schulz e nos faz rir das supostas inovações dos novos “minimalistas”, e me faz ainda mais desprezar trabalhos francamente nulos como Dilbert ou Gardfield ou Cathy; Schulz desenhava maravilhosamente, e estas tiras novas não possuem nada, nem desenho, nem lições universais, só ensimesmamentos grotescos e apenas dignos de dó... E não é uma questão de “nichos de mercado” ou de “interesses particulares”. Chama-se “linha de água”, e alguns desses trabalhos elogiados por todo o lado estão atolados no lamaçal ao fundo.
Em muitos aspectos, o que Charlie Brown diz, “às vezes penso não pertencer aqui” poder-se-ia aplicar a toda a obra de Schulz, já que o tipo de cultura que procurou instituir não era o mais repetido no seu tempo, tendo investido num cruzamento inusitado e inovador entre este modo de arte e a sua visão interna do humano. Mas digo que essa não-pertença poderia aplicar-se, não que se aplique mesmo, pois o sucesso de Shulz foi o de abrir espaço a esta maior intensidade da figura das crianças, não como malandrecos, nem adultos em miniatura, nem criaturas inocentes e mentecaptas, mas como crianças relacionando-se com crianças pelas ligações que os adultos exercem, se ainda fossem crianças. Existe sempre uma moral da história, pois Schulz era um crente fervoroso e isso nota-se: mas não incomoda com qualquer tipo de proselitismo, pois ele procurava sempre uma moral que fosse o mais universal possível (vejam-se as tiras de 9 e de 28 de Junho de 1952). Não há uma catequização, mesmo quando se cita a Bíblia. Neste ponto, Schulz está próximo do Tezuka (budista) de Phoenix ou mesmo de Buddha: importa fazer o melhor possível aquilo que se faz, e com isso contribuir para o bem no mundo, e para o bem dos outros, procurando harmonia.
Em relação a uma aplicação auto-referencial destas considerações morais e de “peixe fora d’água” a toda a tira, veja-se a forma como o autor intitula as revistas de banda desenhada disponíveis na loja (estávamos a dois anos antes do livro de Frederic Wertham, da guerra aberta contra a EC e a emergência do Comics Code), ou como utiliza Charlie Brown para contar más anedotas, mas experimentando-as na tira, connosco (5 de Novembro de 52).
Este seria um território que muitos outros autores explorariam mais tarde, talvez com os exemplos mais claros e recentes na série Calvin e Hobbes de Bill Waterson ou o trabalho de Steve Weissman. Mas será abusivo apontar John Porcellino, Ivan Brunetti, Seth, Chris Ware, Daniel Clowes (algumas crianças com atitudes adultas, como o Charles - de todos os nomes! - de Ice Haven), Craig Thompson (“lençóis”?) como devedores a Schulz a mais de um nível? Até num fanzine de 1961 dos irmãos Crumb (V. Handbook, pp. 98-99), que discute a banda desenhada como forma de arte e desanca nas séries crassamente comerciais e idiotas do seu tempo, e com "falta de auto-consciência", Peanuts está ausente dessa lista negra: precisamente porque, ainda que de modo velado (por tão inovador), Charlie Brown e os seus amigos (ah!) reflectem sobre a sua própria existência...
Enfim, estas coisas todas já foram ditas por tantos outros antes de mim, e outras tantas mais inteligentes já avançadas, inclusive o próprio autor, consciente dos seus limites e forças, que é quase ridículo procurar dizer algo de novo... Vejam o Peanuts: The Art of Charles M. Schulz (ed. por Chipp Kidd, na Pantheon), ou Conversations (UP Mississippi).
Uma das frases de Shulz mais citadas, e que é associada à sua juventude como fonte de inspiração para o Charlie Brown, é a seguinte: “It took me a long time to become a human being” (“Levei muito tempo a tornar-me uma pessoa”). Em termos pessoais, nada posso dizer. Enquanto autor, não só se tornou numa pessoa gigante, como criador de pessoas.
Nota: cada volume tem um design soberbo, simples e merecedor (simbiose perfeita) do que abraça, pelo artista Seth, e virá acompanhado por inteligentes ensaios, textos informativos, entrevistas, que apenas enriquecerão a colecção, pensada por Gary Groth, alvo de amor-ódio de muitos membros da comunidade de “leitores de bd”. Como se anuncia na editora, a Fantagraphics planeia a colecção “The Complete Peanuts [em] 25 volumes, coligindo dois anos cronologicamente a uma razão de dois [volumes] por ano, durante doze anos”. Ou seja, lá para 2016 conseguiremos ter lido todos os 50 anos da existência do “Carlitos e amigos”, se tudo, tudo correr bem (a editora aguentar-se, Seth ter paciência para fazer o design, o barril do petróleo não passar dos 100 USD, eu não me aborrecer de livros aos quadradinho e mudar-me para a apicultura...).
Segunda nota: uma vez falei "mal" do Snoopy... Com isso referia-me à execrável exploração comercial destas personagens que, em grande parte, ofuscam a atenção devida ao trabalho original. Quem conhece mal a série e a ela chega depois de combater contra "o que sabe" do merchandising, terá, julgo, uma surpresa agradável. É pena que por vezes as obras elas-mesmo sejam secundadas por todo o ruído que delas nasce e que parece ser a aproximação "suficiente" que as pessoas desejam - é o caso de obras de verdadeiro vulto, como Moby Dick, de Melville, ou Dom Quixote, de Cervantes... É preciso, sempre, a eles retornar para perceber porquê o poder das suas sombras.
*Imaginem: “Sem esperança,/é como se procurasse uma bola no mato selvagem./Que procuro?/ Uma bola no mato selvagem.” Posted by Hello

1 comentário:

Anónimo disse...

muito bom o texto. eu estava procurando uma resenha na Net em portugues para decidir se compro ou nao. Bem... vou comprar.