Conforme informámos no
texto anterior, a produção acelerada e exponencial de volumes
académicos em torno de todas as dimensões passíveis de estudo da
banda desenhada tem-se tornado demasiado intensa e complexa para
podermos dar conta dela de uma maneira equilibrada. O que se
desejaria, e foi feito até à data, era uma leitura cabal, pelo
menos, dos livros, acompanhada por uma atenção rigorosa, uma
memória e associação à tradições e discussões similares ou
complementares, para depois se devolver ao leitor uma compreensão
dos argumentos, uma descrição das estruturas e, onde pertinente,
apontar os pontos cegos ou sublinhar as grandes forças. Enfim,
cumprir aquilo que George Steiner dizia ser a tarefa do intelectual,
que era ler um livro de lápis na mão.
Todavia, essa tarefa vê-se
agora drasticamente diminuída pela entrada massiva de livros que nos
interessaria conhecer com maior intimidade, e pela falta de tempo.
Assim sendo, procuraremos dois caminhos alternativos. Por um lado,
procuraremos angariar o apoio a investigadores e/ou leitores críticos
com as capacidades necessárias para esse tipo de leituras. Isso foi
brilhantemente cumprido por Ana Matilde Sousa nos livros sobre mangá
e animé, e já se encontram a lavrar outros artigos por outras
pessoas. Por outro, faremos apenas apresentações gerais, senão
mesmo superficiais, de alguns desses livros, pelo menos pour
prendre date, esperando que possam existir mais desenvolvimentos
adiante.
Comecemos, então, com
quatro livros dedicados a artistas singulares, também escritos por
autores individuais. (Mais)
Miyazaki's Animism
Abroad. Eriko Ogihara-Schuck (McFarland) O papel de
Hayao Miyazaki na história da animação japonesa é inegável, e é
muito provável que esse papel possa ganhar uma importância
igualmente significativa na economia global desta arte, não apenas
no que diz respeito a aspectos estéticos – suspendamos as
considerações vocais das comunidades de fãs -, mas igualmente no
que diz respeito a atitudes éticas e políticas das possibilidades
da animação mais comercial no círculo dos temas, as
responsabilidades técnicas, e uma certa abertura ao diálogo
multicultural e de construção de identidade que ela pode permitir.
Temas os quais, aliás, são centrais na sua obra. “Corrigindo”,
de certa forma, a ideia de que o meio da animação não poderá ser
“realista” por não “gravar” a realidade através da câmara,
a autora procura uma outra maneira de entender essa palavra,
realismo, num sentido, em primeiro lugar, demiúrgico-narrativo
(“criar-se um mundo”) e, depois, reflexivo (em que medida esse
mundo reflecte o nosso).
Seja
como for, o foco principal de Ogihara-Schuck
é o de estudar os temas da religião, espiritualidade, e com maior
detalhe o animismo nos animés de Miyazaki (associando-se assim a um
crescente número de obras que juntam estudos religiosos e estas
linguagens da “cultura popular”). Além disso, esse estudo é
menos concentrado numa questão textual do que
receptiva. Quer dizer, a identificação de temas “espirituais”
ou mesmo do “animismo” distinto do Japão nos filmes realizados,
escritos ou produzidos por Miyazaki, como Sen to Chihiro,
Princesa Mononoke, Pompoko, etc. é menos importante –
pois fácil até certo ponto – do que a compreensão de como eles
foram entendidos e integrados por públicos globais. O estudo elege
os públicos norte-americano e alemão, servindo assim a um propósito
comparativista, e o filtro da Disney em relação ao primeiro foco é
indelével e altamente transformativo. Uma das consequências é
notar que, no caso alemão, há uma maior “compreensão construtiva
de um sistema de crenças estranho” (191). A negociação, a um
primeiro nível, entre o animismo e o cristianismo dos públicos e, a
um segundo nível, e os modos de tradução (palavra que aqui tem
mesmo de ter um sentido polissémico) de cada país leva a que haja
diferenças significativas e sensíveis, aqui analisadas. Para começo
de conversa, a tradução por “espíritos” de toda uma série de
entes divinos que têm o estatuto de “deuses” na mundividência
politeísta japonesa joga mais a favor da perspectiva monoteísta
ocidental do que num respeito igualitário da cultura original.
