Esta antologia nasceu de uma combinação
de toda uma série de esforços que encontrou aqui uma expressão
comum, mas não deixa de demonstrar essa mesma natureza desigual. O
factor espoletador foram os encontros Sustos às Sextas, promovidos
por João Castanheira e António Monteiro, que visam estimular a
discussão e pensamento em torno de temáticas associadas ao
sobrenatural, horror, terror, etc., nas suas mais diversas formas de
expressão. Desses encontros e a aliança com Bruno Caetano, no papel
de comissário e editor, já havia nascido uma exposição, Figuras
Clássicas de Terror, em que alguns autores portugueses criavam
representações gráficas de algumas personagens famosas da
literatura e cinema de terror, e figuras mitológicas, nas mais
diversas prestações. Caetano regressa aqui como co-editor (e também
argumentista), operando a selecção dos convites aos autores.
Juntando-se ao projecto, está Geraldes Lino, enquanto vigoroso
promotor de fanzines e projectos de banda desenhada. Há ainda o
facto editorial, que não é de somenos importância, agregando-se
José de Freitas. (Mais)
Logo à partida, sendo uma antologia em
que cada história tem apenas duas pranchas, isto permite que haja um
grande número de autores a participar, a saber, 22, sendo 2 deles
argumentistas, e tendo participado André Oliveira com três
histórias. O número de histórias é 20. Portanto, mesmo antes da
sua leitura, estaríamos perante um projecto, o qual, enquanto
antologia, poderia de imediato estar junto a projectos recentes como
Crumbs, Quadradinhos, ou alguns dos projectos
semi-temáticos da Chili Com Carne (e.g., Destruição, MdC # 23 e Lisboa é very, very typical). Porém, apesar da concentração
do tema – explícito no sub-título, “Terror por autores
portugueses de BD” -, a coerência não é total. Nem quanto ao
tratamento do género ou matéria, nem quanto à própria qualidade
de trabalho dos autores. De certa forma, a natureza desigual das
participações nasce da própria condição do projecto, de ter de
responder ao desafio mesmo que esses instrumentos não estejam
preparados pelos autores, e pela diferença estilística, narrativa,
filosófica, cultural, entre esses mesmos autores.
Quando da discussão em torno de
Hellblazer, tivemos larga oportunidade para entabular uma
discussão em torno do género do horror, “local de intensidades
efectivas”, segundo a expressão de R. Sinnerbrink, e palco que nos
provoca o “horror-arte”, tal como descrito pelo filósofo N.
Carroll, aquela espécie de repulsa confortável em que mergulhamos
quando lemos ou vemos (ou ouvimos) algo fabricado para suscitar o
horror. Sabemos não estar em perigo face ao que é aventado na
página ou no ecrã, mas mesmo assim o nosso corpo e espírito
responde com afectos e frissons face a essas mesmas
representações. Apesar das limitações que a banda desenhada tem
em criar ambientes que cheguem a atingir esses píncaros
angustiantes, não deixa de haver toda uma história do género que
importa trabalhar para encontrarmos o que provoca os mais
significativos contributos com vista a essa intensidade. O prefácio
do livro, escrito por António Monteiro, faz um brevíssimo
historial, mas acaba por se centrar mais nas mais espectaculares (e
palavrosas!) mas menos intensas histórias dos “twist endings” da
EC Comics do que encontrar maiores picos em autores tais como Junji
Ito, Kazuo Umezu, Josh Simmons, Breccia com Lovecraft, Delano,
Ridgway e Alcala em Hellblazer, e, entre nós, a lavra de
David Soares, por exemplo.
Nem todas as histórias deste volume
procuram criar então esses ambientes para criar tais emoções
intensas. Algumas das soluções têm até mesmo a atitude de uma
rábula, se não totalmente cómica (como no caso da história de
Álvaro), pelo menos surgindo como um comentário desviante para o
gozo do género mas não o horror propriamente dito, ou não o
atingindo de forma mais acabada (os casos de Joana Afonso, Santo,
Carlota Borba, e até mesmo Mosi, que parece recuperar um sketch
sobre a Beyoncé). O que não quer dizer que não sejam contributos
curiosos para todo o mythos das personagens e/ou tropos do
género, como a história de Rui Lacas que traz algo de decisivamente
novo e divertido para o campo.
