Diniz Conefrey, como já o havíamos
dito noutra ocasião, é um autor que cultua sobremaneira a
transposição da matéria do desenho para primeiro plano, e não
somente o emprega como meio, veículo, transmissão de uma
representação. O corolário dessa tarefa encontra-se, talvez, no
momento em que a representação de dissolve totalmente no próprio
acto da gestualidade dessa matéria, lavrando imagens abstractas. Se
essa intensidade já se fazia prever em muitos dos seus trabalhos “de
representação”, nas “margens” expressivas do programa
central, quer na narrativa d'O livro dos dias quer nas
adaptações de alguns contos de Herberto Helder, no seu encontro com
o texto a máquina de emaranhar paisagens, desse mesmo poeta,
libertou-se por completo. Agora, nas peças que perfazem este volume
essa liberdade deu ainda outro passo, desfazendo-se de qualquer
matéria verbal que não os títulos individuais das “histórias”
ou a sua contextualização editorial, mas também por não perseguir
qualquer outra forma velada de organização narrativa. (Mais)
Quando falámos da antologia Abstract Comics, organizada por A. Molotiu, ou noutros momentos,
discutimos a insistência, verdadeiro imperativo humano, em
procurarmos organizações narrativas coerentes mesmo onde elas
poderiam não estar presentes à primeira vista. Simon O'Sullivan,
numa discussão sobre fotografia, considera a narração e a
ilustração como fazendo parte da representação, apelidando-as de
“formas de figuração”. Bebendo do conceito de
desterritorialização, de G. Deleuze e F. Guattari, que
sucintamente deve ser entendido como um estranhamento total e
incategorizável de uma forma de expressão (neste contexto),
O'Sullivan vê a figuração como sendo uma “posição errada” do
figural, sendo a outra posição a da “desterritorialização
absoluta da figura (um movimento em direcção à abstracção
total)”. Quando lemos algumas das histórias de Abstract
Comics ou o Bleu de Lewis Trondheim, e até mesmo no
caso de abstracções puras e geométricas, começamos a olhar para
as formas à procura de códigos que as organizem, isto é, e para
empregar uma expressão de O'Sullivan, que passem pelo cérebro,
em vez de algo que afecte directamente o sistema nervoso. Por outras
palavras, toda e qualquer experimentação com a forma que possa
tombar em categorias de resto familiares acabará por se
re-territorializar.
É discutível se este trabalho de
Diniz Conefrey é uma absoluta desterritorialização ou se, pelo
contrário, permite alguma re-categorização e re-familiarização
das suas formas. O livro tem quatro unidades, cada qual com o seu
título: “Membrana fóssil”, “A matéria do vento”, “Pequenos
mundos” e “Tornado a casa”. A própria subsunção a um título
como Metereologias, e o cotejamento com os desenhos nas suas
características gerais – pinceladas concêntricas, de linhas
paralelas e sinuosas, dispersões de linhas em formas de volutas,
dunas, ventos, quase-naturais, faria pensar numa espécie de projecto
de representação figurativa de fenómenos e sistemas, e assim
caíriamos em territórios familiares. Seria como se estivéssemos
tão-somente perante os ambientes que um Mattoti cria para O homem
à janela ou um Toppi ou Battaglia lançam para adensar as
texturas das suas pranchas mas depois não viessem os restantes
elementos naturalistas e propriamente narrativos. Se citamos esses
nomes, é porque encontramos algumas afinidades de prática, mas não
é só isso, se isso é, que se passam em Meteorologias.
O volume tem ainda um prólogo do
investigador Aarnoud Rommens. Rommens está neste momento a preparar
um volume dedicado ao campo da banda desenhada abstracta, coligindo
ensaios originais e trabalhos de artistas. Se nos é permitido
dizê-lo, um desses ensaios será nosso, recuperando algumas leituras
em torno de 978 de Pascal Matthey e do trabalho de
diceindustries, mas num enquadramento mais académico. Além disso, a
abertura do projecto permitiu que se incluíssem trabalhos de autores
portugueses, como é o caso preciso de Conefrey e ainda de Cátia
Serrão. O prólogo faz uma leitura determinada e “mecânica”,
por assim dizer, atento às especificidades das transições, esquema
compositivo, ritmo, diferenças e repetições do trabalho das marcas
gráficas, os níveis de manipulação pós-desenho, etc., sem deixar
de fazer uma associação da componente estética a toda uma série
de produções humanas, históricas e particulares.
Muitas vezes se discute ou se diz que
não há que ter informações externas sobre uma obra de arte para a
apreciar, desfrutar, interpretar, ler. Mas tal afirmação apenas se
pode dissolver numa generalização tão grande que demonstra desde
logo o afastamento da tremenda diversidade de produções,
intensidades, formas e graus de leituras possíveis dessas mesmas
obras de arte. De novo, o problema está na criação de um só
filtro normativo e essencialista para nos aproximarmos de todos os
textos. No caso das bandas desenhadas de Conefrey neste livro, há
com efeito que procurar ler com mansidão e abertura a cada uma das
páginas abertas. Folheá-lo não é lê-lo.
