É bem possível que esta seja de
facto a última paragem deste mecanismo. Um projecto que começou de uma forma algo
atabalhoada e mudou de mãos de uma forma singular, em relação ao que costuma
acontecer com outros projectos em colaboração ou de direitos nas mãos de
companhias, não pode deixar de ter configurações mutantes à medida que avança,
como já havíamos explorado quando da discussão dos volumes anteriores e da
adaptação cinematográfica. Remetemos, aliás, para esse texto, para uma
contextualização maior, focando aqui este volume somente. O problema é que
essas mutações não servem para reforçar os temas ou aprofundar o tratamento das
personagens, mas as de reescrever a própria natureza do projecto. E não necessariamente
como melhoria. (Mais)
O grande problema de Terminus encontra-se no facto de ser
feito, sem dúvida, à sombra do filme de Bong Joon-Ho, Snowpiercer. A adaptação tomou toda uma série de liberdades,
válidas num trabalho autoral, e Rochette, tendo participado no filme de modo
directo, parece estar agora a reboque de algumas das ideias, visão e propósito
do realizador coreano. Como explica o posfácio deste livro, assinado por
Olivier Bocquet (autor de uma trilogia que adapta os contos de Fantômas nada desaprazível, desenhada de
uma forma dinâmica e estilizada por Julie Rocheleau), o projecto de Terminus foi lançado por Rochette, que
criou um esquema narrativo, algumas imagens que queria empregar, e tópicos a
abordar. Bocquet ajudaria então na mecânica narrativa, diálogos, articulações
entre as cenas desejadas e justificações para os tópicos entrarem em cena. Essa
descrição, à partida, nada tem de negativo ou de positivo, é tão-somente um método
de trabalho. O problema primeiro é que
se sente de forma nítida a articulação primária entre as “partes”, que surgem
antes como objectos isolados pelos quais a narrativa tinha de passar, em vez de
nascerem de forma orgânica da necessidade da intriga e do mundo ficcional.
A sinopse é simples. O transperceneige
foi atraído a um local por uma misteriosa música mas havia-se revelado um beco
sem saída. Este volume revela aos sobreviventes que a solução estava sob a
neve, onde descobrirão uma cidade subterrânea, antigo parque de diversões (que
Bocquet explica se basear na Tomorrowland e a EPCOT da Disney). Os habitantes
desta cidade auto-sustentável usam capacetes de ratos que lhes ocultam os
rostos, mas não é apenas esse o único segredo que tentam guardar dos
sobreviventes que chagaram. Segue-se então o “osso de contenção” que leva ao
desequilíbrio dos poderes locais, o confronto entre as partes adversárias, e
todo o rol de elementos mais do que expectáveis em histórias desta natureza e
tipologia.
O modo de caracterização das
personagens é particularmente débil. O héroi, Puig, apesar de todos os desafios
que se colocam à sua frente na aprendizagem das novas responsabilidades, e as
adversidade o colocarem fora do grande grupo, acaba sempre por exercer uma aura
de líder, mas para a qual nada nos ajudaria a prever. Pura e simplesmente ele
tem “a razão” ao seu lado. O mesmo sucede, por proximidade, com a heroína, Val,
que ganha neste volume um papel importante para o futuro, por uma razão absolutamente
clássica mas, perguntamo-nos, algo redutora em relação ao papel feminino possível
(os leitores da oba poderão perguntar-nos, “quem senão ela poderia cumprir esse
papel?”, ao que responderíamos, “que outras personagens femininas participam na
acção?”). Todas as outras personagens, ou surgem enquanto co-adjuvantes
necessários a uma ou outra cena ou enquanto implacáveis (pr vezes risíveis) inimigos.
O caso mais gritante é o de Madame Lewis. Esta surge em primeiro lugar como líder
eleita ainda no comboio, e que tenta um golpe para destituir os membros do
Conselho que o comandam, e ao qual, de uma forma ou outra, Puig pertence. Mas no
preciso momento em que ela poderia exercer um método de decisões democráticas,
a que ela apela, demonstra deixar-se levar por questões de vingança e poder. Todavia,
entrados no novo mundo fantástico do parque de atracções subterrâneo, Lewis
acaba por se colocar lado a lado dos poderes dessa nova realidade, mas sem os
questionar, nem procurar, de forma visível, um poder para ela mesma. Desta
forma, jamais compreendemos quais as suas motivações, tornando-se meramente uma
cifra para as acções adversas aos heróis, para se criar a ilusão de haver algum
obstáculo. Não são apenas as máscaras dos ratos que são feitas de papelão…
De resto, não é somente ao nível
das personagens que a incompletude de caracterização leva a um certo
maniqueísmo. Os próprios temas, por vezes enfiados a martelo e discutidos com
tons panfletários tornam a leitura e a progressão emotiva e experiencial das personagens
algo penosa. As centrais nucleares são más e a natureza é boa. A manipulação
genética é má e a reprodução natural humana é boa. A prisão no entretenimento é
má e a liberdade no sofrimento é boa. Enfim, é todo um rol de dicotomias
insofismáveis que não deixam qualquer espaço à dúvida ou à tergiversação, uma
vez que não são de forma alguma “opções”, mas extremos em que a negatividade de
uma justifica por completo a positividade da outra. Bruxo, apetece dizer. Mas isso não torna o movimento de fuga
permanente destas personagens, sobretudo as que se “salvam” na natureza e que
são apresentadas como os sobreviventes e herdeiros do amanhã, poderoso o
suficiente para sentirmos empatia dos seus esforços.
Uma descrição de cada passo – a descida
ao abismo, a jaula do leopardo, a orgia sob o pólen, o tour pela auto-sustentabiliade,
o lugar dos bebés, etc. – criaria uma outra rede de associação ao filme
sul-coreano, já que essa versão também optava pela criação de “quadros”
autónomos de cada vagão, apresentados em cadeia.
A arte de Rochette parece-nos
igualmente menos inspirada. A composição das páginas e o dinamismo da leitura é
algo pedestre, preso entre a Cila do “contar os episódios” o mais depressa
possível – em que as vinhetas mostram somente o centro da acção a representar
ou as personagens isoladas a falar - e a Caríbdis de “contemplemos este desenho”
deslocado da acção – espécie de publicidade auto-fágica do virtuosismo do
autor. Os desenhos, a esmagadora dos quais são pintados a pincel, tentam manter
um equilíbrio entre a gestualidade e fluidez da pintura, e a figuração sólida
da banda desenhada convencional. Se existem autores que conseguem encontrar
equilíbrios entre essas tensões aparentemente contraditórias (Mattotti, Zarate,
Conefrey, Feuchtenberger, Goblet, entre outros), não nos parece ser o caso
deste volume em particular.
A máquina do tranperceneige chegou
ao seu último poiso, já que a coda do livro aponta para o futuro destas
personagens, e associando-se, mais uma vez, ao fim prometido do filme. Mas
nessa natureza, Rochette e Bocquet também tombam numa solução expectável e
delicodoce, que pouco diz da sociedade ficcional em que se trabalhou durante
tantos anos, de forma alguma muscula a saga enquanto eco-distopia aparentada
com outras obras (V de Vingança, Simon du Fleuve, e até a recente série,
particularmente inteligente em termos de ciência e pensamento político, ainda
que não brilhante em termos gráficos, Letter
44, de Charles Soule e Alberto Jiménez Alburquerque) e pura e simplesmente
apresenta uma fuga fácil à maquinaria lançada por Lob no início dos anos 1980.
Nota final : agradecimentos à
editora, pela oferta do volume. As imagens foram colhidas da internet,
inclusive da edição norte-americana, antes da cor.
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