Depois
do momento em que se aventara o fim das publicações de papel pelo
advento das plataformas digitais, e a compreensão de que esse
aparecimento tinha um propósito e limitações específicas, e que
levaria a uma paradoxal maior atenção à produção cuidada do
livro enquanto objecto, atomizando e entrosando com uma maior
acessibilidade e democratização dos meios de produção (pelo menos
no “nosso” mundo ocidental), observando a multiplicação de
meios e formas de edição, materiais e ferramentas, não deixa de
ser salutar e razão de celebração encontrar quem ainda cultive
modos de produção agora vistos como “clássicos”. Falamos dos
fanzines em formato A5. Existindo ainda quem os cultive
afincadamente, a experiência de rigor editorial levada a cabo pela
plataforma Façam fanzines e cuspam martelos, um trabalho coordenado entre os artistas Catarina Domingues e Tiago Baptista, este último partilhando de forma mais contínua os mundos da
banda desenhada e das artes visuais, tornam este título em
particular, Preto no branco (primeiro número de Setembro de
2012, último de Novembro de 2014), um objecto obrigatório de
seguir. (Mais)
Deixaremos
aqui algumas breves considerações e descrição.
Pela
observação das capas (pelo menos dos três primeiros números) e o
título, a referência a Malevitch é não apenas clara como
pretenderá funcionar como um ponto de partida em termos de
significado. Se bem que o contexto sócio-cultural das vanguardas
russas não seja de todo o mesmo na actual conjuntura portuguesa,
ainda assim poder-se-á imaginar que o grupo de artistas
informalmente reunidos sobre a bandeira desta publicação, ou da
plataforma editorial, possam encontrar nos mecanismos de expressão
política permitida pela arte, e explorados pelos Suprematistas (e
outros movimentos que lhe estão mais ou menos associados pelo
contexto), modelos de acção que agora procuram seguir. Essa
dimensão terá a ver com um posicionamento crítico em relação ao
tipo de circulação cultural que existe na nossa sociedade. A
velocidade dos meios de comunicação e das ditas redes sociais leva
muitas vezes a um silenciamento do pensamento, precisamente porque a
aceleração não permite a reflexão. Ou esta é reduzida somente a
um conjunto inarticulado de opiniões súbitas, “likes”,
comentários sobre comentários, e pouco mais.
Por
isso, não deixa de ser surpreendente, e bem-vinda (com a excepção
do 1º número), uma dimensão ensaística tentada nestas páginas.
Para além de um texto sobre fanzines e a sua cultura (no número 2),
que tem tanto de elementos já repetidos em tantas outras ocasiões
por tantos fanzinistas como informações mais pessoais e algumas
observações mais especificamente originais – uma certa
honestidade sobre o alcance destas publicações, mas igualmente
sobre a efectividade do seu posicionamento político – são
apresentados como que “dossiers” em torno de bandas musicais
sobretudo numa perspectiva que une a dimensão sonora à visual. Os
textos são de Tiago Baptista e começam de formas idênticas, mas as
próprias bandas revelam afinidades entre si: os Laibach, os Crass e
os Swans. Todas elas devedoras de um posicionamento extremamente
crítico à cultura do tardo-capitalismo que se vê confrontado com
esta mesma linguagem das publicações, e os trabalhos que veicula.
Além disso, não são propriamente “novas” (bem pelo contrário,
até poderão ser vistas como “nostálgicas” para alguns de nós),
o que revela desde logo a relação com o tempo instituída pela
Preto no branco.
Quanto
ao “nosso” território... Encontraremos bandas desenhadas de
autores tais como o próprio Tiago Baptista, André Pereira, Marco
Mendes, Filipe Felizardo, Hetamoé, Amanda Baeza, Zoran Jovic,
Francisco Sousa Lobo, José Lopes, e desenhos soltos ou em ciclos de
Ana Biscaia, Tiago Borges, André Lemos, mais ilustrativos, digamos
assim, e de Catarina Domingues, mais próximos de um certo circuito
das artes visuais. A participação de Sara & André, João Fonte
Santa, por exemplo, demonstra as ligações a esse circuito, para
além da “ponte” que Tiago Baptista, de certa forma, pressupõe
(ainda que não “represente”). Mais, no caso das bandas
desenhadas, esses trabalhos foram alvo ora de reedição noutros
formatos, colectâneas ou antologias, ou já vinham de publicações
anteriores (sobre algumas das quais já havíamos dado conta).
Catarina Domingues, a outra editora do projecto, é também cultora de várias publicações a solo que
reúnem desenhos em articulação ou não com textos ou conceitos que
presidem às escolhas editoriais, em títulos tais como Carta
sobre a névoa, Nuvens e Recordação (todos
disponíveis no blog do selo editorial – é nele ainda que
encontraremos o outro zine de Baptista, Cleópatra, por
exemplo) Mas há ainda poesia, poesia espacial, e trabalho de
colagens, mail art (?) e manipulação fotográfica, algumas dessas
prestações devedoras de uma qualquer referência do mundo
artístico, outras procurando caminhos mais solitários.
Nota
final: utilizámos as cópias da Oficina do Cego, e agradecemos a F.
A. pela oferta do vol. 4.
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