O último livro de Daniel Clowes está
longe de conquistar o mesmo papel que obras anteriores do autor. Para
um nome que exerceu uma importância fundamental na banda desenhada
alternativa norte-americana e que em parte ajudou a alavancar uma
certa transformação social, a “mudança literária”, desta
mesma disciplina (lembremo-nos de dois gestos da sua recepção
crítica, aqui e aqui), Patience é uma obra desinspirada e
que demonstra alguma limitação na manipulação da sua matéria.
Até certo ponto, é como se se tratasse de um daqueles projectos
criados por obrigação contratual, mais do que por necessidade
intrínseca de criação. (Mais)
Patience é a história
dramática de um casal que não vive nas melhores condições
económicas e que está à espera de bebé. Patience é morta no
apartamento, e Jack é acusado desse assassínio, se bem que é
ilibado meses depois. Durante décadas, ele alimentará a bílis
provocada pelo caso por resolver e pela irreparável perda, dupla.
Quase por mero acaso descobre a possibilidade de viajar no tempo, e
resolve então regressar ao passado para salvar a mulher grávida.
Sucessivos saltos no tempo fazem-no errar o “alvo”, lançando-o
nas típicas situações paradoxais associadas às narrativas de
viagens no tempo.
Clowes tenta criar uma tessitura mais
complexa de causas e consequências e, como se espera, de
consequências que se tornam causas. Porém, não apenas essas
estruturas são relativamente simples em relação aquilo que as
narrativas de viagem no tempo já conseguiram construir (de Mort
Cinder aos Time Twisters de Alan Moore), como são um solo
algo enfraquecido para a narrativa emocional destas personagens. O
facto do autor esgrimir, em mais de um nível, a ideia de estar a
trabalhar no género da ficção científica, não é mais do que uma
rasteira. Bem pode surgir como subtítulo descritivo, ser discutido
pelo próprio protagonista, etc., mas muitas das regras expectáveis
da ficção científica, sobretudo precisamente a dimensão
científica, por mais fabulosa que seja, não está presente.
O desconhecimento da parte da personagem principal dos mecanismos
básicos do dispositivo que usa, da substância que emprega e dos
paradoxos temporais potenciais é por demais sublinhada, afastando
assim a hipótese ao leitor habituado a esse género ter acesso a
qualquer tipo de techno-babble.
Isso não será, em si mesmo, um
problema. Porque, enfim, Clowes continua a colocar no centro
nevrálgico das suas histórias a mesma realidade de sempre. Pouco
importa se ele reveste as suas narrativas de contornos genéricos da
ficção científica, do policial, da novela surrealista, da comédia
romântica, dos super-heróis. A sua matéria é a condição
patética do ser humano. “Patético” aqui, recordemos, associa-se
ao seu sentido profundo, etimológico, do grego pathein,
“sofrimento”, significando portanto uma abertura imediata, fácil,
talvez superficial, às emoções: algo que tenta despertá-las da
maneira mais rápida e flutuante possível. O contrário é a
apatheia, a liberdade ou desprendimento em relação às
emoções. Se essas duas palavras constroem da forma mais clara
possível uma irresolúvel oposição, não significa isso que não
possa haver uma paradoxal mistura entre os dois num mesmo espaço, a
saber, estético, como é o caso de Patience.
Aquilo que deveria alimentar a
narrativa seria o desespero, mas ainda assim espicaçador, de Jack,
em relação à perda da sua potencial família. Mas o intervalo que
separa o evento trágico e o seu mergulho na hipótese de resolução
é tratado com demasiada distância e rapidez para o leitor
compreender a verdadeira necessidade disso mesmo. Jack surge-nos
apenas como uma personagem perdida no passado, e não um vingador
movido. Não há, enfim, qualquer mecanismo que nos leve a sentir
empatia, ou sequer simpatia, por Jack. Alguns outros leitores desta
obra apontam como Clowes parece continuar a alimentar uma visão
desequilibrada em termos de género. Afinal de contas, este cenário
trans-temporal permite que leiamos uma história de um homem bem mais
velho a tentar salvar uma rapariga acabada de sair da adolescência,
sem que pensemos imediatamente numa relação directa. Schuiten
abandona-se a essa fantasia de forma directa e sem artifícios;
Clowes cria um mecanismo rocambolesco para disfarçar essa mesma
situação. Daqui a considerar Jack como avatar do próprio autor e
Patience como fantasma de fantasias por resolver, é um passo.
