30 de janeiro de 2015

Quatro estudos.

Desta feita, angariámos aqui quatro títulos escritos por um só autor e apresentando uma tese, tema ou foco disciplinar. Nesta frente igualmente o avanço é substancial, e não se atém somente a leituras analíticas informadas pelas ciências literárias e/ou artísticas, mas tentam dialogar com áreas de interesse mais específicos e mais latas, desde a ciência militar e política, à religião, sociologia, etc. É claro que aquelas áreas mais clássicas, como a narratologia, a literatura, a comparação a linguagens tais como o cinema, o teatro, ou a procura de ligações a outras áreas afectas ao desenho narrativo, etc., não são de forma alguma descuradas, mas é importante que a expansão seja tanto lateral como em profundidade. Alguns destes volumes parecem prescrever sobre áreas já de certa forma abordadas por áreas exploradas anteriormente, enquanto que outros parecem burilar de facto novos territórios, ou apresentam inflexões de tal complexidade que se tornam pontos obrigatórios de passagem e reflexão por aqueles que se atribuam a tarefa de navegar estas águas. (Mais) 

American Comics, Literary Theory, and Religion. A. David Lewis (Palgrave Macmillan) Como se recordarão os leitores do Lerbd, este conúbio entre os estudos de religião e a banda desenhada, e para mais, o específico género dos super-heróis, não é de forma alguma um gesto inédito no que diz respeito a estudos académicos. Recordemos Dothe Gods Wear Capes? e GravenImages, para citar os títulos lidos por nós. De resto, o último volume é co-editado por Lewis.

Este volume está menos preocupado com a negociação de representação cultural de uma determinada crença ou sistema filosófico e místico do que com aqueles mecanismos narrativos típicos ou recorrentes de uma certa banda desenhada norte-americana, acima de toda a de superheróis. Sabemos como a morte é uma constante presença ou parada nas aventuras dessas personagens incríveis, mas também o quanto ela não significa necessariamente o fim da história ou sequer a palavra final na existência das personagens. Trata-se precisamente de um universo que permite explorar, ficcionalmente, e ancorado mais ou menos em cosmovisões preexistentes, no que é a “vida após a morte”, ou a afterlife, na expressão central deste livro. O autor procura, em primeiríssimo lugar, tornar o mais clara possível esta noção, separando-a de outros estados como a “não-vida”, ou a “imortalidade”, tal como podem ocorrer noutras acepções, géneros ou narrativas, para depois a relatar aos mais sérios estudos de sociologia da religião.

Seguem-se então quatro capítulos perfeitamente programáticos para explorar essa estratificação de saberes, abordando-se os vários textos que se julgam mais apropriados para o deslindamento das questões. Desdobrando a tipologia descritiva de Peter Coogan para o género de super-heróis, Lewis apresenta no primeiro capítulo “seis elementos” adicionais pertencentes ao sug-género da afterlife, procurando alistar ao máximo que personagens se integrariam neles. O segundo capítulo dá continuidade a esse exercício de arrolamento, descrevendo aquelas histórias onde temos acesso aos mundos da “eternidade”, sejam o Paraíso, o Inferno, o Purgatório ou outras paragens identificadas. Os dois últimos capítulos procuram afunilar o foco, e os instrumentos, com o terceiro elegendo uma única história, Fantastic Four: Hereafter - onde interessará menos a “qualidade estética” eventualmente intrínseca à série do que os elementos narratológicos que permitem discutir as associações a conceitos de representação da alma, de Deus, etc. -, para tentar perceber os mecanismos de construção do si, da identidade, face a esse sub-género, e que terão implicações sobre o leitor; o último discutindo séries como Planetary e Promethea, os quais ultrapassam aquela questão da identidade para chegar a uma “multiplicidade da identidade” [multiplicity of selfhood], mostrando como mesmo o que parecem ser ficções escapistas, anti-realistas e explodindo os géneros poderão fazer nutrir princípios de reflexão complexos sobre a identidade humana, que é sempre o substrato das questões religiosos e espirituais.

Death, Disability, and the Superhero. José Alaniz (University Press of Mississippi) Para aqueles que se recordam do livro anterior deste autor, sobre a banda desenhadarussa, poderá surpreender o tamanho salto temático e disciplinar que se dá para este outro volume, mas quem tem acompanhado os seus artigos, conferências e participações públicas surprender-se-á menos, e verá aqui o coroamento de um trabalho aturado de investigação em torno de questões que têm a ver, acima de tudo, com a fragilidade do corpo humano. Curiosamente, este livro poderá entrar num diálogo imediato com o volume de Lewis, unidos pela noção de “morte”, ainda que Alaniz esteja mais interessado em demonstrar como ela sublinha antes uma fragilidade bem humana que, a maior parte das vezes, é invisível, menosprezada ou apagada nas personagens fantásticas e quase imbatíveis dos super-heróis. O autor quer mesmo demonstrar com este grande estudo como a morte e as deficiências não são apenas um tema superficial ou decorativo, digamos assim, do género, mas algo que tem uma função estruturante.

