Em outras ocasiões tivemos oportunidade de revelar
algum tipo de acompanhamento que fazíamos de séries mainstream de super-heróis em continuidade, o que ainda se mantém,
ainda que de modo menos visível do que se pensaria pelos textos aqui
publicados. Maior atenção, todavia, é dada a projectos que surgem como “one
shots” feitos fora dessa mesma continuidade, que dessa forma se permitem
explorar de modos mais interessantes as potencialidades das variações do
género. Foi o que aconteceu, por exemplo, com títulos de Batman ou dos
Vingadores. Apesar de termos iniciado igualmente uma abordagem de um outro projecto com o Super-homem, apenas agora surge a oportunidade de sermos mais
específicos. (Mais)
Superman:
American Alien é uma série limitada de sete comic books, todos eles escritos por Max
Landis, que é conhecido como argumentista de cinema e de filmes curtos no
Youtube, alguns dos quais relacionados com a cultura de super-heróis. É dessa
produção que surgiu o filme Chronicle,
realizado por Josh Trank em 2012, que conseguia criar uma dinâmica de grupo
entre as personagens suficientemente interessante e intrigante de uma maneira
que o realizador não repetiria com o seu Quarteto
Fantástico. O outro projecto mais conhecido é, talvez, The Death and Return of Superman, que faz uma desconstrução divertida
e inteligente dos problemas narrativos da saga da morte dessa personagem. A
razão pela qual incluímos estas referências é porque esses dois projectos
demonstraram duas características no trabalho de Landis, que o levariam a esta
série: por um lado, o seu conhecimento geek
mas informado pela experiência humana das personagens de super-heróis,
tornando-o capaz de compreender o lado do quotidiano, das emoções do dia-a-dia,
as motivações humanas; por outro, a sua capacidade em criar módulos dinâmicos
suficientemente interessantes para criar interesse em torno de personagens que,
as mais das vezes, apenas vivem aventuras atrás aventuras dentro de moldes
demasiado familiares.
American
Alien tem uma estrutura curiosa. Cada
comic book pode ser lido como uma
história autónoma e é desenhado por um artista diferente. Além disso, trata-se
de um percurso que, mais do que recontar a história da personagem, prefere
antes contar episódios-chave na inflexão do seu caminho desde o jovem filho dos
Kent nos EUA rurais até ao herói famoso cosmopolita do universo DC.
Façamos um rápido resumo e listagem desses comic books. O primeiro intitula-se
“Dove” e é desenhado por Nick Dragotta, o artista da extensíssima e
expectavelmente convoluta série de western sci-fi East of West, escrita por J. Hickman; segue-se “Hawk”, com Tommy
Lee Edwards, cuja bibliografia inclui os “wet dreams alternativos” de Bullet Points, com J. M. Straczynski, e Marvel 1985, com M. Millar; “Parrot” é
desenhado por Joëlle Jones, autora do divertido Lady Killer, com J. S. Rich; seguiu-se “Owl”, desenhado pelo etéreo
Jae Lee, sobretudo conhecido pelas suas icónicas ilustrações; depois “Eagle”,
com Francis Manapul, artista mais jovem e afecto ao mainstream de super-heróis; segue-se “Angel”, com Jonathan Case,
que escreveu e ilustrou The New Deal,
uma leve mas clássica trama policial-social na gay New York dos anos
1930; e, finalmente, “Valkyrie”, com o artista Jock, da excelente série de
terror Wytches, escrita por S.
Snyder. Landis teve portanto acesso a uma bateria de autores que têm estado a
produzir trabalho com sucesso crítico no interior da indústria norte-americana,
e estamos em crer que tirou o melhor partido das características de cada um
para a natureza dos episódios respectivos.