Ora Rommens faz interpretações
bebendo das disciplinas da dança e da ciência biológica, todas
elas válidas e interessantes, estimulando-nos a ler então nas
formas de Conefrey modos de resposta a toda uma série de
interpelações do mundo que habitamos. Ver então Meteorologias
como uma máquina de desemaranhar o mundo é uma possibilidade clara,
seguindo os elementos do “tempo, duração, ritmo” (quase
prometendo um diálogo com Tarkovsky e o seu Esculpir o tempo).
Não desejamos invalidar essa interpretação, mas a parte mais
intensiva da leitura de Rommens prende-se à sua manutenção ao
nível superficial das páginas. É ao próprio acto de leitura, ao
afecto e sensações de acompanhar as especificidades materiais das
imagens de Conefrey em cada “ciclo” que importa prestar atenção:
a leitura como “exercício fisiológico”.
Cada uma das unidades foi desenhada num
bloco Moleskine de vinhetas pré-determinadas. O autor parece ter
trabalhado exclusivamente, no lavrar das imagens, com tinta-da-China. Pincel, caneta,
lápis são os instrumentos lavradores. Em determinados momentos, o
autor porém empregou algumas técnicas de manipulação digital
(imagens em negativo, pequenas distorções, sobreposições,
desfocagens, filtros) que alteram a natureza das imagens para além
das meras “limpezas”, ajustamento de níveis, etc. que fazem
parte da conta-corrente das práticas artísticas actuais. As
técnicas de imposição das manchas segue as mais diversas posições
do pulso, levando a linhas carregadas, grossas, negras e densas aqui,
e ali a manchas mais difusas, esgarçadas, resquícios de passagens
meio-secas. Existem momentos de maior “acalmia”, em que o espaço
branco predomina nas pequenas formas formando-se, e outros em que
padrões geométricos e regularizados se constroem e se cruzam.
“Membrana
fóssil” apresenta uma composição de página mista,
mostrando “vinhetas” pequenas em grupos de quatro, empilhadas,
recordando um pequeno filme, para paulatinamente deixar as linhas se
escaparam dos seus limites, obrigando a outras distribuições,
regressando a uma ordem anterior, numa respiração latente das
linhas pinceladas. “A matéria do
vento” apresenta linhas brancas contra um fundo negro,
invertendo a relação anterior, mas igualmente trabalhando sobretudo
eixos verticais ao início, que se vão complicando, misturando,
complexificando e acalmando. De acordo com o prefácio, “Pequenos
mundos” baseia-se no portfólio de arte múltipla Kleine Welten
que Kandinsky elaborou em 1922. Sentindo-se haver aqui uma maior
focalização na ideia de variação e diferenciação a partir de um
tema, seria possível entender “episódios” internos a este
ciclo, que passam pelas formas desenhadas, a distribuição na
composição (um dos momentos cria uma coordenação inusitada entre
as quatro vinhetas, como se pode ver na imagem deste parágrafo), a
concentração das imagens, a intensificação de padrões, a
inversão do preto e branco, convidando então a uma leitura
microcósmica e ainda mais autonomizada no interior do ciclo.
Finalmente, “Tornado a casa”, em que a tradução em inglês dá
a entender que o primeiro vocábulo deve ser entendido como o
fenómeno metereológico, e não o verbo, criando um eco temático
claro no interior de todo o projecto, há uma busca mais nítida pelo
estilhaçamento. Sendo as imagens apresentadas quatro a quatro em
cada dupla página, a qualidade das imagens é sempre diferente em
cada virar de página, buscando naturezas bem mais contrastivas, até
uma verdadeira explosão (sim, seguimos ainda, inevitavelmente?, o
território da representação-figuração; a linguagem a isso
obriga, ou não saberemos nós livrar-nos dela) e finalmente
dissolução total.
Desta feita, poderíamos ler esta
última peça como, a um só tempo, uma busca pelo frenesim total da
experimentação desregrada e, ao mesmo tempo, um lançamento
auto-aniquilador no branco da página? Será possível
reterritorialiar este estimulante e livre experimento de Conefrey a
partir de um posicionamento moral, de compreensão do gesto
artístico, estético, manual, sob as categorias de uma ontologia
humanista? Ou será antes esse paradoxal excesso e minimalismo antes
um sinal da impossibilidade precisamente de compreender estes
sistemas tão acima do nível humano?
Meteorologias é um gesto
superior da parte do autor em querer manter-se num território cujo
nome é ainda “banda desenhada”, mas afastando-se dos seus campos
mais convencionais quase até ao momento em que o horizonte não
permite vislumbrar esses mesmos campos. Para descobrir que esse
território, todavia, não acaba ali, abrupto e derradeiro, mas
oferece ainda terreno sólido para continuar a caminhar. É a
responsabilidade do leitor, então, caminhar com a leitura.
Nota final: agradecimentos ao autor,
pela oferta do seu volume.
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