24 de janeiro de 2015

Bad Houses. Sara Ryan and Carla Speed McNeil (Dark Horse)

Eis uma ideia produtiva, já tentada neste espaço de outras maneiras. Se a banda desenhada é considerada como parte da, ou pelo menos relacionada à, literatura num sentido lato, e se aceitarmos o continuamente extensível campo dos ditos “romances gráficos” no que diz respeito à sua autoria, público e modos de circulação, então é claro como a água que viremos cada vez mais a depararmo-nos com uma variedade tão larga quanto à da literatura. Isto leva necessariamente a que surjam títulos diferentes sob a luz, não tanto de grandes conquistas de temas e campos, mas de ligeiros incrementos no interior de um dado género ou estilo. (Mais) 

Isto pode parecer uma espécie de justificação para algo que “não traz nada de novo”, é verdade, mas se queremos olhar para a banda desenhada como um campo expandido, temos de estar cientes de que nem tudo o que é publicado, mesmo que possa ser visto como “alternativo”, “independente”, “maduro”, “contemporâneo”, ou “pós-genérico”, etc. tem necessariamente de ser entendido como algo passível de hipérbole, a figura que serviu à “defesa” da banda desenhada durante largos anos. Se no campo literário poderá haver casos para grandes expectativas e celebrações quando da publicação de escritores que tanto angariam renome de “primeira água” como massas, como Houellebecq e Murakami, e também casos de celebração para poesia ou ensaísmo brilhante que não vende mais do que três centenas de livros, também a banda desenhada conterá o mesmo tipo de nichos, relativos à sua área. E, para além de quaisquer extremos que se elejam, tudo o que vai circulando.

Bad Houses é um livro que viverá confortavelmente com vários descritivos, como “romance de formação”, “romântico”, “slice of life”, etc., mas o de “Young Adult” parece ser o mais apropriado, sendo Ryan uma escritora de livros desse particular campo literário, sobretudo em voga nos Estados Unidos, e outros países. Isto não significa que não haja em Portugal cultores do mesmo, mas o grau de profissionalismo e qualidade de produção insuflado não é o mesmo. Ryan é uma profissional que burila os ingredientes afectos a esse género (ou melhor dizendo, a esse ramo da literatura com um público particular pensado – e antes que se diga algo como “ a grande literatura não o precisa de fazer”, pensem em quantos jovens de 13 anos terão a capacidade para ler Herman Brochou os sobrolhos levantados se um adulto disser que o seu escritor favorito é Enid Blyton…),e Bad Houses não é diferente, mesmo que seja a sua primeira experiência em banda desenhada de grande fôlego, assim como se juntar o seu campo literário a esta forma de arte. Skim, das Tamaki, Same Difference, de Derek Kirk Kim, alguns dos títulos de Gene Luen Yang como AmericanBorn Chinese e Boxers & Saints, e Scott Pilgrim, de Bryan Lee O’Malley, entre outros exemplos, poderiam partilhar o mesmo campo.

A intriga está focada na relação entre os jovens Anne e Lewis, cada qual debatendo-se com as respectivas mães solitárias e controladoras, cada qual nutrindo uma espécie de desejo ou actividade secreta, cada qual a seu modo. O quase-fortuito encontro e cruzamento de ambos, e o quase perfeito oxímoro da relação que as mães têm com objectos – a mãe de Lewis trabalha em leilões de recheios de casas, tornando tudo comodidades passíveis de abandono, inclusive a memória do pai de Lewis, cuja identidade ele desconhece, e a de Anne acumula todos e quaisquer objectos que se lhe atravessam na vida, inclusive um novo namorado -, torna a estrutura de Bad Houses numa pequena jóia de acasos felizes, mas pauta-se por um grau de caracterização sobretudo realista.

O cenário social é a pequena cidade (fictícia, pensamos) de Fallin, no Ohio. Nada se passa nesse local a não ser a fantasia acordada mais ou menos partilhada por todos de sair dali para uma vida de horizontes mais alargados. Não parece que haja muitas pessoas, todavia, a tomar passos que levem à concretização dessa fantasia, com a excepção do pai de Lewis, que partiu faz muito. Nesse sentido, é possível que o livro procure responder a um sentimento comum entre as populações mais jovens destes meios sociais, onde as tensões não são particularmente dramáticas – não se debate o desemprego e a miséria, não há casos melodramáticos de prostituição, violência ou toxicodependência, e mesmo as drogas ou o alcoolismo que surgem são como que uma nota de caracterização, mas não a espinha dorsal de um drama. No fundo, quase se pode dizer que não há grandes dramas em Bad Houses. Existem zangas, existem tensões familiares, existem toda a negociação típica de um casal que começa a namorar, possivelmente pela primeira vez, e existe mesmo um clímax, até marcante, mas nada disso é explorado de maneira a tornarem-se os centros da narrativa. Esses estão dispersos na paulatina mas certeira forma como as personagens se aproximam uma da outra e, assim, atingem um novo nível de maturidade.

Por razão da profissão da mãe de Lewis e a obsessão da de Anne, é natural que os objectos guardados, trocados e armazenados ganhem uma proeminência particular. E esses objectos, que acabam por servir de âncora às várias personagens, também se revestem de um outro papel, mais propriamente narratológico. São pequenos pontos de inflexão para permitir articular as histórias centrais de Anne e Lewis com as dos outros personagens que os rodeiam, abrindo-se a um pequeno número de sub-intrigas, todas elas solucionadas no interior do livro, reforçando a ideia de unidade completa, simples e acessível a um grande público. Não se poderia chamar de “polifónica” a esta narrativa, de forma alguma, apesar de termos acesso a experiências e memórias para além daquelas associáveis aos dois protagonistas, demonstrando-se um arco de focalização da parte do mega-narrador bem mais alargado do que seria de esperar, mas nada que torne a estrutura complexa demais.


E essa é uma dimensão que merece uma atenção redobrada: a da relação entre os objectos e as memórias de cada um, como se eles fossem depositários ou agregadores de memórias, mas estas fossem bem distintas conforme a pessoa. Os objectos que atravessam vários personagens, pelas mais diversas razões, são pequenos exercícios de demonstração como as perspectivas podem ser opostas face ao mesmo evento, ou o grau de emoção e sentimento entregue pode ser desigual e, assim, tornar-se pomo da discórdia. Como escreve Sherry Turkle na introdução a Evocative Objects, os objectos juntam o intelecto e a emoção, e como evoca-lo é trazer à tona uma experiência vivida e uma forma de compreensão do mundo, ou esse esforço. A ligação destes objectos à história da cidade, por exemplo,  criam uma dimensão adicional. 

Carla Speed McNeil encontra-se aqui com uma prestação exemplar. Uma cena tão simples como Anne chegar a casa e atirar-se para a cama é mostrado de uma forma absolutamente fluida e real, desde a maneira como os detalhes se acumulam para criar um efeito de realidade, e depois se isolam completamente os objectos para uma focalização exacta. Como uma das artistas mais completas, se assim se pode dizer, da cena alternativa norte-americana, e com a sua saga inexplicavelmente descurada Finder, o seu traço sólido, decidido, e o seu talento de composição é explorado aqui de um modo menos espectacular do que no seu trabalho do fantástico, para servir a uma história em que se representa um quotidiano quase banal, mas comovente e onde sentimentos reais têm lugar. 

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