São
variadíssimas, como se imagina, as adaptações de Lovecraft à
banda desenhada. Ele é, aliás, um favorito mesmo de uma certa
tendência da banda desenhada, mais dada ao choque e ao terror gore,
se bem que também tenha conhecido desvios e raptos pelos underground
comix
ou outros géneros e/ou estilos que os transformam de alguma forma
para longe do seu território literário, usualmente baptizado de
“weird fiction”, mas tratando-se no fundo de uma variação muito
particular de uma família mais alargada a que se pode dar o nome de
ficção gótica. Um desses desvios de Lovecraft, por assim dizer, e
que ainda hoje achamos uma das mais interessantes premissas possíveis
neste universo de referências, é aquele proposto pelo autor catalão
Max, na sua história curta “El
encuentro entre Walt Disney y
H.P. Lovecraft”. (Mais)
Convenhamos,
porém, que existindo versões de algum interesse, a esmagadora
maioria delas são bastante medíocres. Num cômputo selvagem,
tropeçamos em títulos como aqueles editados pela Millennium,
Adventure Comics e a Caliber Press nos anos 1990, ou mesmo de autores
com reconhecido prestígio, como Richard Corben e P. Craig Russell,
que optaram antes pelas formas mais simplificadas do choque. Não sem
alguma displicência da nossa parte, podemos dizer que essa veia
produziu assim trabalhos perfeitamente negligenciáveis. Depois temos
objectos laterais, mas não sem interesse, como Lovecraft,
de Rodionoff, Giffen e Enrique Breccia (publicado entre nós pela
Vitamina BD), que tentam re-organizar os elementos propostos pelo
escritor norte-americano numa configuração mais concentrada, e até
numa biografia ficcionada. Lovecraft
teve mesmo direito a participar no universo dos super-heróis The
Authority e Planetary, em Ruling
the World. Mais recentemente, a Boom Studios
lançou-se a um projecto de longa duração muito interessante em
termos narrativos, precisamente nessa senda de criar “consistência”
e “continuidade” nos ingredientes soltos dos contos, novelas e
romances de Lovecraft. Comandado por Michael Alan Nelson, trata-se de
um projecto que começou em 2007 com as várias séries de The
Fall of Cthulhu
e transitaria para Hexed,
correntemente em publicação. Mas a adaptação de Lovecraft que
ainda hoje se apresenta como aquela que mais resultou numa obra maior
no interior da própria banda desenhada é, sem dúvida, a de Breccia
pai, Alberto, no seu Los
mitos de Cthulhu,
publicado originalmente em 1973 e com apoio no argumento
de Norbert Bucasglia.
Nenhuma outra procura minar os elementos específicos disponíveis
pela banda desenhada para se aproximar do mesmo tipo de informe e
abjecto proposto pelas palavras de Lovecraft.
Mas
o livro que nos traz a estas considerações é de uma natureza
totalmente distinta. Conforme se compreenderá, trata-se de uma
natureza “clara”. O autor britânico Ian N. J. Culbard tem-se
dedicado de forma constante ao género do horror ou do fantástico,
sobretudo em colaboração com argumentistas da craveira de Ian
Edginton ou trabalhando sobre adaptações literárias. Criou ainda
as séries The
New Deadwardians
e Deadbeats,
mas no seio da Self Made Hero, e abordando Lovecraft ou autores
relacionáveis, deu início a uma série de adaptações, primeiro
com At
the mountains of Madness,
depois com The
Shadow Out of Time,
The
Case of Charles Dexter Ward,
entre outros contos mais curtos, e The
King in Yellow,
de Robert W. Chambers. Ora, neste campo, Culbard não está
interessado de forma alguma em reescrever ou reinterpretar os
escritos de Lovecraft, à
la
M.A. Nelson mas tampouco em moldar novas linguagens plásticas
específicas à banda desenhada que procurem verter o princípio da
“weirdness” e do desconforto pelo desconhecido nas imagens. Bem
pelo contrário, poder-se-ia dizer que Culbard deseja providenciar
uma adaptação, digamos, límpida,
“straightforward”, em que se tenta o mínimo desvio e distorção
da diegese e tom original, para além daquela inevitável garantida
pela dimensão visual e compositiva.
Uma
vez que o autor tem alguma experiência na indústria mainstream
da animação, e revela grande simpatia e influência pela banda
desenhada clássica franco-belga, não é de surpreender que haja
vários elementos partilháveis no seu trabalho e na alargada família
da “linha clara”, no que diz respeito sobretudo à legibilidade
das pranchas, e onde todo e qualquer ingrediente concorre para a
clara interpretação narrativa, e menos para um excesso de
significado, pictórico, simbólico ou estético (como Alberto
Breccia cumpre de modo exemplar na sua própria adaptação).
