À Procura da Obra-Prima Perdida
ou, para uma apreciação analítica de José Carlos Fernandes
É Paul Ricoeur, em Temps et récit, tomo 1º, quem mais cabalmente conseguiu uma aproximação entre a questão de incompletude do tempo no homem, em Santo Agostinho, e a sua inversão (como se uma espécie de salvação se tratasse) através da ordem garantida pela arte da literatura (e suas implicações nas outras artes), conforme a Poética de Aristóteles.
Num dos passos decisivos da obra do filósofo grego, apontam-se os três traços distintivos que tornam a definição do muthos – grafia diferente de mythos, precisamente para estabelecer a precedência da “sustentação dos factos” sobre a mera “história”, ou melhor, “estória” – mais próxima dessa ordem que se estabelece pela arte em contrariedade à desordem da vida vivida. “A tragédia é a representação de uma acção completa (téléias) que forma um todo (holès) e tem uma certa extensão (mégéthos)” (Poética, 1450b 26).
No escopo deste artigo, teremos necessariamente de afunilar, provocando simplificações brutais e violentas, sobre a complexidade e premência destas discussões. No entanto, de forma a avançar, diremos que “ser um todo é ter principio, meio e fim” (Idem, 1450b 26), mas que não implica necessariamente, em relação ao princípio, uma “ausência de antecedentes, mas a ausência da necessidade na sucessão” (Ricoeur, pg. 66). Todos os “tempos” estão subordinados às necessidades e às conexões lógicas da acção do que se conta, e não fruto de uma tal experiência empírica. São “efeitos da ordenação do poema” (idem, 67). Assim como os restantes traços distintivos, uma vez que, ainda de acordo com Ricoeur, Aristóteles não parece interessado em se dedicar às intricadas questões da temporalidade, mas antes à construção da intriga, sublinhando assim o facto que “o laço interno da intriga [uma outra mais aclarada tradução de mythos/muthos] é lógica mais que cronológica” (idem, 68). Uma coerência interna, portanto, que se institui e dilui dentro dos limites da obra mesma.
Uma outra oposição que existe na Poética é aquela que Aristóteles institui entre História (tal como entendida após Heródoto) e a poesia. Valerá a pena revisitar todo o trecho:
O historiador e o poeta não diferem pelo facto de um se exprimir em prosa e o outro em verso (se tivéssemos posto em verso a obra de Heródoto, com verso ou sem verso ela não perderia absolutamente nada do seu carácter de História. Diferem é pelo facto de um relatar o que aconteceu e o outro o que poderia acontecer. Portanto, a poesia é mais filosófica e tem um carácter mais elevado que a História. É que a poesia expressa o universal, a História o particular. (Poética, 1451b 1-7)
Ora, o que José Carlos Fernandes faz em A Última Obra-Prima de Aaron Slobodj é precisamente uma mistura de ambos os modos, graças a um curto-circuito que a ficção historiográfica permite à nossa recepção dos factos históricos. A meta-linguagem a que se propõe possui sempre os frutos da ironia distante, do sarcasmo intelectual, e da brilhante descoberta de conexões novas entre esses mesmos acontecimentos, até então desassociados. No entanto, deveremos analisar de perto essas mesmas conexões e tentar descobrir que tipo de metáfora – utilizo este termo o mais próximo possível da sua etimologia, “transporte através ou por sobre” (grego metapherein) – o autor institui.
O name-dropping, ou a capacidade de indicar nomes sonantes das artes e da cultura em geral em profusão, seja essa citação propositada ou não, quando é elevada a um exagero criativo, torna-se fonte de um sentimento duplo: por um lado, uma certa cumplicidade entre o autor e o leitor, quando este é capaz de entender as origens dessas citações, e a sua pertinência e valor na narrativa, por outro, uma espécie de desprezo que ri da circularidade dessas mesmas citações, que apenas prendem as personagens de José Carlos Fernandes aos seus particulares universos, encerrados sobre si próprios. É precisamente pela catadupa e cruzamento de marcos universais e transversais que torna cada universo montado nas suas obras esses pequenos ataques de claustrofobia dos quais as personagens se tentam, em vão, libertar. É neste ponto, e apenas neste ponto, ainda que de um modo muito, muito diferente do escritor checo, que se poderá permitir o uso de “kafkiano” à obra do autor português. Mas essa comparação esgota-se imediatamente nesse mesmo ponto, já que Kafka utilizava instrumentos bem diferentes: uma linguagem seca e nada rebuscada, uma aposta maior na indeterminação de todas as referências materiais (espaços, tempos, físico das personagens), um apagamento de referências concretas, fossem estas pessoais ou históricas.
