Qual
é o prémio do mal? Não será o seu próprio exercício, a
recompensa imediata do que entende como prazer próprio,
independentemente das consequências que poderá ter? Não será
indiferente ao injusto, que perpetra os seus crimes num presente,
a justiça a que não atende no futuro? E qual é o papel do leitor,
do espectador, da testemunha mesmo de um objecto artístico, ao
enfrentar os mecanismos e ritmos desses mesmos males? Erzsébet
é, possivelmente, uma exploração, dura e cruel, dessas perguntas. (Mais)
É
curioso que, num momento em que as estratégias recentes em relação
a alguns autores se entregam a exercícios de publicitação do seu
“regresso”, isso também se verifique em relação ao autor
português que assina como Nunsky. Se as suas prestações foram
esparsas e relativamente obscuras nos anos 1990, bastaria recordar
“88”, uma história com mais de 30 páginas e publicada em 1997
como o número 13 do fanzine Mesinha de Cabeceira para o
colocar no mapa, e de forma perene. Essa história, que seguia uma
mesma tendência inaugurada pelo Love & Rockets no
seguimento de uma cultura afecta ao rock underground (se bem
que em vez do hardcore punk californiano dos autores chicanos, se
aproximava mais de uma espécie de Swans ainda mais destrutivos?),
não deixava de ter uma dimensão trágico-romântica, que volta a
ser o tema central deste novo livro, mas onde o romântico está
presente antes na sua dimensão histórica e o trágico se aproxima
do monstruoso.
O
título é o nome próprio da personagem, que corresponderá ao
português “Isabel”. Membro da família nobre dos Báthory da
Hungria do século XVII, a condessa Ecsedi
Báthori Erzsébet
ficaria famosa nos anais da história pelo seu infame papel no
desaparecimento, tortura e assassínio de dezenas, senão centenas,
de raparigas da sua região (os números exactos nunca foram
precisos), supostamente para seu gáudio pessoal. Num contexto já
violento do seu tempo, dada a guerra entre a Hungria e o Império
Otomano, os crimes de
Erzsébet Báthori chocariam a cristandade a que pertencia, e não
tardariam muito os mitos em torno das suas acções, fazendo-a
banhar-se no sangue das raparigas para se manter jovem, assim como
aproximá-la de rituais satânicos e até mesmo “vampirizá-la”.
Nunsky
não está muito preocupado em apresentar uma versão mais histórica
ou mais fantasiosa, mas um equilíbrio efectivo entre as duas
tendências (que não são necessariamente “opostas”). Utiliza
provavelmente várias fontes e descrições dos crimes da condessa, e
posteriores lendas tecidas em torno deles, para criar uma sua própria
versão. Na capa de trás, a condessa Báthory é comparada a Gilles
de Rais e ao Príncipe Vlad Draculea, o que demonstra desde logo a
necessária negociação entre crimes reais, posteriores construções
hiperbolizadas, lendas, e ficção tão efectiva – como no caso de
“Drácula” - que se torna depois difícil de destrinçar os
elementos verdadeiramente verificáveis sob o prisma da ciência
histórica e os elementos fictícios. Mas enfim, o que importa, neste
campo em particular, é escolher um caminho e cumpri-lo da melhor
forma. Nesse sentido, Erzsébet escolhe o da ficção negra,
em todas as suas possibilidades de horror.
O
autor procede por pequenos saltos e elipses. O livro não apresenta
nem uma narrativa totalmente fluida, num sentido policial do termo,
isto é, em que tudo é explícito e apresentado, nem tampouco
reforça a inteligibilidade dos eventos através de informações
textuais – nota do autor, narrador externo, documentação
extratextual, etc. Sendo possível procurar informações histórica,
ou semi-ficcionada, noutras fontes, a leitura de Erzsébet
pretende antes centrar-se nos eventos que representa, numa escolha
económica.
Ainda
assim, temos aqui o arco quase completo da sua vida, começando
alguns meses antes do seu casamento com o também nobre Ferenc
Nádasdy, ou Ferkó, como é tratado familiarmente, até ao seu
julgamento e pena, muito depois da morte do marido. Não se exploram
com qualquer detalhe as batalhas contra os muçulmanos, as intrigas
palaciais, as circunstâncias da morte de Ferkó, os filhos de ambos
quase surgem apenas por tabela. Muitos desses pormenores biográficos
ou episódios têm de ser compreendidos no intervalo de duas ou três
vinhetas, em leituras atentas, em suposições. A atenção não se
divide, elegendo a emergência das tendências sádicas, violentas e
destrutivas de Erzsébet acima de tudo.
