Tal como a fénix na série já indicada, também aqui o unicórnio, unicorne, ou licorne é um símbolo de desculpa para contar uma história maior do que o verdadeiro protagonista da narrativa apresentada. O próprio Tezuka achava esta personagem “demasiado perfeita, demasiado lisa”, ou seja, não se aguentaria por ela própria sem ser enquanto imagem. De novo, o problema de géneros surge aqui, uma vez que estamos perante uma obra pensada num e para um mercado internacional (sobretudo ocidental) e estruturada como tal, que dá uso a um desenho muito próximo da animação – uma das paixões e influências de Tezuka – para recontar um velho, velho mito. O prólogo abre com a história de Eros e Psique, cuja primeira versão escrita se encontra em O Burro de Ouro de Apuleio (séc. II da EC), cujos elementos despoletariam um rol sem fim de outras narrativas ditas “populares” – não sendo A Bela e o Monstro a menos conhecida. Tezuka, porém, pega em todos os elementos da lenda helénica e na versão latina para os seus fins específicos, de entretenimento em primeiro lugar, mas com objectivos segundos que o tornam – tal como a Carl Barks – num autor que, trabalhando no interior de limitações a vários níveis (editoriais, de amplitude a um público infantil, formais, etc.), tem forças suficientes para se suster para além desses mesmos limites. Dada uma maldição de Vénus, Unico tem de atravessar os tempos numa permanente errância, mas sempre se cruzando com novas amizades...
O unicórnio em questão está mais próximo do Kirin japonês (mas ecoando-se por toda a Ásia), criatura de longo pescoço que garante bonança e alegria aos puros de coração, do que do selvagem animal das mais velhas lendas ocidentais. Um pouco como o mesmo grau de diferença entre o temível dragão medieval e o dócil e sábio dragão chinês. Para quem viu Mononoke Hime/Princesa Mononoke, de Miyazaki, autor que moralmente se aparenta muito a Tezuka, lembrar-se-á daquela criatura parecida com um veado no final, o “Grande Espírito da Floresta” ou “Shishi Gami”, de certa forma aparentado com esse Kirin. Há, porém, ainda a mistura das lendas semi-cristãs do unicórnio mais facilmente capturado por uma pura virgem do que por experienciados caçadores, como as famosíssimas tapeçarias de Cluny atestam.
Mas, poder-me-ão dizer, para que tanta citação, tantas referências? Não será esse um exercício saloio de erudição? Sim, pode ser que seja, e até poderia continuar por Romeu e Julieta, por Hiawatha, por Tolstoi e Sófocles, ou outros. A razão é simples: é que Tezuka parece querer demonstrar que a (sua) banda desenhada pode ser um elo na contínua cadeia das narrativas cujas vidas, pulsões e reverberações ultrapassam as dos textos que as inauguram (mesmo que esse texto seja um de Shakespeare), como se não houvesse de facto distinção entre poemas antigos e contos modernos, literatura de génio e tradições populares, como se não houvesse necessidade por fronteiras nacionais, temporais ou linguísticas nesse enorme e inorganizado espaço a que se pode dar o nome de “bosques da ficção”. Como disse, Unico é uma desculpa, pois cada curto episódio perfaz uma curta história que atravessa vários tempos, culturas, civilizações, e personagens que o pequeno animal vai ajudando. Trata-se, portanto, de uma pequena tentativa de retratar a unidade das emoções humanas na sua multiplicidade de expressões. Publicado na segunda metade da década de 70, não posso deixar o ler como, a um só tempo, um “aquecimento” e um “melhoramento” a uma fórmula repetida, ainda que num outro registo mais maduro e mais ambicioso, na série Phoenix. Outros temas em comum entre as duas séries (e toda a obra de Tezuka, enfim) é a preocupação em entender o Outro como ser humano digno de compreensão e compaixão, sendo o sofrimento o mesmo, e uma visão holística da Natureza enquanto espaço privilegiado da confirmação da existência do divino (as preocupações ecológicas do autor revestem-se de contornos quase místicos, o que permite uma outra aproximação a Miyazaki).
Uma vez que o público desta obra em particular será bem mais infantil que o dessoutra série (ou de Buddha, ou das narrativas adultas), notar-se-á na forma como as personagens surgem, na inexistência de verdadeiras demonizações dos inimigos, nos traços simples e nos passes mágicos a cada instante, etc. Isso não impede Tezuka de fazer pequenas incursões nos experimentalismos formais pelos quais é conhecido, sendo o mais visível as vinhetas “fora” das pranchas, como se estas continuassem indefinidamente num espaço outro fora da página física...
Outros expedientes cómicos passam, como de costume, por recursos metalinguísticos, utilizando os próprios elementos formais da banda desenhada para despoletar uma acção - como utilizar os balões como transporte de fuga ou combustível numa fogueira (e as letras estalam!) – ou utilizar uma referência que dissolve a fronteira entre esta narrativa presente e outras – Titânia queixando-se que os jovens já não lêem os clássicos, como Sonho de Uma Noite de Verão, e só têm olhos para a banda desenhada, mas precisamente numa banda desenhada que faz uso e jus a inúmeros clássicos desses! O que apenas reforça a ideia avançada atrás de uma certa continuidade de ficções. O facto do protagonista se esquecer sistematicamente das outras personagens com as quais se relaciona a cada episódio-conto demonstra, por um lado, uma inteligente estratégia (comercial?) de os poder ler separadamente. Mas também não apontará para uma realidade das emoções humanas: é que cada novo amor, “indelével e eterno”, apaga impreterivelmente qualquer velho e anterior amor, também ele antes “indelével e eterno”.
25 de junho de 2005
Unico. Osamu Tezuka (Soleil)
Publicada por Pedro Moura à(s) 6:29 da manhã
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