2 de janeiro de 2015

And Then Emily Was Gone. John Lees e Iain Laurie (Comix Tribe)

 Existem muitos títulos que tentam alimentar o género do “horror” na banda desenhada, e há várias maneiras de o fazer. Mas se a maioria deles opta pelo caminho fácil da violência, quase sempre gratuita, muitas vezes misturada com um qualquer entendimento da sexualidade de modo básico e titilante, existem outros caminhos mais subtis ou pelo menos mais elaborados. Sem querer de forma alguma arrogar-nos de apresentar uma tipologia fechada ou taxativa, um deles é o da compreensão do que esse género permite como espaço de reflexão dos limiares apresentados ao ser humano, e nesse território temos em Portugal um excelente exemplo com a obra de David Soares. Outra é a de fomentar pequenos universos mitológicos que podem ir aumentando de facetas, até ao ponto é que é menos importante a emoção central que deveriam explorar – o horror – do que a contínua construção do universo diegético; é precisamente isso o que se passa com o desdobramento do universo de Clive Barker pelos Boom! Studios, ou Hexed, da mesma editora (uma exploração das referências de Lovecraft num tecido mais ou menos coeso).  Outra ainda é perseguir formas heterodoxas, surreais, pós-genéricas, e freaks. And Then Emily Was Gone pertence a essa categoria. (Mais)

Em muitos aspectos, esta curta série de comic books (cuja colecção em trade se prevê para muito em breve) segue toda a sorte de convenções e estruturas normalizadoras. Existe um espaço “maldito”, que é a vila piscatória de Merksay, nas ilhas Orkney, Escócia. Existem monstros da mais variada espécie e que vão revelando vários graus de crueldade ou mesmo maldade, sendo o central Bonnie Shaw, uma espécie de concatenação de vários mitos do “homem do saco” de origens europeias. Existe um herói cuja motivação é dúbia e tentativa na pessoa do detective Greg Hellinger, que desde que começou a ver demónios caiu na desgraça. Existe o objecto da procura, a Emily do título, uma adolescente desaparecida da aldeia em circunstâncias misteriosas. E a personagem adjuvante e condutora em Fiona Tulloch, amiga de Emily. Todavia, se tudo parece preparado para apresentar uma breve novela relativamente concentrada, desde o primeiro número que entendemos haver uma rede de relações bem mais alargada e intrincada.

Há uma geometria muito bem estruturada de um grupo alargado de personagens que, se ao princípio parecem não ter nenhum elo entre si, e até mesmo parecem afastar-se do cerne da história que é apresentada logo ao início, aos poucos começam a convergir até ao significado final. E é o modo como a atenção vai sendo distribuída por todas essas linhas que faz com que a “aventura” decorra de modo fluido e lento, e se mantenha muito interessante, assim como vai tornando cada vez mais densa a “armadilha” da resolução. A qual não deixa de ser surpreendente, inesperada, ou pelo menos apresentando reviravoltas que são esperadas em si mesmas enquanto mecanismos, ainda que não sem se adivinhar os seus detalhes precisos.
John Lees é de Glasgow e Iain Laurie é de Edinburgo, pertencentes à esfera de artistas da small press escocesa, mas encontrando nesta série e nos vários apoios que obtiveram de malta mais famosa uma catapulta para uma atenção mais alargada. O livro é capaz de vir a angariar ainda mais atenção e, como não deixa de ser, a permitir que ambos possam vir a fazer trabalhos de maior perfil comercial. Seja como for, os objectivos dos autores não é de forma alguma alimentarem um determinado tipo de trabalho que ficasse pelo círculo independente, mas antes explorarem aquelas pequenas franjas que podem ser ocupadas nos circuitos mais centrais, sem penetrar nele por completo.

Visualmente, para sermos precisos, a prestação de Laurie está longe da esmagadora maioria das convenções da banda desenhada mainstream norte-americana (pois eles respondema  essa tradição, não apenas a local escocesa; mais, essa descrição não é em nenhum aspecto é um juízo em si mesmo, já que esse mainstream produz trabalhos dignos de grande atenção mesmo que no interior de todas as regras expectáveis; além disso, a editora Comix Tribe é pequena, mas em termos de género tenta trabalhar em territórios próximos das grandes editoras). É como se se herdassem aqui algumas das liberdades estilísticas permitidas sobretudos pelas muitas e diversas experiências da banda desenhada alternativa dos anos 1990. Há reminiscências de Tom Hart, mas também se poderiam encontrar afinidades em Shaky Kane e, através deste, de um Kirby muito alucinado. O desenho de Laurie é estilizado, inclinando-se para a feiura, mas garantindo intervalos de expressão suficientemente amplos para abrir espaço a dramatismo, humor, horror, e dinamismo, ainda que sempre subsumido a uma ideia geral de alucinação das formas.

Não chega a ser um terror plástico ora abstracto (Breccia, Rehr) ora orgânico (Ito, Maruo), mas há momentos em que ambas as tendências têm um vislumbre, mesmo que seja para informar as criaturas demoníacas ou os freaks da história, ou as equações intervalares que presidem às personagens que chamaríamos “normais” nessa economia. Todas são fruto de um jogo gráfico, porém, que é justo na acção.

A escrita, como dissemos, é a um só templo exploratória de uma série de mecanismos usuais mais ao mesmo tempo de desvios suficientes para tornar Emily num projecto acima dos mais tipificados comics de terror. A palavra “surreal” poderá ser empregue, não sem correcção, mas tememos que seja demasiado simples: há uma dimensão onírica, evidente, que tem espaço concreto na acção, mas ele não serve nem como espaço de terror absoluto mas tampouco como último reduto de protecção. Existe tal como o mundo da vigília e dos homens, um espaço como outro qualquer, em que os preços a pagar são estipulados pelas próprias personagens. Talvez seja esse o tema central desta história, assim como a responsabilidade de se assumirem as acções que se perseguem.

É possível que haja aqui uma vontade, ainda que bem diferente daquela forma de Barker ou Lovecraft indicada acima, de estabelecer um “universo”. Isso é notável sobretudo pela inclusão, no fim de cada comic book, de uma página com uma brevíssima história centrada numa só personagem (que não tem usualmente qualquer papel na história contada), e que “aumenta” a população de Merksay. Haja ou não essas dendrites futuras, And Then Emily Was Gone é um título muito significativo de como criar horror com instrumentos gráficos menos convencionais (mais uma vez, poderíamos recordar as experiências entre Soares e Serpa), e com contornos  

Nota final: agradecimentos a K.A.T., pelo empréstimo.

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