A
obra de Marco Mendes merece esse mesmo descritivo. Não se trata de uma sucessão
de livros que se vão acumulando nas estantes, e que poderão angariar mais ou
menos atenção de certos círculos, afectos à banda desenhada ou mais abrangentes
de outras esferas culturais. O mesmo ocorre com as pequenas peças que poderão
surgir nas mais diversas publicações, desde os mais humildes fanzines a
antologias internacionais. É que cada passo de Mendes contribui para um mesmo
fluxo, uma mesma pulsão e hausto, que nos faz revisitar o passado. Não é apenas
um projecto autobiográfico. Não é apenas um projecto de banda desenhada madura
e relevante para além de questões de imaginário ou tecnicistas. É um projecto
político, de uma voz singular. (Mais)
Como
repetimos em ocasiões anteriores, sobretudo em torno do Diário Rasgado, a esmagadora maioria do trabalho do autor é
constituído por pequenas tiras, usualmente de uma página apenas, oblonga, de
quatro vinhetas, as quais são passíveis de serem consideradas unidades
autónomas, mas que também existem enquanto fragmentos to tal fluxo maior. Por comparação
à obra de Edmond Baudoin, também a consideramos uma espécie de “Poema contínuo”,
como poucos autores cultivam, se bem que recentemente, a insistente obra e
diversificada de Francisco Sousa Lobo faça emergir muitas questões similares.
Contrastivamente, contudo, Zombie não
segue essa forma: esta é a primeira vez que o autor cria uma história longa,
linear, coesa e fluida ao longo de 49 pranchas (mais uma), e, consequência
inevitável, há uma maior unidade de tempo, espaços, protagonistas e tom do que
nas colecções anteriores.
O
livro começa com o Marco do livro (isto é, o protagonista do livro,
destrinçando-o do autor empírico) a ser conduzido pelo pai para visitarem uma
mulher num hospital, possivelmente a mulher do pai, com alguma doença grave,
mas que se vai aguentando. A curta viagem com o pai permite que ponham a
conversa em dia sobre a precariedade do trabalho de Marco, os pagamentos baixos
mesmo no interior de um emprego “prestigiante” (professor de ensino superior),
e o seu envolvimento com acções a que chama “subversivas”. O pai está algo
reticente em relação a essas acções, promovendo desde logo a introdução de uma
dimensão que sempre esteve presente no trabalho de Marco Mendes, e que neste
livro em particular ganha uma fulanização maior do que nos anteriores
projectos, e que, ainda, associado à dimensão do seu envolvimento com o projecto
Buraco (isto é, convidando a leituras
transversais e cruzadas entre vários projectos) se abre a uma dimensão da “política”
enquanto espaço de expressão, como já havíamos discutido sob o signo de Jacques
Ranciére. Recordemos que essa dimensão é possível de interpretar mesmo em
imagens singulares do autor.
Depois
disso, segue-se a tentativa de Marco, na Figueira, tentar contactar várias
amigas, numa espécie de desespero pela sedução. Almoço com a família, boleia
com um amigo (o Didi de livros anteriores e do tempo dos fanzines d’A Mula), um
encontro para jantar com amigos no Porto, e uma saída nocturna, que passa pela
tal acção subversiva – pintar esqueletos numa imensa Dança Macabra espalhada
pela cidade -, embater-se com um grupo de praxes académicas, uma saída nocturna
bem regada e dançada, e um fortuito encontro com uma amiga, já na madrugada,
mas que se coroa com um encontro sexual, seguido de uma partida melancólica.
Escusado
será dizer que seguimos aqui todas aquelas informações disponibilizadas no
próprio texto e que, mesmo compreendendo o filtro autobiográfico pelo qual são
apresentadas, nada permite que possamos confirmar se se trata de uma “verdade
judicial” – esteve ou não o senhor às x horas neste local? Passou ou não a
noite com y?, etc. – nem que tal seja pertinente. O peso da “autobiografia”,
neste caso em particular, e de novo, tem um significado de efeito de
intensidade junto ao leitor, e não de falsa intimidade entre este e o autor
empírico.
Curiosamente,
esta estrutura narrativa, ou pelo menos uma sua compreensão possível poderia convidar a um estudo comparatista
com um importante romance português, de Nuno Bragança: Directa, de 1977.