As
primeira cenas dessa violência irrompem sem qualquer explicação,
nem o autor procura criar relações de causa-consequência
psicológica, a menos que vejamos no “aborrecimento” que ela
acusa a mono-causa dos seus divertimentos cáusticos. Estes, todavia,
vão como que aumentando de grau de intensidade e, graças a
cruzar-se com uma velha a que talvez não seja errado chamar de
“bruxa”, chamada Dorkó, atingem um grau máximo de paroxismo e
atrocidade, sobretudo quando o sangue derramado das vítimas passa a
ser visto como elixir de juventude e poder, mas também objecto de
uma espécie de inveja e ódio sem sujeito. Há uma cena que parece
mostrar uma hesitação da parte da protagonista perante o “preço”
dos seus desejos, mas rapidamente ela abandona-se a eles. Isto é, há
uma espécie de “loucura” que se começa a instalar, mas ela é
vaga e imprecisa. Muitos momentos revelam-se fantásticos, mas é
complicado apercebermo-nos se se tratam de alucinações febris de
uma determinada personagem (nem sempre Erzsébet) ou “realidade”
(fantástica), mas é essa mesma imprecisão que se torna central na
narrativa.
Essa
imprecisão tem também um domínio religioso complexo, uma vez que
Erzsébet parece continuar a crer em Deus (“Istén”, já que o
autor usa profusamente termos húngaros), mas existem bastas
referências ao Diabo (“Ördög”): uma releitura talvez pudesse
apontar, quem sabe, que no fundo ambos seriam não tanto faces de uma
moeda, criando-se o mais puro dos maniqueísmos absolutos, mas
simplesmente formas de entendimento de um mesmo espectro...
Uma
outra economia do livro está nas palavras, ou na matéria verbal.
Quase metade das pranchas é desprovida de diálogos ou de qualquer
“som”, se bem que algumas sejam interrompidas por onomatopeias.
Todavia, mesmo algumas das pranchas representando as torturas mais
hediondas optam por não revelar nada da dimensão sonora, o que as
torna particularmente cruéis e intensas, para além das estratégias
visuais escolhidas (o traço, a cor, o enquadramento, etc.). e quase
todas as outras pranchas, mesmo nas cenas mais convencionais, de
diálogos entre as personagens, poderá conter uma ou duas vinhetas
em que o silêncio marca não apenas uma pausa na acção mas um
qualquer choque ou desvio emocional das personagens.
Por
outro lado, porém, há momentos pesados de texto, sobretudo quando
cartas são trocadas entre as personagens (desconhecemos se citando
documentos reais que tenham sobrevivido), tecendo como que súbitas
ilhas densas dos sentimentos e acontecimentos. Tudo isso concorre
então para essa decisão ambivalente entre acontecimentos reais
(mesmo que diegéticos, repetimos) a projecções fantasiosas.
O
traço de Nunsky mantém-se como havia surgido em “88”: contornos
grossos, negros e fechados, criando objectos gráficos de grande
solidez, irmanável a Charles Burns, comparação recorrente, porque
advindo de uma abordagem técnica na qual encontraríamos também
Michael Kupperman, João Maio Pinto, Igor Haufbauer, ou outros. Uma
cena como a que mostramos neste parágrafo parece emergir de uma
espécie de variação estilística sobre cartas de jogar, como Jason
Little tentou em Jack's Luck Runs Out.
O
autor usa aqui uma ou duas gradações de cinzentos, complementando o
contraste absoluto entre o branco e o preto, de maneira a criar
volume e texturas, aumentadas também pelo aturado e brilhante
trabalho de padrões, tramas, linhas cruzadas expressivas. A
composição, estritamente ortogónica mas em variações retóricas,
é contrastada com o uso de enquadramentos e planos oblíquos, as
formas arrendondadas e as linhas diagonais, o que incute um estranho
equilíbrio entre formas estáticas hieráticas com um dinamismo
dramático, perfeitamente apropriado à temática (que lá está, tem
mais afinidades com “88” do que poderia aparentar à primeira
vista).
A
valência pictórica do autor, porém, não se deverá encerrar nessa
abordagem, já que a capa mostra um desenho a grafite muito mais
suave e livre.
Condenada
a ser emparedada, o autor mostra a cena final apenas através da
sequência visual de três vinheta numa única página. Segue-se
porém, uma espécie de salvação. Vemos Erzsébet arranjando-se de
novo, em toda a sua glória e beleza fria e nobiliárquica, como que
atravessando a superfície de um espelho feito líquido e a ser
recebida num fantasioso palácio, regressando à sua posição de
poder e fausto. Traduz isso a loucura final, na solidão? Alguma
realidade paralela a que teve acesso? Apenas uma nota fantástica da
parte do autor, na tentativa de premiar a vilã?
Nota
final: agradecimentos ao editor, pela oferta do livro.
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