Em muitos aspectos, esta curta série de comic books (cuja colecção em trade
se prevê para muito em breve) segue toda a sorte de convenções e estruturas
normalizadoras. Existe um espaço “maldito”, que é a vila piscatória de Merksay,
nas ilhas Orkney, Escócia. Existem monstros da mais variada espécie e que vão
revelando vários graus de crueldade ou mesmo maldade, sendo o central Bonnie
Shaw, uma espécie de concatenação de vários mitos do “homem do saco” de origens
europeias. Existe um herói cuja motivação é dúbia e tentativa na pessoa do
detective Greg Hellinger, que desde que começou a ver demónios caiu na
desgraça. Existe o objecto da procura, a Emily do título, uma adolescente
desaparecida da aldeia em circunstâncias misteriosas. E a personagem adjuvante
e condutora em Fiona Tulloch, amiga de Emily. Todavia, se tudo parece preparado
para apresentar uma breve novela relativamente concentrada, desde o primeiro
número que entendemos haver uma rede de relações bem mais alargada e intrincada.
Há uma geometria muito bem estruturada de um grupo alargado
de personagens que, se ao princípio parecem não ter nenhum elo entre si, e até
mesmo parecem afastar-se do cerne da história que é apresentada logo ao início,
aos poucos começam a convergir até ao significado final. E é o modo como a
atenção vai sendo distribuída por todas essas linhas que faz com que a
“aventura” decorra de modo fluido e lento, e se mantenha muito interessante,
assim como vai tornando cada vez mais densa a “armadilha” da resolução. A qual
não deixa de ser surpreendente, inesperada, ou pelo menos apresentando reviravoltas
que são esperadas em si mesmas enquanto mecanismos, ainda que não sem se
adivinhar os seus detalhes precisos.
John Lees é de Glasgow e Iain Laurie é de Edinburgo,
pertencentes à esfera de artistas da small
press escocesa, mas encontrando nesta
série e nos vários apoios que obtiveram de malta mais famosa uma catapulta para
uma atenção mais alargada. O livro é capaz de vir a angariar ainda mais atenção
e, como não deixa de ser, a permitir que ambos possam vir a fazer trabalhos de
maior perfil comercial. Seja como for, os objectivos dos autores não é de forma
alguma alimentarem um determinado tipo de trabalho que ficasse pelo círculo
independente, mas antes explorarem aquelas pequenas franjas que podem ser
ocupadas nos circuitos mais centrais, sem penetrar nele por completo.
Visualmente, para sermos precisos, a prestação de Laurie está
longe da esmagadora maioria das convenções da banda desenhada mainstream norte-americana (pois eles
respondema essa tradição, não apenas a
local escocesa; mais, essa descrição não é em nenhum aspecto é um juízo em si
mesmo, já que esse mainstream produz
trabalhos dignos de grande atenção mesmo que no interior de todas as regras
expectáveis; além disso, a editora Comix Tribe é pequena, mas em termos de
género tenta trabalhar em territórios próximos das grandes editoras). É como se
se herdassem aqui algumas das liberdades estilísticas permitidas sobretudos
pelas muitas e diversas experiências da banda desenhada alternativa dos anos
1990. Há reminiscências de Tom Hart, mas também se poderiam encontrar
afinidades em Shaky Kane e, através deste, de um Kirby muito alucinado. O
desenho de Laurie é estilizado, inclinando-se para a feiura, mas garantindo
intervalos de expressão suficientemente amplos para abrir espaço a dramatismo,
humor, horror, e dinamismo, ainda que sempre subsumido a uma ideia geral de
alucinação das formas.
Não chega a ser um terror plástico ora abstracto (Breccia,
Rehr) ora orgânico (Ito, Maruo), mas há momentos em que ambas as tendências têm
um vislumbre, mesmo que seja para informar as criaturas demoníacas ou os freaks da história, ou as equações
intervalares que presidem às personagens que chamaríamos “normais” nessa
economia. Todas são fruto de um jogo gráfico, porém, que é justo na acção.
A escrita, como dissemos, é a um só templo exploratória de
uma série de mecanismos usuais mais ao mesmo tempo de desvios suficientes para
tornar Emily num projecto acima dos
mais tipificados comics de terror. A
palavra “surreal” poderá ser empregue, não sem correcção, mas tememos que seja
demasiado simples: há uma dimensão onírica, evidente, que tem espaço concreto
na acção, mas ele não serve nem como espaço de terror absoluto mas tampouco
como último reduto de protecção. Existe tal como o mundo da vigília e dos
homens, um espaço como outro qualquer, em que os preços a pagar são estipulados
pelas próprias personagens. Talvez seja esse o tema central desta história,
assim como a responsabilidade de se assumirem as acções que se perseguem.
É possível que haja aqui uma vontade, ainda que bem
diferente daquela forma de Barker ou Lovecraft indicada acima, de estabelecer
um “universo”. Isso é notável sobretudo pela inclusão, no fim de cada comic book, de uma página com uma
brevíssima história centrada numa só personagem (que não tem usualmente qualquer
papel na história contada), e que “aumenta” a população de Merksay. Haja ou não
essas dendrites futuras, And Then Emily
Was Gone é um título muito significativo de como criar horror com
instrumentos gráficos menos convencionais (mais uma vez, poderíamos recordar as
experiências entre Soares e Serpa), e com contornos
Nota final: agradecimentos a K.A.T., pelo empréstimo.
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