Há uma dérive
urbana, noctívaga, ininterrupta, contínua em Zombie que espelha em parte
a de Directa, mas se no romance há como que um fito central, um objecto
de atenção e tensão narrativa, no livro de Marco Mendes esse movimento segue
mais um ritmo livre, à bolina dos vários momentos acumulados: os encontros
sucessivos, os pequenos desvios que cada um proporciona, e que ao mesmo tempo permitem
que se conduza a um olhar particularmente estratificado, social e
culturalmente, da vida no Porto. E se existem particularidades dessa cidade, as
suas consequências de discurso politizado espelham a situação actual no país,
senão mesmo para além dele, como resposta a uma espécie de desalento alimentado
pelas consequências do tardo-capitalismo aliado às forças políticas vigentes.
Ao contrário do
livro de Bragança, não há nenhuma nota ao leitor ou prólogo, se excluirmos a
imagem que surge antes da história, uma cena que sangra a toda a superfície do
papel, de Marco desenhando num dos miradouros do Porto, possivelmente com
alguns dos seus formandos de desenho (como já havia sido explorado em Diário
Rasgado). Essa cena, porém, não tem um elo imediato com o que se seguirá.
Sem quaisquer âncoras temporais ou espaciais, simplesmente somos introduzidos à
acção, acompanhando Marco e o pai. Não existem jamais quaisquer identificações
inequívocas ao longo do périplo do protagonista, o que nos obriga, enquanto
leitores, a criarmos as redes de ligação entre as várias personagens e os
espaços percorridos. O facto de existir também uma clara dimensão
autobiográfica, ainda que mais “disfarçada”, no romance de Nuno Bragança, não é
de somenos importância nesta hipotética aproximação.
Não é de forma
alguma inédita no autor esta estranha equação entre uma “vida privada” e uma “posição
política”. Também em Diário Rasgado existia
um foco secundário (até em termos numéricos) nas suas relações amorosas, com a “Lili”,
intercalado com acontecimentos de testemunha social: em torno dos sem-abrigo,
da precariedade, da pobreza, dos discursos políticos, etc. Mendes não está
interessado num discurso politizado sob a forma panfletária ou ensaística, à la
Squarzoni, Sacco, ou mesmo como alguns dos seus companheiros na Buraco procuram
tecer os seus trabalhos. Não se trata aqui de criar uma hierarquia entre esses
trabalhos tão díspares, mas simplesmente compreender os diferentes mecanismos. Por
exemplo, se existe um foco inevitável no Marco, há aspectos que poderão fazê-lo
cair fora de uma simpatia imediata, como a aparente sofreguidão algo
adolescente em procurar sistematicamente companhia feminina, mesmo sob o
aparente afastamento da personagem “Maria”, citada várias vezes, mas aqui longe
do plano presencial. Tudo isso funciona como uma espécie de peso real, de
efeito de realismo para depois providenciar um foco testemunhal, e quiçá de
resistência, aos temas políticos que surgem, ainda que de forma oblíqua.
Como já havíamos
dito numa outra ocasião, os sentimentos demonstrados pelo Marco e pelos seus
amigos são aquilo a que a autora Sianne Ngai chamaria de “sentimentos feios”, isto é
“sentimentos menores e usualmente desprestigiantes”, que nada têm a ver com as
grandes paixões que movem heroicamente as personagens de grandes narrativas.
São sentimentos “explicitamente amorais e não-catárticos” (2005: 6), “sem um objecto
claramente definido”. Todavia, é precisamente essa a razão pelo qual “estão
mais aptos a produzir ambiguidades políticas e estéticas” como resposta ao
estado actual das sociedades tardo-capitalistas,como é o caso português, e a
que Mendes claramente responde (para todas estas referências, v. Ugly Feelings, de 2005). É por isso que,
no livro anterior, face a um discurso de Merkel, o Didi do livro não contrapõe
um argumento lógico e articulado, mas antes se peida. É por isso que na
Segurança Social, Marco resolve cantar e fugir pela fantasia. É por isso que se
repetem as estranhas deambulações solitárias ou tiras cómico-trágicas em torno
da noção de desemprego e precariedade.
