Desta feita,
angariámos aqui quatro títulos escritos por um só autor e
apresentando uma tese, tema ou foco disciplinar.
Nesta frente igualmente o avanço
é substancial,
e não se atém somente a leituras analíticas informadas pelas
ciências literárias e/ou artísticas, mas tentam dialogar com áreas
de interesse mais específicos e mais latas, desde a ciência militar
e política, à religião, sociologia, etc. É claro que aquelas
áreas mais clássicas, como a narratologia, a literatura, a
comparação a linguagens tais como o cinema, o teatro, ou a procura
de ligações a outras áreas afectas ao desenho narrativo, etc., não
são de forma alguma descuradas, mas é importante que a expansão
seja tanto lateral como em profundidade. Alguns destes volumes
parecem prescrever sobre áreas já de certa forma abordadas por
áreas exploradas anteriormente, enquanto que outros parecem burilar
de facto novos territórios, ou apresentam inflexões de tal
complexidade que se tornam pontos obrigatórios de passagem e
reflexão por aqueles que se atribuam a tarefa de navegar estas
águas. (Mais)
American
Comics, Literary Theory, and Religion.
A. David Lewis (Palgrave Macmillan)
Como se recordarão os leitores do Lerbd, este conúbio entre os
estudos de religião e a banda desenhada, e para mais, o específico
género dos super-heróis, não é de forma alguma um gesto inédito
no que diz respeito a estudos académicos. Recordemos Dothe Gods Wear Capes? e GravenImages, para citar os títulos lidos
por nós. De resto, o último volume é co-editado por Lewis.
Este volume está
menos preocupado com a negociação de representação cultural de
uma determinada crença ou sistema filosófico e místico do que com
aqueles mecanismos narrativos típicos ou recorrentes de uma certa
banda desenhada norte-americana, acima de toda a de superheróis.
Sabemos como a morte é uma constante presença ou parada nas
aventuras dessas personagens incríveis, mas também o quanto ela não
significa necessariamente o fim da história ou sequer a palavra
final na existência das personagens. Trata-se precisamente de um
universo que permite explorar, ficcionalmente, e ancorado mais ou
menos em cosmovisões preexistentes, no que é a “vida após a
morte”, ou a afterlife,
na expressão central deste livro. O autor procura, em primeiríssimo
lugar, tornar o mais clara possível esta noção, separando-a de
outros estados como a “não-vida”, ou a “imortalidade”, tal
como podem ocorrer noutras acepções, géneros ou narrativas, para
depois a relatar aos mais sérios estudos de sociologia da religião.
Seguem-se então
quatro capítulos perfeitamente programáticos para explorar essa
estratificação de saberes, abordando-se os vários textos que se
julgam mais apropriados para o deslindamento das questões.
Desdobrando a tipologia descritiva de Peter Coogan para o género de
super-heróis, Lewis apresenta no primeiro capítulo “seis
elementos” adicionais pertencentes ao sug-género da afterlife,
procurando alistar ao máximo que personagens se integrariam neles. O
segundo capítulo dá continuidade a esse exercício de arrolamento,
descrevendo aquelas histórias onde temos acesso aos mundos da
“eternidade”, sejam o Paraíso, o Inferno, o Purgatório ou
outras paragens identificadas. Os dois últimos capítulos procuram
afunilar o foco, e os instrumentos, com o terceiro elegendo uma única
história, Fantastic Four: Hereafter -
onde interessará menos a “qualidade estética” eventualmente
intrínseca à série do que os elementos narratológicos que
permitem discutir as associações a conceitos de representação da
alma, de Deus, etc. -, para tentar perceber os mecanismos de
construção do si, da identidade, face a esse sub-género, e que
terão implicações sobre o leitor; o último discutindo séries
como Planetary
e Promethea,
os quais ultrapassam aquela questão da identidade para chegar a uma
“multiplicidade da identidade” [multiplicity
of selfhood], mostrando como mesmo o
que parecem ser ficções escapistas, anti-realistas e explodindo os
géneros poderão fazer nutrir princípios de reflexão complexos
sobre a identidade humana, que é sempre o substrato das questões
religiosos e espirituais.
Death,
Disability, and the Superhero. José Alaniz (University Press of
Mississippi) Para aqueles que se
recordam do livro anterior deste autor, sobre a banda desenhadarussa, poderá surpreender o tamanho salto temático e disciplinar
que se dá para este outro volume, mas quem tem acompanhado os seus
artigos, conferências e participações públicas surprender-se-á
menos, e verá aqui o coroamento de um trabalho aturado de
investigação em torno de questões que têm a ver, acima de tudo,
com a fragilidade do corpo humano. Curiosamente, este livro poderá
entrar num diálogo imediato com o volume de Lewis, unidos pela noção
de “morte”, ainda que Alaniz esteja mais interessado em
demonstrar como ela sublinha antes uma fragilidade bem humana que, a
maior parte das vezes, é invisível, menosprezada ou apagada nas
personagens fantásticas e quase imbatíveis dos super-heróis. O
autor quer mesmo demonstrar com este grande estudo como a morte e as
deficiências não são apenas um tema superficial ou decorativo,
digamos assim, do género, mas algo que tem uma função
estruturante.