O livro está dividido em
três capítulos, que elegem conceitos concisos para perseguir as
questões colocadas: a relação entre animismo e monoteísmo através
das catástrofes representadas; a recepção diferenciada
propriamente dita, passando por formas de publicidade, tradução,
edições, etc.; e a relação entre a visualidade e a inscrição
social em grupos religiosos ou não-religiosos. Mesmo em
aparentemente pequenos pormenores, como “apagar” a mãe-divina de
Ponyo do mapa de personagens ou a deslocação do protagonismo
feminino de muitas das personagens (Mononoke, Nausicäa, Satsuki) é
extremamente revelador das formas como os “textos” são
compreendidos em outras culturas que não a original, o que torna
muito difícil aquelas frases que ainda hoje são esgrimidas como
verdades inamovíveis, de que estas linguagens são, em si
mesmas, essencialmente, intrinsecamente, “universais”, “simples”,
“transparentes”, etc.
Wallace/Wally Wood.
Si c'était à refaire... Guillaume Laborie (P.L.G.) A
editora P.L.G., que conhecemos neste espaço graças aos livros de
Renaud Chavanne, possui um catálogo cada vez mais substancial no que
diz respeito a pequenos estudos monográficos sobre autores que têm
feito a história da banda desenhada mais clássica, nesta sua
colecção intitulada “Mémoire vive”, mas procurando navegar
águas bem diversas. Desde autores de maior sucesso crítico e até
comercial até mestres contemporâneos da banda desenhada francesa,
passando por autores estrangeiros ou sobre temas mais abrangentes de
representação. Falaremos aqui de dois volumes, deixando um sobre
Moebius para uma oportunidade futura.
Wally Wood deveria ser uma
referência mais constante, mas tendo em conta a sua presença em
colecções mais antológicas e arquivísticas, poderá tratar-se de
um nome menos imediato junto a um público mais jovem. Prevendo-se
uma nova biografia ainda este ano em língua inglesa, possivelmente
“definitiva”, este livro poderá tratar-se de uma excelente
apresentação, que não apenas discorre sobre a vida como sobretudo
da sua produção artística, como não pode deixar de ser. Todos os
livros desta colecção, as monografias pelo menos, apresentam-se
sempre constituídos por capítulos curtos mais ou menos concentrados
ora num período ora numa questão, procurando assim uma leitura
rápida e simplificada. Este volume em particular, porém,
apresenta-se com uma abordagem algo mais densa, completa e com uma
absolutamente sólida ancoragem à bibliografia existente sobre
Wood, já para não falar de Wood.
Tendo sido um autor que
atravessou períodos fundamentais na transformação do mainstream
comercial da banda desenhada norte-americana, trabalhando nos mais
variados géneros (ficção científica, policial, guerra, erótico,
senão pornográfico, comédia, horror, super-heróis, infantil),
formatos (comic books, tiras de jornal, revistas, projectos
que se poderiam chamar de proto-graphic novels ou
proto-alternativos), e tendo colaborado com tantos outros grandes
nomes dessa área (Will Eisner, Harvey Kurtzmann, Jack Kirby, Joe
Orlando, Al Williamson, Stan Lee, Roy Thomas, etc.), não é de
admirar que a consideração desse percurso atravesse igualmente as
ramificações e comunidade criativa mais alargada na qual se
integrava. Artista verdadeiramente incansável, pelas circunstâncias
do mercado a que pertencia, mas igualmente uma figura trágica e
insatisfeita, este é um volume muito informado que mostra os modos
como a criatividade passa muitas vezes por uma intensa negociação
com o que rodeia um autor.
Lectures de David B.
Jean-Marc Pontier. (P.L.G.) Este outro livro já se apresenta
como um volume mais concentrado e, contrastando com a “integração”
de Wood, sendo um autor mais “isolado”, os capítulos acabam por
se revestir de uma natureza um tanto ou quanto impressionista. Apesar
da lista bibliográfica completista no fim do livro, os capítulos
estão antes divididos por áreas temáticas (“O império dos
sonhos”, “A morte”, “A aventura”, etc.), as quais vão
sendo identificadas e estudadas como fios vermelhos que atravessam os
variados títulos do autor francês, sejam estes produzidos nos
primeiros passos algo titubeantes na indústria mainstream
francesa, seja no seio da emergente cena alternativa dos anos 1990,
seja depois nos mais tardios diários de viagem, ensaios ou os
projectos mais “comerciais” e “tradicionais” tentados um
pouco por todo o lado.