“Nunca o uivo do
dinheiro se fez ouvir como hoje por todo o planeta”, diz George Steiner na sua
conversa com Antoine Spire (Barbárie da ignorância, um “hoje” que remonta a 2000 mas persiste,
subsiste e resiste). A sua voracidade, o seu desejo em colonizar toda e
qualquer dimensão da existência humana é galopante, e vai impedindo que haja
espaço de manobra para que se imagine sequer alternativas a esse pensamento. É
“inevitável” (uma das palavras favoritas dos governantes que se querem fazer
passar por pós-ideologias). Contra essa inevitabilidade, surgem não tanto
acções de paladinos, argumentos audazes com “soluções” e “propostas
equilibradas”, mas um arrojo em confessar sentimentos “feios”, que surgem então
como pequenas resistências. Se não podemos dizer que haja em Zombie o mesmo tipo de humor desabrido
do que noutras ocasiões, ainda assim há espaço para uma negociação permanente
entre o humor e a gravidade, o exagero e a sobriedade, e esses mesmos
sentimentos.
Regressando por um
parágrafo à tentativa de comparação entre Marco Mendes e Nuno Bragança,
poderíamos dizer que a prosa inventiva, de ornamento complexo, ainda que
não-barroco, do escritor poderá encontrar um eco no plano visual pela escolha
de Marco Mendes em criar imagens que são menos do que límpidas e legíveis, e se
pautam por uma complexa camada matérica, opaca, quase impenetrável, a qual
revela não apenas um imediato prazer no fazer como uma espessura que
acaba por incutir uma exigência no significado. Uma espécie de lentidão em
beber as imagens. De uma forma mais técnica, houve alguns obstáculos em
conseguir digitalizar com maior precisão os desenhos originais, feitos com
aguarelas densas, próximas do burilar da pintura, menos do que das artes
gráficas, e de “matizes impossíveis”, nas palavras do autor (e que poderão ser
confirmadas nas várias exposições programadas, uma das quais abriu esta última Sexta-feira na galeria
Abysmo, em Lisboa). Também neste plano há uma distância de Diário Rasgado, que atravessou processos “sujos” de anos a fio, de
vários materiais, e de Anos Dourados,
de desenhos à vista.
Um dos eventos
centrais do livro, se assim se pode dizer, é o encontro do protagonista e uma
amiga que o acompanha (nas tais acções subversivas levadas a cabo durante a
noite) com uma acção de praxe académica, com os “doutores” nas suas fardas
pretas e os caloiros a serem humilhados de formas consabidas. O ensaio final de
Samuel Buton, incorporado no livro não tanto como complemento e menos ainda
como posfácio, mas como moeda de troca nesta discussão sobre formas de
resistência política, foca sobretudo essa realidade social específica, e se bem
que a abra a um contexto mais alargado, sublinha a portuguesa.
Por essa razão,
abster-nos-emos de tecer grandes considerações sobre esta dita “tradição
académica” abominável, já que subscrevemos o texto de Buton, e até mesmo - tendo-nos
pautado quando foi altura disso, por esses princípios -, encontrando nestes
comportamentos das comissões de praxe tão-somente um mecanismo podre de
replicação social das mais reles práticas de humilhação, poder e rebaixamento
humano e cultural, já que todos aqueles aspectos positivos que usualmente são
apontados são “conversa para boi dormir”. Não se pode aceitar que haja uma
necessidade de, por um suposto aproximar humano e solidário, se tenha de passar
por comportamentos torcionários. “Inócuos” só o serão considerados por quem não
partilha a vergonha que significa rebaixar um ser humano numa qualquer sua
condição. Acrescentaremos apenas que esta realidade espelha de uma forma clara
os princípios da sociedade corrente, a que os filósofos Foucault e Deleuze
chamaram do “controlo”, e Byung-Chul Han de “sociedade transparente”. Este
último, aliás, discutindo aquele conceito dos pensadores franceses, aponta
sobretudo a atomização e partilha, voluntária, da vigilância. Escreve o autor
sul-coreano: “A peculiaridade do panóptico digital está sobretudo em que os
seus próprios habitantes colaboram de maneira activa na sua construção e
conservação, na medida em que eles mesmos se exibem e despem”. Sob a óptica
dessa noção, a participação voluntária nas micro-agressões de todos os dias,
sobretudo nestas perfeitamente evitáveis das praxes, a sua replicação contínua,
não deixa de ser parte desse contínuo tecido da “construção e conservação
activa”.
Não deixa de ser
curioso que um dos “doutores” acusa primariamente os protagonistas de serem “comunas
de merda”, uma outra resposta pré-preparada e mastigada que nada explica, mas
serve aos mesmos que, de boca cheia, falam de “valores”, “tradição” e “inevitabilidade”.