Não é bem-vindo o exercício de transpor e aplicar conceitos ou princípios organizativos de uma área para uma outra, distinta, se essa transposição não implicar ela-mesma uma transformação desses conceitos. A banda desenhada, é discutido, vive com a permanente apresentação de dois eixos temporais e organizativos do (seu) discurso, aos quais se poderá chamar paradigmático e sintagmático, associando o primeiro à esfera das acções, em que os seus termos (agentes, meios, circunstâncias, etc.) são sincrónicos, pois reversíveis, e o segundo ao do récit, da intriga, do contar, já numa estruturação diacrónica. A passagem do primeiro ao segundo dá-se através da actualização – em que termos com significados apenas virtuais se recobrem ou, melhor, se preenchem de sentido na sua sequencialização (poderemos pensar em deícticos, na gramática, em elementos mínimos ou gerais, convencionais, na banda desenhada como linhas de acção, os balões, os espaços?) – e da integração – os termos paradigmáticos colocando-se em relação uns com os outros, contribuindo a uma totalidade de co-acção (Ricoeur, pgs. 90-91). Uma história, portanto, apenas se compreende se entendermos o que se passa em ambas as esferas: a das acções (“o que se passa”) e a da estória (“como nos é contado”). Será bem mais inteligível se pensarmos em experiências onde isso tenha falhado: por exemplo, ao ler uma mangá deparamos com uma série de convenções que não encontram correspondente nas nossas tradições (franco-belga e americana) e que nos podem lançar em confusão ou quebra do ritmo de leitura – uma bolha de líquido saindo do nariz para indicar sono, e não um serrote num tronco, o nariz a sangrar assinalando a concupiscência, a alteração radical das figuras das personagens para desenhos mais simplificados para indicar um passo de surpresa dessas mesmas personagens (o termo japonês é chibi; vejam o Glossário em http://www.clubotaku.org/), etc. Por outro lado, mesmo que entendamos as convenções do contar, podemos deparar-nos com exemplos de acções que não compreendemos, pois terá a ver com a cultura retratada – uma língua de fora de um tibetano, um cigano cuspindo sobre uma criança.
As “críticas” que leio em relação a este livro ou se cingem a elogios que passam pela esfera pessoal – e já sabem que a vida de um artista nada tem a ver com a sua obra – ou passam por extrapolações que nada têm a ver com o livro, mas sim com questões de recepção, catalogação, etc. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra... É por isso que esta associação conceptual, entre filosofia ou outros métodos críticos em geral e os textos de bd, me interessa, é nesse trabalho que me importa aplicar.
Aristóteles já deu as respostas todas, e é por isso que se torna sempre, a cada leitura, um clássico: o filósofo acusa de desnecessário e inverosímeis a intriga feita por episódios que se seguem uns aos outros, ao invés de se encadearem uns nos outros, isto é, um segue “por causa do outro”. Aaron Slobodj torna-se uma personagem tão mais vazia quanto mais surge como função de causalidade. Isto é, não é pessoa completa, mas antes uma “causa”: é por causa de Slobodj que X faz isto ou que Y consegue aquilo, etc. Mas haverá, ainda assim, encadeamento entre os vários episódios?
É precisamente aqui que reside a aposta de Fernandes no indistinto que o seu livro-jogo permite, e aí que se encontra a sua maior defesa e fortaleza. É como se soubesse, como se adivinhasse antecipadamente que ataques poderiam existir da parte dos leitores ou comentadores, e recobrisse toda A Obra-Prima de um campo de força defensiva, que baralha essas mesmas flechas repentinas, derivadas da irreflexão, da apressada consideração, do folhear desatento do seu livro, tornando-as inúteis antes de serem disparadas e ridículas depois o serem.