Estas meras descrições não são suficientes, todavia,
para dar conta de como Landis tira partido sobretudo dos diálogos entre as
personagens para fazer emergir a importância e inteligência das suas
personagens. Inteligência no sentido delas serem capazes de pensar por si
próprias e vasculharem as suas consciências, mudando de acordo com a forma como
são influenciados ou informados pelos eventos em que se envolvem ou pelas
pessoas com quem convivem. Assim, na continuação da série, vamos vendo como
Clark/Kal-El parte de uma ideia difusa de uma “missão” e “responsabilidade” que
tem perante o mundo graças às suas características, mas as vai aperfeiçoando à
medida que é confrontado com todos os episódios. Não quer isto dizer que não
haja cenas de conflito clássico e físico entre super-herói e super-vilões (pelo
menos duas vezes, com o Parasita e Lobo), mas a concentração da série está num
crescimento interno.
Além do mais, existem momentos curiosos em que
Landis tira partido do universo expandido, mas de uma forma calma e “realista”,
o que é quase uma lição para certas estratégias forçadas para esse mesmo efeito
que outros autores seguem. Adicionalmente, os primeiros comic books têm ainda uma história adicional em uma única página,
desenhada por outro artista (a saber, Matthew Clark, Evan Shaner, Mark
Buckingham e Steve Dillon) que expandem o quadro de referências, sempre focando
episódios paralelos e formações dos seus inimigos fantásticos.
Como se compreenderá, ao contrário da série All-Star Superman, de Grant Morrison e Frank
Quitely, há menos a ideia de um “arco narrativo” coeso do que a sucessão de
pequenos momentos autónomos, mas que se podem encaixar na vida longa da
personagem. Se nos recordarmos de toda a complexa relação de cada nova versão
com as questões de continuidade e reformulações, sabemos que a história desta
personagem cuja origem remonta a 1938 atravessou toda uma série de fases, mais
ou menos integradas nos seus contextos históricos ou que, pelo contrário,
procurou trabalhar contra a corrente. É assim que podemos falar dos
“Super-Homens” de Siegel e Shuster, de Weisinger, de Schwartz, de John Byrne,
etc. É a relação com esse mesmo historial que dá às revisitações das origens
uma natureza paradoxal de recursividade e diferença. Se Byrne mostrou uma
cultura kryptoniana a-emocional, Morrison e Quitely quiseram mostrar um herói
totalmente positivo e solar, M. Waid e L. Yu, com Superman: Birthright, elaboraram uma fábula que se associava
tentativamente com temas relevantes da contemporaneidade, e G. Johns e G. Frank,
com Superman: Secret Origin, criaram
um épico clássico.
Landis não quer reinventar a roda, nem “revelar”
segredos. É como se trabalhasse nos interstícios dos episódios “já conhecidos”,
não deixando porém de mostrar “como se conheceram x e y”. Cada comic book, portanto, pode ser visto
como uma micro-narrativa (e nessa fórmula, é refrescante ler uma história
completa e satisfatória de 24 páginas) que não apenas apresentam acontecimentos
ou episódios discretos entre si, mas peças que se encaixam, sobrepõem, envolvem
uns nos outros. Landis apresenta-nos um jovem integrado nas culturas do seu tempo
(o nosso, este, o de agora), inocente mas não ingénuo, atrapalhado mas não
tolo, preocupado mas não descontrolado, dedicado mas ponderado. Um Super-homem
que pensa, enfim, com os amigos.
Num momento em que as
duas grandes editoras do mainstream
de super-heróis cada vez mais se concentram (sobretudo a DC) na gestão centralizada
das histórias por um comité que resguarda toda a produção subsumindo-a planos
unitários, não deixam de surgir com alguma frescura estas excepções que, pelo
contrário, tiram partido do que dever-se-ia fazer: contar as melhores histórias
possíveis com estes elementos, não estando demasiado preso a desenvolvimentos
pensados por outros autores, mas pelo menos buscando uma integração num arquivo
mais vasto e geral das personagens.
Nota final: agradecimentos a C.F.F., pelo empréstimo
da série.
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