De novo, e justificado a essa luz primária, senão mesmo bestial, a tal
resistência “feia” em debate no livro.
Curiosamente, há
uma imediata reacção, quase de repulsa, ao vermos o texto de Buton impresso de
uma forma estranha, como se estivéssemos perante um mero erro de impressão. O
texto é apresentado organizado a partir do princípio das duas colunas, mas
irregulares e com citações e caixas flutuantes e interrompendo esse fluxo. Além
disso, a própria mancha do texto parece mal impressa, aqui e ali, dividindo uma
coluna em boa e má impressão, como se houvesse a passagem de um rolo de tinta
na diagonal, etc. Porém, será surpreendente saber que não se trata de um erro
imputável à gráfica, na sua produção final, mas uma escolha propositada da
designer gráfica, Not Wolf. É menos importante compreender a “razão” (para a
qual bastaria uma entrevista) do que o “efeito”, que remete de novo à tal
espessura e estranha ornamentação a que aventámos acima quando falámos de Nuno
Bragança. Como se se esses desvios da legibilidade imediata, da clareza,
obstáculos à “invisibilidade” da forma, sublinhasse de forma veemente a sua
presença e, logo, às marcas que importam atravessar para garantir a existência
de um objecto nas nossas mãos. Quer dizer, são tudo opções que tornam visíveis
o texto, no sentido específico que Thomas A. Bredehoft lhe incute num
recente livro. Em vez de pensarmos no “texto” (o que, neste contexto, inclui a
visualidade da banda desenhada) como uma camada medial que nos veicula um
significado, e é ele mesmo transparente, está ali apenas “para comunicar”, bem
pelo contrário ganha um peso em si mesmo, obriga-nos a ver (para além de
ler). “Ler não é transparente... mas um modo complexo de interpretar o
visível”, escreve Bredehoft (The Visible Text).
Quem são afinal os
zombies deste livro? Tratar-se-á
somente dos caloiros humilhados (a prancha de banda desenhada extra encontra-se
no centro do texto de Buton, assim como uma representação de uma manifestação
contra a “troika”, vista de uma perspectiva que abarca o cordão policial)? Ou
dos “doutores” que replicam o que aprenderam – desvendando assim uma certa
falta de inteligência e autonomia humana? Ou serão antes todos os cidadãos que,
no silêncio e inércia, “deixam passar”? Ou serão antes aqueles que não vêem,
não testemunham, não respondem? No clímax da parte da acção, Marco e os amigos
dançam, passionalmente abandonados, aos ritmos de “Zombie”, um dos mais famosos
hinos do afrobeat (extremamente politizado em si mesmo, logo não se tratará de
uma citação inócua, mas uma reapropriação significante) pelo seu pastor-mor,
Fela Kuti, que faz uma aparição fantasmática, extra-diegética, na noite. O excerto
da letra transcrita pelo autor é “Zombie no go think unless you tell am to
think”, o que serviria, de certeza, de moto a muitos dos cidadãos dessa sociedade
criticada pela obra. Mas também, sem dúvida, dos próprios protagonistas, nesse momento
de abandono no prazer da dança e da bebida.
Há lugar nessa tal
resistência política por este momento de prazer? O autor usa tanto vinhetas bem
delineadas entre linhas-moldura, como as apaga ligeiramente, e há um número de
balões de fala que ultrapassam os limites. Mas nessa cena de orgia musical e de
movimento, a irrupção de Fela apaga a fronteira entre as vinhetas, e os corpos
dos amigos, com Elif no centro, torna-a icónica. Uma possível, e excelente, definição
de democracia é aquela de Boaventura de Sousa Santos, quando o sociólogo a
apresenta como “toda e qualquer transformação de relações desiguais de poder em
relações de autoridade partilhada”. Ora se é precisamente nas cenas de torcionários
pseudo-académicos que essas relações de autoridade se vêem aqui representadas
não como passíveis de partilha mas de confirmação de hierarquias, é nesses
momentos de abandono, e da dérive de
um dia do protagonista que encontramos uma tentativa, alternativa, sofrida, de
colocar em causa esses mecanismos de confirmação de poder.
Nota:
agradecimentos à editora, pela oferta do livro, e a D.S.L., pela recordação e
associação a Directa.
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