O livro, porém, não foca somente a
consciência de Jack. Por vezes centramo-nos na experiência de
Patience, tendo acesso à sua voz interna, mas nunca com a mesma
desenvoltura em relação ao protagonista masculino. Todavia, o
aspecto mais frágil é que isso funciona menos como uma técnica de
polifonia que torne complexa a intriga e a obra, do ponto de vista
narrativo, corrigindo, por hipótese, perspectivas, ou providenciando
versões que o leitor deveria destrinçar, do que uma aparente
distracção e forçada solução de diversidade. Estamos longe das
explorações que Clowes fazia quer do ennui da
pós-adolescência dos anos 1990, ou das crises que ficam por
resolver na infância e que alimentam a nostalgia subsequente. O
humor também parece ter-se evacuado, com a excepção de piadas
superficiais e às custas de aspectos pouco interessantes (em torno
de personagens bêbadas, violência, sexo e um imitador de Bizarro).
Pela sua própria matéria temática, e
alguma tentativa de worldbuilding do futuro (sempre dentro do
humor cínico de Clowes, aqui algo mais enfraquecido, mas mostrando
que continuam os mesmos mecanismos de alienação cultural e de
obstáculos sociais), Patience recorda em parte Âama,
de F. Peeters. Mas onde a obra do autor belga tira partido desse
ambiente genérico para criar uma afinal tranquila história das
relações emotivas que unem as suas personagens (pai e filha),
Clowes acaba por carregar no acelerador em relação à busca por
Patience por Jack, e a todas as reacções destas personagens aos
eventos que os rodeiam. É certo que os exageros de Clowes se
revestem da sua costumeira veia sarcástica, representando os humanos
como seres mesquinhos, egoístas e cegos às necessidades dos outros,
podendo lermos com alguma distância cómica esses mesmos
comportamentos de vingança, violência, desespero, mas por essas
mesmas razões as coisas acabam por se esgotar nesse espectáculo.
Não há tempo sequer para um grão de simpatia para com estas
personagens.
Mesmo em termos de composição e
estratégias visuais, Patience é um livro menor. O autor não
parece particularmente interessado em criar momentos de elegância,
mas antes uma confusa profusão de abordagens, abusando, a nosso ver,
de composições com vinhetas maiores que ocupam imenso espaço (por
vezes mesmo três vinhetas, ou duas, splash pages e spreads)
mas que não trazem o impacto visual ou actancial que deveriam
comportar. Ocupam é espaço mais depressa... Não estamos aqui
perante um exercício de heterogenia gráfica e metatextual como
foram os casos de Ice Haven e, em menor escala, Mr. Wonderful. As flutuações de estilo, aí, tinham um papel de
significado. Em Patience há homogeneidade de estilo, mas não
de composição, se bem que possamos identificar cada transformação
com os “episódios temporais”. Os efeitos “fantásticos”, nos
momentos de transporte temporal, são algo pobres (com meia dúzia de
formas semi-orgânicas ou poliédricas). A cor, sempre plana e
garrida, torna estranhamente o livro algo monótono. Para uma
estrutura narrativa que não é particularmente densa nem
surpreendente, há algo de pífio em Patience.
Um dos poucos pontos fortes é a
primeiríssima página (mostrada acima), que começa com um orgasmo fecundador em
close-up hiperbólico, e organiza a premissa primeira de imediato. Um
começo intenso, mas que vai prometendo o modo como se esboroa a
longo prazo. E fica uma pergunta: que papel ocupa Clowes hoje? Líder ainda do "alternativo" ou novo valor de um novo mainstream?
Nota final: agradecimentos à editora,
pelo envio dos ficheiros digitais.
Sem comentários:
Enviar um comentário