Outros autores tiram partido mais do
ambiente, da ideia poética permitida pelo gótico, pelo ambivalente,
do que propriamente numa construção linear e narrativa. São os
casos de Andreia Rechena, de José Smith Vargas e também aquelas
escritas por André Oliveira (com desenhos de Osvaldo Medina, João
Sequeira e Ricardo Drumond) e por Bruno Caetano (como desenhos de
Nuno Rodrigues) que têm uma preferência pela voz off
enquanto as acções decorrem do que por uma ambientação mais
directamente associadas as elas. Em todos estes casos de colaborações
entre argumentistas e desenhadores, temos casos de descrições
internas das emoções das personagens ou de algo acima delas, para
descobrir depois uma cena gore final, relativamente
expectável. Pepedelrey também apresenta uma história em que é
mais o que não é dito do que é revelado, mas onde (como no caso da
de Lacas) a montruosidade se revela estar do lado das “pessoas
normais” do que aquele que mais rapidamente pensaríamos ser o
monstro.
São poucos os aproveitamentos da
cultura portuguesa, de forma específica, para criar os elementos
narrativos necessários, apesar de termos visto ultimamente um cada
vez maior aproveitamento dessa mesma matéria em vários projectos,
ou pelo menos uma inscrição na nossa realidade cultural e social.
Oliveira e Sequeira invertem e demonizam o Carnaval dos Caretos de
Podence. Tiago Pimentel tira partido de uma lenda comum dos
lobisomens, tal como contada ainda hoje em certos círculos rurais. A
esmagadora maioria das histórias, porém, cria locais e situações
que poderiam ter lugar quer em Portugal quer noutro local qualquer,
se bem que haja exemplos também concretos de outras inscrições,
como é o caso de Filipe Alves, que cria uma história nos Estados
Unidos no período após a Guerra Civil: apesar de ser uma situação
relativamente comum no género (o encontro com um grupo de pessoas
que se revelam mortas), e o último desenho ser reminiscente de
Comès, Alves cria uma brevíssima peça moral, algo militarista, mas
acertada.
A utilização dos géneros, por mais
fantásticos que eles sejam, serve muitas vezes um propósito de
comentar a sociedade em que nos movemos. Espécies de espelhos
focados, que atingem directamente um tema desejado. Quase todas as
histórias tocarão, de uma forma ou outra, essas ideias, afinal,
podendo ler nelas ideias sobre a paternidade, a solidariedade, o
egoísmo, etc. Mas há umas mais directas do que outras, como é o
caso das de Álvaro, Santo e Mosi, e depois a de Rui Gamito. Fernando
Relvas mistura a ficção científica e militar com o terror, numa
história com o melhor trocadilho da antologia, mas a sua prestação
visual é algo sumária demais.
Luís Cavaco apresenta uma peça
aparentemente mais envolvida de modo íntimo com o género de terror,
mas a narrativa é opaca, para não dizer confusa. Pedro Brito tira
partido da sua assinatura sobre relações humanas e ambientes
urbanos, para mostrar que o horror não precisa de se revestir de
formas fabulosas. José Lopes, pelo contrário, precisamente não
revelando quase nada das circunstâncias das suas personagens, ou da
razão que a leva a perder-se no bosque, acaba por nos trazer a
história mais efectivamente eficaz no género do horror-arte.
Ainda que os sobressaltos
providenciados por esta antologia não sejam assim tão intensos como
isto, há um pouco de tudo nas suas páginas, mostrando acima de tudo
uma diversidade de instrumentos narrativos, artísticos e
estilísticos em curso na cena contemporânea, e as possibilidades de
responder aos desafios de forma diferenciada. O que é, em si mesmo,
um estado de saúde.
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