A publicação deste título deveria
ter sido uma ocasião de maior atenção. Jules Feiffer é, afinal de
contas, um dos nomes importantes enquanto percursor da ideia de
pensar a banda desenhada como um veículo passível da discussão de
temas e histórias com repercussões emotivas, intelectuais e
políticas de modo tão intenso e genuíno como qualquer outra
linguagem artística. Não deixando jamais de ter sido um fã dos
clássicos norte-americanos (é seu o influente e percursor ensaio
The Great Comic Book Heroes),
ter sido aprendiz e “fantasma” de Eisner em The Spirit,
Feiffer construiria a sua fama como escritor (mesmo
que com imagens ou por
elas), capaz de navegar as estranhas águas das relações humanas,
das suas fantasias e irrequietudes, angústias e capacidade de
subversão em relação à moralidade vigente, produzindo livros de
aparência infantil (Tantrum,
Passionella), tiras de
banda desenhada (que publicou no The Village Voice,
coligidos em The Explainers),
o filme de animação Munro,
e filmes tais como Carnal Knowledge,
de Mike Nichols, e I Want to Go Home,
de Alain Resnais. (Mais)
Não
deixa de ser surpreendente, mas ao mesmo tempo natural, então, que
numa idade madura, Feiffer deseje registar o seu fascínio com
fantasmas da sua juventude, dedicando-se neste livro à lavra de uma
intriga noir, digna do
mais rocambolesco filme dos anos 1930, à la Sternberg ou Clouzot.
Usualmente,
as intrigas do noir
envolvem um detective duro e acostumado às agruras do mais forte
álcool e uma mulher fatale.
No caso de Kill my mother,
porém, a ideia do cherchez la femme
acaba por vir a desembocar em cinco figuras femininas (que ainda se
desdobram). Compreender-se-á então que Feiffer constrói uma
intricada e apertada malha de reflexos, confusões, becos sem saída,
identidades disfarçadas, enigmas e revelações que se estendem uma
década, iniciando-se em 1933, quase no fim da infância de uma das
protagonistas, Annie Hannigan, até 1943, quando todos os pontos que
haviam ficado por se resolver então caem no seu ponto certo. Ou bem
pelo contrário, errado. O título da obra é o mais directo
possível, uma vez que Annie alimenta uma fantasia, demasiado
recorrente para ser vista somente como um desabafo inconsciente, de
matar, ou de ter alguém que o faça por ela, a mãe Elsie Hannigan.
A relação entre mãe e filha nasce desde logo de um mal-entendido,
que nenhuma das duas parece ser capaz de desfazer através do
diálogo, e apenas piora ao longo dos anos, tornando a situação
irresolúvel. Elsie, por sua vez, está a trabalhar como secretária
de um detective, Neil Hammond, que foi colega do seu marido morto,
esperando que ele resolva a questão do assassinato dele. Uma das
clientes deste detective, Mae Longo, no grande cliché
do policial, é quem introduz a segunda trama, envolvendo uma irmã
desaparecida, Patty, mas que não revela ser sua irmã. E que trazem
no conflito que as opõem outra maquinaria edipiana.
Estas
duas polarizações entre os pares de mulheres têm, cada qual,
outros personagens associados, de antigos amigos e namorados, aliados
e inimigos, que tornam a geometria das relações complexa e com
arestas que se vão arranhando ao longo do livro, envolvendo a
indústria de Hollywood, os conflitos na 2ª Guerra Mundial no
pacífico e os bas-fond
dos bares de jazz em Nova Iorque. Pois uma outra figura feminina
central, uma espécie de eixo dos eventos, é a misteriosa cantora
conhecida como “Dama do Véu”...
A
comédia de enganos que se segue, os segredos por revelar, a forma
como a trama se revela, não é em si totalmente inesperada ou
original. Uma dieta regular de hard boiled,
whodunnits e noirs
terão criado uma habituação a estas reviravoltas, e estando nós
na contemporaneidade, não admira igualmente que Feiffer explore
temas que, na altura, seriam tabu (a sexualidade, desmontagens
metatextuais das indústrias culturais, contornos
histórico-políticos, etc.). Mas é a destreza com que Feiffer joga
os eventos entre si, que baralha as personagens mais mais díspares
configurações de relações e os excelentes e rápidos e
espirituosos diálogos que o autor revela as suas maiores forças,
mesmo que de quando em vez com contornos de algum melodramatismo
(quase musical, apetece dizer).
