Este livro com pouco mais de 20
pranchas é, apesar da sua natureza aparente, uma espécie de
diatribe contra uma natureza do mundo dos negócios globais e a forma
como esse capitalismo móvel deixa apenas um rasto de destruição
pela sua passagem a todos os níveis. Natureza aparente, dizemos,
pois poderá parecer uma pequena fábula para crianças, disfarçada
que está. (Mais)
Tendo em consideração como a “China”
– numa sua acepção mágica, generalista e falsa – é muitas
vezes vista como o inimigo das nações ocidentais, no contexto da
geografia económica, sendo a China um local preferencial da
deslocalização das empresas industriais, não deixa de ser
surpreendente termos a oportunidade de lermos uma versão “do outro
lado”. O autor Yu-chi, de Taiwan, constrói aqui uma mescla de
banda desenhada documental, autobiográfica e de fantasia. Com
efeito, uma das primeiras dimensões a sublinhar neste livro é que
se aparenta com um número de outros trabalhos que, empregando
estratégias ficcionais ou até fantasiosas, não deixam porém de
tecer comentários de um realismo social e político absolutamente
claro. Recordemos, por exemplo, o projecto da Buraco 4, ou de
muitos dos autores que reunimos na SemConsenso. A criação de
um discurso que desmonta as políticas económicas neo-liberais e
lesivas das economias e culturais locais pode tomar a forma de um
ensaio, como nos casos de Squarzoni, é certo, mas também se pode
estruturar em torno de uma experiência mais individual, quase
autobiográfica e mostrando pinguins antropomórficos.
Ao lermos esta história, acompanhamos
sobretudo a vida de uma pinguim fêmea que trabalha numa fábrica de
montagem de bonecas do tipo da Barbie, da Mattel. Trabalhando na
linha de montagem, não tem dinheiro suficiente para comprar esse
mesmo produto, e as cenas concentram-se no dia a dia. O olhar da
narrativa perscruta a vida quotidiana da trabalhadora, mas igualmente
o ambiente em seu torno, e as transformações sociais e ambientais
causadas pela fábrica em que trabalhará ao longe de anos... Há,
porém, momentos de ternura e sobrevivência, como a forma que a
protagonista acaba por montar uma boneca, totalmente feita de partes
defeituosas, paulatinamente, para oferecer à filha, a qual terá
oportunidades diferentes. Mas um outro momento de crise está no
momento em que a fábrica, como se estivéssemos num filme de
Miyazaki, se levanta e atravessa a ilha para outros lados. O
desaparecimento súbito da fábrica, depois de anos a fio naquele
local, representa um abandono total dos seus antigos trabalhadores,
que perdem o direito às suas pensões e direitos, dado a que única
preocupação da empresa é a do lucro... Além disso, há aspectos
que demonstram uma igualmente lenta mas segura destruição do
ambiente.
Todos estes episódios, aprendemos com
o epílogo, são fruto da observação do autor da sua própria vida,
uma vez que a mãe trabalhava numa fábrica em Taiwan que mais tarde
passaria para o continente chinês. É dessa maneira que entendemos
essa tal dimensão biográfica e realista em relação à vivência
económica da sociedade taiwanesa, transformando a fábula numa
instância de arte política. Esta, ao contrário do mais imediato
impulso, não tem necessariamente que se estruturar através de
princípios pedagógicos ou panfletários. Não há qualquer razão
para acreditar que existe um divórcio entre a expressão política e
a experimentação (aqui explorando territórios familiares de
géneros infantis, porém).
Se utilizámos o título em francês, é
por ser ele que está em grande destaque na capa. Mas também o estão
os ideogramas tradicionais chineses, que se leriam foneticamente
“gong chang”, juntando os ideogramas para “trabalhador”
(aquele que parece um I maiúsculo) e para “fábrica”. É
com atrevimento, não sabendo chinês, que apenas interpretamos a
separação entre o ser humano que trabalharia no lugar e esse mesmo
lugar, como sublinhando precisamente a natureza das relações que
são exploradas (palavra nada inocente) no livro.
Em termos formais, não estamos perante
uma natureza demasiado estranha, bem pelo contrário, parece que Yang
Yu-chi é um autor bastante familiarizado com a banda desenhada
ocidental, empregando composições sóbrias e controladas. O seu
desenho é muito realista, detalhado e atento à expressividade das
emoções, que consegue instilar nas suas personagens em forma de
pinguins. Quando surgem personagens humanas, representam
“estrangeiros” (não necessariamente euro-americanos brancos),
mas sem olhos, o que diz muito da cegueira não apenas dos próprios
empresários como dos clientes sedentos pelos produtos baratos (para
eles mesmos, não para os seus produtores-proletários) em relação
à vida que é aqui exposta.
Este livro, pelo menos em parte, poderá
ajudar-nos a deixar-nos dessas cegueiras.
Nota final: agradecimentos a
Pepedelrey, por nos colocar na senda deste livro.
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