O aspecto imediatamente mais aprazível nos livros de Koruda é, como será de esperar, o seu desenho, que participa da leveza e rapidez – tais como definidas como características e valores de uma literatura para o nosso tempo, cf. Italo Calvino – que um lápis livre é capaz de expressar. Todas as personagens de Koruda, sejam jovens ou idosos, japoneses ou ocidentais, pobres ou enriquecidos, têm traços em comum, que é o de uma alegria em estarem vivos num mundo de diversidade. Estes três volumes reúnem 19 histórias, produzidas no fim dos anos 90 e publicadas em tankobon (nome dos volumes que no Japão reúnem séries previamente publicadas em revistas, e com sucesso) entre 2000 e 2001, cada uma com um tom levemente diferente da anterior: ora de um despojamento quase total que centra a atenção nos mais quotidianos dos gestos, numa vertente poética subtil, ora mais melancólicos, ora com pequenos detalhes da vida social japonesa ora absurdamente cómicos, passando mesmo pela ficção científica, e o género desportivo – o ciclismo, para ser exacto (existem séries, mais comerciais e menos famosas fora do Japão, totalmente dedicadas aos mais diversos desportos, e que consistem quase numa descrição chã, como se uma transcrição de uma prova se tratasse, do desporto em questão; Koruda faz o mesmo, mas intercalando eventos paralelos e que convergirão no fim, subvertendo um interesse primário no desporto).
Assim de imprevisto, parecer-nos-á que cada episódio nada tem em comum com o anterior, tirando o óbvio e repetido tema das beringelas, que são como que um ruído de fundo que une todas as composições. Mas à medida que a leitura avançar pelos episódios, que atravessam tempos (um “presente”, um “passado”, nos tempos do shogunato, e um “remoto futuro”) e espaços diferentes (não só o Japão urbano, rural e mediador, como a Índia e Espanha), acompanhando um grupo simpático de personagens, vamos entendendo a pequena rede que os une entre si. Mas essa é ainda uma leitura superficial. Há um professor Takama, que parece ter desistido de uma complicada vida intelectual por uma mais pausada, entre leituras e a plantação de beringelas no campo. Há Aya Takahashi, uma jovem liceal que rapidamente se torna uma responsável e laboriosa mulher para poder sustentar os seus dois irmãos abandonados, mas não abdicando dos seus sonhos paralelos, a realizar ou não, com os homens que a vão fascinando. Há Arino, um rapaz que não pretende criar raízes em nenhum lado, e parte pelo mundo em busca da realização de um incerto conceito, o da “reforma jovem”. E outros ainda, que surgem de quando em vez, criando maiores ligações com os outros, ou apenas fugazes cruzamentos. Todos, porém, cada um com o seu subtilmente sentido grau, são pessoas às quais a vida lhes surge o mais digna possível de viver e abraçar. Aprendemos em relação ao cultivo de beringelas que se devem fazer alguns cortes e escolhas de florações, e impedir que cresçam em forma de árvore, pois assim conteriam a vida das outras num menor desenvolvimento, só assim alcançando uma harmoniosa colheita. Esses cortes, na vida, na busca de uma vida mais sã e simples, mas não leviana, é alcançada por estas personagens, não através de sacrifícios, mas antes como que libertando pelo caminho tudo o que é lastro. Mas não pensem que há aqui moralismos e ortodoxias. É apenas um altear de “cada qual com o seu caminho...” como filosofia de vida. Contudo, isso poder-nos-ia indicar uma outra forma de marcar distinções entre as pessoas, entre aquelas que gozam a vida ao máximo e as outras, que a deixam passar ao lado...
Iô Koruda faz-nos estas representações em registos diferentes, como disse, algo bem difícil de fazer sem se cair num tom de humor aéreo com toda a obra. Todas e quaisquer das “aubergines” flutua entre dois ou três humores, mas sempre de um modo calmo. Aliás, a excelente tradução em francês perece fazer jus a uma linguagem desapossada de peso, que nos faz virar as páginas como se estivéssemos escutando os nossos mais próximos a falar uns com os outros. Uma conversa em que não participamos, mas apenas escutamos com afeição.
Koruda é autor sobretudo de histórias curtas, e por isso dá-se à liberdade de poder utilizar esta variedade de aproximações. Já numa outra antologia, Daioh, de 2001, tanto fazia homenagens a Tezuka com uma curta história em Metropolis, como pequenos apontamentos oníricos sobre elefantes e mulheres-mosquito, como histórias de acção e cheias de mecha (equipamento tecnológico sci-fi). Mas ...aubergines parece caminhar num sentido de maior coesão, e quem sabe se nos aponta para uma possível obra de fôlego no futuro.
O único problema de maior é o que me parece ser um mau corte das páginas, cortando mesmo palavras da tradução e sabe-se lá o que mais. Cada livro tem ainda umas páginas-bónus com receitas, notas sobre as histórias e uma espécie de strip auto-referente.
27 de junho de 2005
... et autres aubergines. Iô Koruda (Kodansha/Casterman)
Publicada por Pedro Moura à(s) 10:57 da manhã
Etiquetas: Japão
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