O facto de eleger a paradoxalidade de uma causalidade sem cronologia, sem ordem aparente, sem mapeamento possível de si-mesma, lança este livro num exercício total da contemporaneidade: ainda (ou sempre) com Aristóteles, vemos estarem ausentes os pontos nodais que tornam determinada intriga complexa – o golpe de teatro (ou a peripécia), o reconhecimento (ou a anagnôrisis) e o efeito violento (ou o pathos). Não existirão enquanto pontos nodais, é certo, mas talvez existam em todas as páginas, todas as pranchas: o reconhecimento dessa causalidade que Slobdj é, o golpe de teatro colocando-o precisamente como causa, e o efeito violento que isso provoca no leitor, que melhor interpela desse modo o que apenas a ficção historiográfica consegue cumprir, ou seja, a instalação da dúvida: “E se isto foi mesmo assim?” Fenomenologicamente falando, o leitor experiencia todos estes níveis de tempo, todos estes espaços, aqui presentes, numa fixação sem centro, numa leitura da multiplicidade que constitui a própria obra, isto é, o livro que se tem nas mãos.
O que permite este contínuo jogo de escrever as regras, possuir a liberdade de as não cumprir fazendo novas regras e assim por diante é uma das condições necessárias da arte contemporânea. Socorrendo-nos de Rainer Rochlitz, é o terceiro, derradeiro e central pilar das suas teses que ele aponta como limite (não limitativo, mas circunstancial da acção): “o contexto institucional e político da arte contemporânea tende a neutralizar esses critérios” (Subversion et Subvention. Art contemporain et argumentation esthétique, pg. 19) pois “a época contemporânea ensaia a institucionalização da revolta e faz coexistir a subversão e a subvenção” (idem). Esta coexistência é perene em cada livro de José Carlos Fernandes, já que a subversão existe sem dúvida no seu programa – o reemprego de personagens ou nomes sobejamente conhecidos e aos quais se associam como que pré-conceitos, pré-noções diegéticas ou “de imaginários”, os cruzamentos e o consequente curto-circuito de qualquer teoria dos géneros, a fragmentação sucessiva no interior de cada série ou história, impedindo a emergência de um universo que tudo englobe e, por isso mesmo e ao mesmo tempo, a emergência de um universo próprio, feito de ruínas e colagens – assim como a subvenção – as bolsas de criação, os prémios, o apoio, agora, de uma editora despreconceituada e arriscando/apostando no autor, as ligações que vai conseguindo com outras plataformas de expressão (recentemente, o cinema), a profissionalização, etc.
Enfim, a crítica, sobretudo a filosófica, deve despojar-se das suas opiniões ou gostos pessoais, para poder atingir os critérios discursivos e analíticos do que permite ver, na obra, e só na obra – não obstante o possível recurso (ou excurso) a informações exteriores à mesma -, aquilo que, de novo com Rochlitz, se pode chamar “graça”, por oposição a uma certa inércia dos comentários em torno da “intenção” ou “conceito” do artista. Para além das heranças distorcidas de um certo romantismo, a obra de arte existirá malgré o próprio artista; no momento em que ela é desperta e ofertada ao mundo, já se divorcia do gesto que a criara. Há como que uma vingança, uma “morte ao pai”, necessariamente forte nas obras fortemente necessárias. E isto não é um jogo de palavras, mas sim o que quer dizer, mesmo.