Envolvendo um trabalho reticular entre conceitos tais como os de masculinidade, ideologia, deficiência, doença, morte, corporalidade, identidade, o autor apresenta um aturado e denso estudo de uma série de personagens (e histórias particulares) em torno dos dois grandes temas: morte e deficiência. Encontramos então personagens como Thor e o Demolidor, equipas como os X-Men e os Doom Patrol, para assinalar a representação de deficiência, e o Super-homem ou o Capitão Marvel (o Kree, para os entendidos), para se falar da morte. Os leitores de A Morte do Capitão Marvel recordar-se-ão, para a geração e fãs, de um marco indelével, e que se encontra no centro do estudo de Alaniz, que ilumina a maneira como a imperfeição e a vulnerabilidade são, afinal, também definidoras destas personagens, a uma primeira vista, perfeitas e invulneráveis.

Comedy, Caricature, and the social order, 1820-50. Brian Maidment (Manchester University Press) Menos a ver com a banda desenhada, ou até mesmo com as formas existentes no século XIX que lhe dariam origem ou já participavam da sua história primitiva, o livro do historiador cultural britânico procura compreender o papel social, cultural e político que a imprensa de cariz cómico, sobretudo ilustrada, teve naquele período particular no Reino Unido, marcado pelo advento da era a que se chamaria “Vitoriana”, enquanto bloco cultural. No entanto, não é de menosprezar a influência que este estudo deveria ter para esta outra área, nomeadamente no que concerne à relação entre a “arte” e o “comércio”, a forma como as imposições do mercado levariam a novas formas de expressão, as particularidades da circulação e leitura colectiva de certas obras (as descrições das pessoas a “lerem” os trabalhos nas montras é impagável e fonte de permanente fascínio para nós, e há aqui um capítulo exclusivo sobre esse tema, representando pelas próprias estampas), entre outros aspectos. Os modos activos de coleccionismo, ou mesmo de corte e costura (em scrapbooks), da parte dos leitores, abre uma ponte de ligação a um livro também recente de Thomas A. Bredehoft, The Visible Text, já citado.

Ao contrário da esmagadora maioria dos volumes já existentes, mais ou menos profundos, sobre os mesmos “agentes” do período, o livro de Maidment não discorre sobre os autores e/ou títulos mais famosos, com Punch à cabeça, ainda que haja um sumário capítulo final que lhe é dedicado. Como se espera de um dedicado historiador cultural, escava-se aqui trabalhos bem mais obscuros, que poderíamos dizer corriqueiros, banais, “abaixo de um certo radar crítico” até, mas que por isso mesmo constituem um retrato mais preciso e real da verdade histórica a que dizem respeito. E, nesse sentido, Maidment não tem medo de colocar em cheque alguns dos estudos propostos pelo pai da área, David Kunzle. Mas encontrar-se-ão algumas referências expectáveis, desde a emergência da ilustração associada a Dickens, com Robert Seymour, passando por aquilo que passaria num certo jargão por “personagens-tipo”.

Le conte et l'image. François Fièvre (Presses Universitaires François-Rabelais) Como se entende pelo sub-título impresso na capa, o foco deste estudo é balizado cronológica, geográfica e tematicamente. Mas se à partida isso poderá fazer imaginar um corpus relativamente limitado e até mesmo coerente no que diz respeito a estilos, porventura, é de imediato desenganado pelo escopo produzido.

Tal qual o livro de Maidment, este volume dedica-se à área da ilustração, mas mais associado ao género das Märchen, isto é, os contos tradicionais alemães que, mais tarde, seriam vistos um pouco por todo o mundo como “tradicionais europeus”, senão mesmo “globais”. O que já de si demonstra um certo poder de globalização, se o podemos dizer, ou tradução, de um conjunto de textos específicos a uma cultura localizada mas que rápido encontraram ligações “fora de portas”. No entanto, é preciso recordar que estes contos foram coligidos menos imediatamente enquanto simples “contos de fadas” do que como parte de um projecto de antropologia cultural, que contribuía também para a (re-)emergência de identidades nacionais.

Este livro estuda, em parte, a “metamorfose” imaginativa e iconográfica que as imagens de tantos autores tão diversos construíram naquele país, podendo ser visto como um estudo de recepção e transformação, sempre activa, claro. E de facto bastará colocar os nomes de Georges Cruikshank, Richard Doyle, Walter Crane e Arthur Rackham (os quatro autores centrais que compõe os quatro capítulos centrais do livro) numa mesma linha associada aos contos do Grimm para percebemos que a “tradução” pode ser drástica e dramaticamente diversa. Do grotesco ao feérico, do maravilhoso ao simbolista, atravessando vários “movimentos estéticos” e escolas, este livro é um contributo quer para a história da ilustração, da arte, do livro em Inglaterra, como para os estudos teóricos da ilustração, cada vez mais articulados disciplinarmente. Os anexos de quadros comparatistas, correspondência dos artistas, já para não falar da argumentação sólida e contínua e as análises brilhantes, fazem de Le conte et l'image um livro obrigatório a todos aqueles que se dediquem às questões de relação entre texto e imagem, ou como as segundas não são apenas “ilustrativas” e “decorativas”, mas construtoras da presença dos primeiros.

Nota final: agradecimentos às respectivas editoras, pelas ofertas dos livros.  

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