Dada
a natureza desta novela em particular, que pertence ao que usualmente
se chama do “Ciclo dos Sonhos” nos estudos literários
específicos a Lovecraft, estruturando-lhe a obra, e em que toda a
narrativa não tem lugar propriamente naquilo que passaria por
“realidade partilhada” das personagens do mundo diegético, mas
se trata acima de tudo de uma navegação onírica – mas não
feérico, o que é fulcral para entender o tom da novela - no
interior dos sonhos do protagonista, Randolph Carter, não é de
admirar que haja um sentido contraste entre as opções narrativas
deste livro em relação aos anteriores. A quantidade de sequências
sem matéria verbal, ou somente interrompidas com uma onomatopeia que
dá conta dos sons não-humanos das criaturas com que o protagonista
se cruza, são constantes. Há momentos de uma incómoda acalmia e
outra de rápida e dinâmica acção, à medida que Carter se depara
com os monstros que lhe cortam o passo em direcção à “desconhecida
Kadath”, assim como os potentados existentes na Lua, sejam os
zoogs, os gugs, os night-gaunts ou, finalmente, Nyarlathotep. Apesar
de existir um arco relativamente claro entre o início e o final da
história ancorado solidamente na realidade, o propósito da novela
não é de forma alguma dar a entender que “era tudo um sonho”,
ou algo pateta assim. Bem pelo contrário, todas as terras
atravessadas, pois The Dream-Quest, como o próprio título
indica, é uma narrativa de viagem, todas as personagens com quem
Carter comercia, todos os obstáculos e aliados, todos os preços e
benesses, têm um peso particular, perfeitamente traduzido por
Culbard.
As
figuras debuxadas pelo artista são sintéticas, a composição
simples e alargada (uma média de 4 a 6 vinhetas por prancha), as
cores relativamente contidas a um espectro reduzido e, se não são
propriamente planas, organizam as sombras e texturas em dois ou três
tons. Porém, há um claro ritmo nos sucessivos intervalos de cor
conforme os espaços atravessados por Carter, para assinalar mesmo
essas passagens.
Kadath,
por oposição a Mountains
of Madness,
de resto, é portanto menos focado narrativamente, abandonando-se a
maiores fragmentos descritivos, onde a linguagem se esforça por se
aproximar do indescritível e inenarrável (claro está que esse é
um efeito da linguagem o de criar essas mesmas realidades
indescritíveis e inenarráveis e depois a ideia de que ela, a
linguagem, não a alcança). Sendo aquela que menos interacção
apresenta entre personagens “reais”, todas aquelas dimensões
sociais menos agradáveis aos nossos tempos usualmente debatidas em
torno do autor – preconceitos étnicos, xenofobia e uma misantropia
generalizada – encontram-se como que suspensas, transformando The
Dream-Quest
naquilo que em Lovecraft mais próximo, possivelmente, de “fantasia”.
Aliás, uma outra adaptação existente, de Jason Thompson, sublinha
essa natureza de forma clara, tornando-o quase num livro ilustrado
para crianças, concatenando toda uma série de referências visuais
não-previstas no original, ao passo que a abordagem de Culbard
mantém todas aquelas qualidades algo etéreas, ambíguas, e até
incómodas por isso, que confirmam a estatura literária de
Lovecraft. Isto é, parece-nos que a abordagem de Culbard é aquela
que mais próximo está do verdadeiro valor literário do escritor
norte-americano: nem o transformando em um mero criador de eventos
pornograficamente violentos de body-horror,
nem exacerbando uma qualquer interpretação extra-literária sobre
os escritos, mas tentando apresentá-los nos seus elementos próprios.
Claro está, vertidos para esta as linguagem de banda desenhada clara
em termos visuais, mas em que as estratégias narrativas (as
composições variadas, o ritmo, a relação entre matéria verbal e
visual, a paleta cromática, etc.) concorrem para essa corroboração.
Uma
análise comparativa entre essa novela, jamais publicada em vida do
autor e vista como “por polir” (e as partes do narrador, com a
pesada e fantasiosa adjectivação de Lovecraft encontra-se aqui
sublimada nas cenas visuais), e que de resto descreve uma navegação
onírica do seu protagonista em busca de uma cidade de velhos deuses
que jamais algum ser humano antes vira ou visitara, e os outros
escritos, para compreender o “peso” das adaptações em banda
desenhada, não seria uma matéria vã. E Culbard, com a continuidade
desta sua veia, contribuirá de forma decisiva, a esse corpus.
Nota
final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro. Imagens
colhidas na internet.
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