David B., a nosso ver um
dos autores fundamentais, central mesmo, para ancorar a autobiografia
como um género válido e maior na banda desenhada contemporânea, e
inventando mesmo alguns modos de pensar as potencialidades da
expressividade autobiográfica (em breve daremos conta de um artigo
académico da nossa lavra sobre este assunto), encontra aqui não
tanto um coroar finalizado, mas um sólido contributo para a contínua
e aturada reflexão sobre a sua obra, ainda em construção.
Copiosamente ilustrado (até mesmo mais que o volume sobre Wood), e
sem perder jamais a potente presença do chiaroscuro do autor,
e brilhantemente (ou seria expectável?) argumentado de que se trata
tão-somente de mais um avatar da legibilidade coroada pela “linha
clara”, isso também contribui ao cômputo final da diminuição do
texto (até a fonte é maior do que no livro sobre Wood), mas isso
não significa que nessas notas de leitura não encontremos pasto
para futuros desenvolvimentos analíticos ou diálogos de
intepretação.
Sfar so Sfar.
Fabrice Leroy (Leuven University Press) A LUP lançou há
pouco tempo uma nova colecção intitulada “Studies in European
Comics and Graphic Novels”, cujo primeiro volume abordaremos num
texto futuro e que servirá seguramente de âncora-máxima a
projectos futuros, internacionais. Os estudos que se seguem, e este
em particular, são mais focados em artistas e/ou temas específicos,
e nascem directamente das discussões esgrimidas no círculo
académico, isto é, diferentemente dos projectos de maior divulgação
da P.L.G., mas mesmo assim concentrados nos saberes específicos da
área.
Este volume é,
coincidência, dedicada a um dos colegas principais de David B. na
aventura da L'Association, apesar de Sfar não ter pertencido aos
sete membros fundadores. É nessa casa que o autor tentou os seus
primeiros projectos de maior fôlego, e alguns dos seus personagens
mais duradouros, se bem que estas possa desaparecer durante largo
período e o autor se lance a novos projectos (jamais terminados)
várias vezes, assim como ao seu livre (senão confuso e explosivo)
projecto autobiográfico. Cultor de um estilo a que chamámos várias
vezes, neste mesmo espaço, de “caligráfico”, há uma certa
urgência e fluidez no trabalho de Sfar que o aproxima de uma
discursividade muito livre que é alvo de estudo neste volume. A
união dessa celeridade material aos temas explorados por Sfar
tornam-no apto a transformar a banda desenhada num espaço de
reflexão constante sobre o Si, o mundo, e questões filosóficas,
metafísicas, de referências culturais e, claro, sobre o acesso aos
prazeres da vida, sejam estes a música ou pura e simplesmente o
sexo.
Este livro tem um carácter
ensaístico, mas muito bem dirigido, tendo tido alguns dos capítulos
vida própria e autónoma anteriormente, o que permitiu ao autor um
diálogo mais vivo com a comunidade de investogadores. Assim, o
judaísmo, a sexualidade, a relação com a história (ou o
historicismo), a intertextualidade e as relações interartes, o
fantástico, etc., são apenas alguns desses pontos estudados e
analisados por Leroy. Conforme o caso, o autor centra-se num número
específico de obras, focando assim os seus instrumentos, mas num
arco final englobando quase toda a sua obra [também ela, esperamos, em plena corrente de construção, até mesmo em multiplicação noutros meios, como a animação, o cinema, etc.].
Desde questões de
identidade na sua formação até às relações políticas do seu
trabalho integrado na paisagem editorial francesa (fala-se da sua
colaboração com o Charlie Hedbo, por exemplo, que se tornou
agora assunto sensível e recorrente), passando por micro-leituras
estéticas e éticas do seu trabalho, este é um volume bastante
completo, e complementado por uma longa entrevista, apresentada no
final.
Nota final: agradecimentos
às editoras respectivas, pela oferta dos livros.
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