Jules
Feiffer faz também parte de uma longa, complexa e variada
constelação de criadores que contribuíram para o advento daquilo
que viria a ser reconhecido como o “humor judeu nova-iorquino”
(contando-e com Lenny Bruce, Mel Brooks, Woody Allen e Seinfeld),
sendo ele um dos seus primeiros cultores, na verdade. Essa veia não
é explorada aqui de forma directa, já que o cinismo, estando
presente, não serve para melhor sustentar o humor, mas tampouco
escancara uma realidade demasiado melancólica ou negra. Estará mais
presente na delivery
dos diálogos, ou em pormenores, do que na massa central.
As imagens são lavradas do modo
gestual e célere conhecido de Feiffer. Mas se nas suas tiras, como
no caso de The Explainers, apresentam figuras constituídas de
linhas tão finas e conturbadas quanto a escrita, as marcas gráficas
elas mesmas, do autor, Mate minha mãe apresenta outro tipo de
abordagem mais texturada. Existem aguadas, aguarelas, tinta branca,
criando uma ténue camada de cor (cinzentos, castanhos e ocres
deslavados, ténues verdes e azuis) que apenas vai surgindo
parcimoniosamente para servir de nota dissonante ao noir da
esmagadora maioria das páginas.
Algumas das composições de Feiffer
recordam, sem dúvida, a sua prática de anos de criação de tiras
sem o uso de molduras. Se bem que existam páginas com vinhetas bem
demarcadas com a mais fina linha recta, mas de forma algo desopilada,
existem muitas outras em que não se emprega separação entre as
vinhetas senão um pequeno, breve intervalo de espaço em branco, por
vezes ocupado com outros objectos, tirando partido do cenário, ou
havendo mesmo sobreposições dos corpos nos seus vários momentos.
Isso provoca uma espécie de fluidez imediata entre os movimentos,
nalguns casos a ideia de estarmos a observar uma animação
ininterrupta. Falamos de cenários, mas quase se contam pelos dedos
as vinhetas em que surge uma cena de um exterior, em maior ou menor
plano, ou interior, espraiando algum pormenor. Serve de establishing
shot a toda uma série de sequências em que as personagens se
movem e comovem em vinhetas “vazias”. Enfim, se podemos falar de
noir do ponto de vista do assunto de Mate minha mãe,
em termos visuais estamos longe do naturalismo poético de um Eisner
ou de um chiaroscuro à la Caniff. A expressividade de Feiffer
não é a de uma imitação (subordinado) ao efeito do cinema, mas
antes uma urgência própria do acto do desenho em si.
No entanto, existem escolhos, e
bastante graves. Uma vez que o autor recorre a modos de figuração
relativamente simplificados, torna-se por vezes difícil, se não
mesmo impossível, de distinguir as figuras femininas entre si, que
partilham demasiados traços físicos comuns: figuras esbeltas,
esguias e ossudas, cabelos claros ondulados e curtos, e um sentido de
moda que não é suficientemente distinto. É necessária uma atenção
particular para com o contexto, ou mínimos sinais diferenciadores
para conseguir atribuir os papéis a cada personagem. Por exemplo, no
diálogo no avião entre Annie a a sua mãe Elsie, se não fosse o
traço singular de ruga do rosto da mulher mais velha, era quase
difícil diferenciá-las... Numa intriga em que os papéis, ilusões
e comédia de erros é central, essa difícil destrinça traz uma
camada de dificuldade que não é bem-vinda.
Tendo em conta a verve literária e
humana de Feiffer, e as suas maravilhosas capacidades de, com um
estranho novelo de linhas, criar modos de expressividade gráfica que
o torna uma das maiores referências do cartoon
norte-americano, é com alguma consternação que Mate minha mãe
nos apresenta um novelo em que é menor a elegância que a densidade,
mais forte a aspereza que a fluidez, e maior a entrega aos princípios
dos géneros, mesmo que num claríssimo abandono feliz, do que o
burilar a inteligência mais fria das suas possibilidades.
Nota final: agradecimentos à editora,
pela oferta do livro.
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