Em relação a obras anteriores de Fernandes, esta apenas é diferente em termos superficiais – a forma do livro. Não se assume um estilo diferente, nem chega a criar uma linguagem diversa no seu próprio estilo – as citações, os trocadilhos, etc. – como, apenas como exemplo, Manuel Tiago consegue fazer, de entre os autores portugueses contemporâneos. O projectar de um trabalho próprio a uma outra origem autoral e “traduzi-la” ou “editá-la” também não é inédito, tendo em conta O Peregrino Blindado de Eduardo Batarda, as adaptações de André Lemos de autores fictícios, etc. Isto no campo da banda desenhada, para não irmos mais longe. O prefácio, com a sua apócrifa, ainda que exaustiva, bibliografia, faz lembrar o prólogo de Jorge de Sena a esse longo remoque nas letras portuguesas que foi o poema atribuído a frei Grabato Dias (António Quadros na realidade) com As Quibíricas. Jogos que João M. Lameiras e João R. Santos, seus cúmplices de criação (e de pensamento?), já tinham cultivado em As Cidades Visíveis. As reutilizações de Fernandes são em catadupa, como já nos habituámos (não soubesse eu da pouca visibilidade e desimportância que certas bds têm face ao mundo editorial adulto português, quase diria que vejo, numa situação em A Obra-Prima..., um pastiche a O Escritor, bd de Pedro Nora e de mim próprio, na Quadrado 4). Essas reutilizações não significam, porém, plágios, mas sim a força que Fernandes tem sobre as tradições criativas em que se inscreve.
O facto, sobejamente referido, de Fernandes ser o único autor português que vive da e para a bd de pouco lhe serve como valor acrescentado, dada a notória falta de diversidade ou multiplicidade de linguagens da sua lavra. Mais, o autor corre o risco de continuar ad aeternum a produzir este tipo de pequenas apocrifias sobre inusitados personagens do ridículo, avatares todos de uma certa ideia central. O seu traço, ao qual não podemos propriamente chamar de virtuoso, acaba por se cingir mais ao menos às mesmas poses estáticas, senão mesmo hieráticas, histriónicas, de pessoas de meia-idade... O ambiente nostálgico corroborado pela insistência na sépia não constrói uma verdadeira iconoclastia, controlada pela correcção e timidez em ser mais sarcástico talvez, nem uma acabada e franca nostalgia, que tanto poderia surgir sob a forma dos epígonos dos mestres ditos clássicos como num pastiche mentecapto à la Tom Sccioli... Ainda nos poderíamos perguntar se as “brincadeiras” à volta das artes – quer a obra de Slobodj quer os textos que a acompanham – são verdadeiramente respeitadoras e informadas pelos objectos de que falam, ou se não surgirão levemente como uma típica atitude negativa perante as mesmas: afinal, quando se reduz o trabalho de Duchamp, de Christo, de Warhol, etc., a meras boutades ou piadas, esquecendo todas as outras implicações conceptuais, intelectuais e até históricas envolvidas, não se procura um entendimento e aceitação, mas sim uma formulização do “anything goes”.
Enfim, este livro ergue-se como o Mont Analogue de René Daumal (há uma sua tradução na Vega): algures nos mares do Sul, ergue-se invisível aos olhos nus e desatentos que se deixam apenas iluminar apenas pelo sol e o empirismo e a opinião, um enorme monte, “inacessível por meios vulgares humanos”. Mas graças à perseverança e estudos dos personagens, instigados por um líder de nome Sogol – o inverso preciso e precioso de Logos, tal como explicado na novela -, conseguem chegar à ilha-montanha, ainda que jamais cheguem a subi-lo, pois o autor morreu, deixando a obra inacabada, mas não menos misteriosa e monumental.
São precisas coordenadas específicas para se entrar nesta obra, e é pela inversão das nossas expectativas mais usuais, banais até, que se conseguirá penetrar até ao âmago de A Obra-Prima, mesmo que jamais se chegue ao seu fim, isto é, que se a esgote na leitura. E há pistas que apontam para que isto se trate de um imenso McGuffin: a repetição de certos nomes nos textos aponta para que se trate de um puzzle eventualmente organizável numa estrutura clara e simples. Mas é essa intensidade contínua – parece-me a mim que inesgotável, até prova contrária – que se pode elegê-la como, de facto, a obra-prima de José Carlos Fernandes.
17 de junho de 2005
A Última Obra-prima de Aaron Slobodj. José Carlos Fernandes (Devir)
Publicada por Pedro Moura à(s) 1:10 da tarde
Etiquetas: Portugal
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