O livro
passa então para outro nível da narrativa, e reconta a biografia desta mulher,
a sua luta contra a pobreza, o trabalho nas fábricas de charutos, o seu
casamento com o dono da fábrica, por mero interesse económico deste (garantindo
uma “empregada” fiel e gratuita)… Mas como o tom da história tivera início como
uma história de fábulas (“Era uma vez…”, já para não falar do título)
rapidamente entramos num ambiente feérico, digno da Gata Borralheira. Conchita
misteriosamente contrai uma doença de alergia ao tabaco, o que a obriga a
viajar de barco para a Suíça. Durante essa viagem, ela conhece, pela primeira vez,
o que significa o verdadeiro amor, apaixonando-se por um pobre marinheiro
endividado, um norte-americano que fuma tabaco barato, mas cubano!, em
cachimbos que ele próprio esculpe. Este homem rejeita o interesse de Conchita e
separam-se em vida para sempre. Conchita não chega sequer em vida ao seu
destino hospitalar, e a sua alma acaba depositada no último charuto que enrolou
na viagem, parte dos 25 que acabam numa caixa. Esta passará pelas mãos do
marujo, que finalmente se apercebe do significado do amor que lhe fora dirigido.
Todavia, antes que possa de alguma forma deliciar-se com essa após a morte, ele
próprio acaba por morrer e, por sua vez, a sua alma enovela-se com o seu último
cachimbo.
O grau de
fábula e de serendipidade da novela continuarão, ao ponto de colocarem a caixa,
como vimos, mas também o cachimbo, nas mãos de Orson Welles, a quem as almas
revelam esse amor pós-tumular. Porém, apesar dele compreender e querer mesmo
defender e permitir que esse amor pudesse continuar de forma mágica, as últimas
páginas fazem com que o embate e a tensão entre ele e a sua mulher, Rita
Hayworth, levem a um final trágico para os amantes fantásticos que se amam sob
a forma de fumo.
Não se
trata de realismo mágico aqui, mas sim de um mergulho de cabeça no mundo do
maravilhoso, das fábulas. Ninguém se encanta com os acontecimentos, que para
todos os efeitos têm o efeito de real no interior da narrativa: as aparições
das almas, os pedidos que entregam, os desejos confessados e buscados pelos
adjuvantes. Mas tudo flui como se fosse a mais natural das consequências dos
acontecimentos humanos. Isto incute uma certa dimensionalidade plana a toda a
narrativa, como é típico das histórias de fadas, onde é menos importante um
desenvolvimento psicológico, ou uma reflexão complexa sobre as verdadeiras
emoções humanas ou a condição das vidas reais, do que uma simples intriga que
espelhe uma dimensão, mesmo que
simples, sonhada, diáfana, leve, do ser humano. E é isso o que The Cigar That Fell In Love With a Pipe
é, e pouco mais. Como diz o próprio Orson Welles, “pipe dreams”, mas porque não
alimentá-los de quando em vez?
A voz que
nos conta esta fábula pertence a um narrador omnisciente e externo, mas o qual
parece ter um estranho acesso demiúrgico ao diálogo com as personagens. Isto é,
não há propriamente uma total separação entre os níveis narrativos, uma vez que
as personagens, de quando em quando tecem comentários ou ripostam em relação a
algo “dito” pelo narrador. A menos que a entendamos como sendo uma projecção ou
continuidade da do próprio Welles. No entanto, isto provoca menos um efeito
metaléptico ou confuso do que aumenta o grau de fábula de toda a narrativa.
Não
deixam de existir alguns desequilíbrios. Mesmo não conhecendo a vida íntima do
casal Orson Welles e Rita Hayworth, num casamento atribulado que durou poucos
anos, o foco de admiração de toda esta obra está centrado no primeiro, apesar
de não seremos testemunhas de quaisquer acções ou sentimentos que nos permitam
“arredondar” a personagem. Isto é, Orson surge aqui apenas como pivot da narrativa, a tal voz externa, e
como fumador inveterado dos charutos que lhe foram enviados. Por seu turno,
Rita acaba por surgir apenas como uma mulher levada pelas suas emoções
“descontroladas”, e é representada como uma personagem egoísta, ensimesmada,
vaidosa e vingativa, o que leva a uma representação desequilibrada dos sexos.
Espelho dos valores em voga na década representada? “Homenagem” ao que
testemunhamos nos filmes da época, citados ou não? É claro que os autores
exploram essa faceta para não apenas utilizarem o antagonismo amoroso entre
Orson e Rita como imagem distorcida do amor espiritual entre Conchita e o
marinheiro, mas não deixa de resultar como algo mecânico, calculado,
premeditado, retirando um pouco da emoção mais genuína que poderia ter tido
lugar. Além disso, como ditam os mecanismos de muita da ficção “explicativa” –
aquelas histórias que são contadas para finalmente
explicar a razão de determinado evento -, todo o busílis dos charutos entregues
a Welles revelar-se-ão a razão da
separação absoluta do casal. Mas, mais uma vez, quer jogando essa razão contra
a história real quer contra a representação das personagens, não encaixa na
perfeição. Esta dimensão, estamos em crer, será da responsabilidade principal
do escritor David Camus, autor francês (esta edição é a original, ainda que o
texto tenha sido escrito em francês e traduzido [o que, não sendo inédita enquanto experiência de colaboração transatlântica, promete poder ser cada vez mais normalizada]). No entanto, mesmo a dimensão
visual parece reconfirmar essa distribuição de papéis, dadas as formas de
expressão dos rostos, posição dos corpos, enquadramentos das acções, etc.
Se a capa
deste livro, simples e elegante, nos remete, e até corroborado um pouco pela
matéria da história, para os irmãos Hernandez, o traço de Abadzis é menos
rigoroso do que os autores chicanos.
Na verdade, há um grau muito menor de consistência nos desenhos deste autor,
que antes opta por explorar precisamente efeitos de grande diferenciação de
cena para cena, ora utilizando abordagens mais minimalistas, ora mais
expressivas, ora exagerando os contornos cartoonescos ou mesmo próximos de
algum cinema de animação ora procurando uma acalmia mais próxima da caricatura
clássica. Ainda assim, pode-se encontrar nessa flutuação alguma preocupação em
buscar o mais correcto “tom gráfico” para condizer com a cena em particular, e
se se seguirem as aventuras do seu Hugo
Tate, compreender-se-á o nível de pesquisa que o autor gosta de fazer sobre
essas abordagens divergentes num mesmo espaço de expressão.
Além
disso, em determinados momentos - e sobretudo sublinhado pelo trabalho
competente, sólido e expressivo da cor -, como as que mostram o estúdio cheio e
detalhado de Orson Welles, ou as cenas que sobrevoam as paisagens rurais
habitadas pelo corpo, a mente sonhando ou a alma de Conchita, ou a sequência
final da alma, em dor mas liberta, subindo em direcção ao sol, tornam este
livro guardador de algumas belas cenas.
Nota
final: agradecimentos à editora, pelo envio do livro. Imagens colhidas da
internet.
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