Envolvendo um
trabalho reticular entre conceitos tais como os de masculinidade,
ideologia, deficiência, doença, morte, corporalidade, identidade, o
autor apresenta um aturado e denso estudo de uma série de
personagens (e histórias particulares) em torno dos dois grandes
temas: morte e deficiência. Encontramos então personagens como Thor
e o Demolidor, equipas como os X-Men e os Doom Patrol, para assinalar
a representação de deficiência, e o Super-homem ou o Capitão
Marvel (o Kree, para os entendidos), para se falar da morte. Os
leitores de A Morte do Capitão Marvel
recordar-se-ão, para a geração e
fãs, de um marco indelével, e que se encontra no centro do estudo
de Alaniz, que ilumina a maneira como a imperfeição e a
vulnerabilidade são, afinal, também definidoras destas personagens,
a uma primeira vista, perfeitas e invulneráveis.
Comedy,
Caricature, and the social order, 1820-50.
Brian Maidment (Manchester
University Press) Menos a ver com a
banda desenhada, ou até mesmo com as formas existentes no século
XIX que lhe dariam origem ou já participavam da sua história
primitiva, o livro do historiador cultural britânico procura
compreender o papel social, cultural e político que a imprensa de
cariz cómico, sobretudo ilustrada, teve naquele período particular
no Reino Unido, marcado pelo advento da era a que se chamaria
“Vitoriana”, enquanto bloco cultural. No entanto, não é de
menosprezar a influência que este estudo deveria ter para esta outra
área, nomeadamente no que concerne à relação entre a “arte” e
o “comércio”, a forma como as imposições do mercado levariam a
novas formas de expressão, as particularidades da circulação e
leitura colectiva de certas obras (as descrições das pessoas a
“lerem” os trabalhos nas montras é impagável e fonte de
permanente fascínio para nós, e há aqui um capítulo exclusivo
sobre esse tema, representando pelas próprias estampas), entre
outros aspectos. Os modos activos de coleccionismo, ou mesmo de corte
e costura (em scrapbooks),
da parte dos leitores, abre uma ponte de ligação a um livro também
recente de Thomas A. Bredehoft, The
Visible Text, já citado.
Ao contrário da
esmagadora maioria dos volumes já existentes, mais ou menos
profundos, sobre os mesmos “agentes” do período, o livro de
Maidment não discorre sobre os autores e/ou títulos mais famosos,
com Punch
à cabeça, ainda que haja um sumário capítulo final que lhe é
dedicado. Como se espera de um dedicado historiador cultural,
escava-se aqui trabalhos bem mais obscuros, que poderíamos dizer
corriqueiros,
banais,
“abaixo de um certo radar crítico” até, mas que por isso mesmo
constituem um retrato mais preciso e real da verdade histórica a que
dizem respeito. E, nesse sentido, Maidment não tem medo de colocar
em cheque alguns dos estudos propostos pelo pai da área, David
Kunzle. Mas encontrar-se-ão algumas referências expectáveis, desde
a emergência da ilustração associada a Dickens, com Robert
Seymour, passando por aquilo que passaria num certo jargão por
“personagens-tipo”.
Le conte et
l'image. François Fièvre
(Presses Universitaires François-Rabelais)
Como se entende pelo sub-título impresso na capa, o foco deste
estudo é balizado cronológica, geográfica e tematicamente. Mas se
à partida isso poderá fazer imaginar um corpus
relativamente limitado e até mesmo coerente no que diz respeito a
estilos, porventura, é de imediato desenganado pelo escopo
produzido.
Tal qual o livro de
Maidment, este volume dedica-se à área da ilustração, mas mais
associado ao género das Märchen,
isto é, os contos tradicionais alemães que, mais tarde, seriam
vistos um pouco por todo o mundo como “tradicionais europeus”,
senão mesmo “globais”. O que já de si demonstra um certo poder
de globalização, se o podemos dizer, ou tradução, de um conjunto
de textos específicos a uma cultura localizada mas que rápido
encontraram ligações “fora de portas”. No entanto, é preciso
recordar que estes contos foram coligidos menos imediatamente
enquanto simples “contos de fadas” do que como parte de um
projecto de antropologia cultural, que contribuía também para a
(re-)emergência de identidades nacionais.
Este livro estuda,
em parte, a “metamorfose” imaginativa e iconográfica que as
imagens de tantos autores tão diversos construíram naquele país,
podendo ser visto como um estudo de recepção e transformação,
sempre activa, claro. E de facto bastará colocar os nomes de Georges
Cruikshank, Richard Doyle, Walter Crane e Arthur Rackham (os quatro
autores centrais que compõe os quatro capítulos centrais do livro)
numa mesma linha associada aos contos do Grimm para percebemos que a
“tradução” pode ser drástica e dramaticamente diversa. Do
grotesco ao feérico, do maravilhoso ao simbolista, atravessando
vários “movimentos estéticos” e escolas, este livro é um
contributo quer para a história da ilustração, da arte, do livro
em Inglaterra, como para os estudos teóricos da ilustração, cada
vez mais articulados disciplinarmente. Os anexos de quadros
comparatistas, correspondência dos artistas, já para não falar da
argumentação sólida e contínua e as análises brilhantes, fazem
de Le conte et l'image
um livro obrigatório a todos aqueles que se dediquem às questões
de relação entre texto e imagem, ou como as segundas não são
apenas “ilustrativas” e “decorativas”, mas construtoras da
presença dos primeiros.
Nota final: agradecimentos
às respectivas editoras, pelas ofertas dos livros.
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