O acompanhamento diversificado e
saudável da banda desenhada enquanto disciplina artística e
criativa já informou os leitores atentos que não existem
possibilidades de criar categorias demasiado fechadas para
descrevê-la como um todo homogéneo. Criar hierarquias absolutas
para depois julgar objectos totalmente diferentes entre si é
insensato. Existem projectos que ganham predominância por serem
majestosas construções das estruturas específicas da visualidade
da banda desenhada, e outros em que é a qualidade narrativa que os
acaba por tornar incontornáveis. E existem variadíssimos graus de
equilíbrio entre esses elementos. Há títulos ainda que ganham
notoriedade pelo papel fundamental que terão tido na sua
circunstância histórica e outros que, na sua obscuridade face a um
público mais massificado, são gestos fulcrais na expansão da
expressividade estética da disciplina. Não podemos, por isso, estar
sempre à espera de “histórias”, “coerência”, “relevância”,
ou outro termo qualquer que actuasse com um poder suficientemente
explicativo. A Kramer's Ergot, enquanto antologia dos mais
diversos tipos de banda desenhada que revelam acima de tudo um prazer
quase epidérmico da criação, uma verve e naturalidade em auscultar
as possibilidades deste campo para se explorar o que bem se entender,
deve ser vista, com efeito, acima de tudo como um dos melhores pontos
de encontro de uma banda desenhada que se vive a si mesma sem a
preocupação de um sentido ulterior. (Mais)
A antologia continua a actuar como um
best of da banda desenhada “artística” norte-americana
contemporânea, e bem que esteja aberta a receber alguns contributos
de autores estrangeiros e de várias gerações. O seu princípio não
é aquele que preside à The Best American Comics, ou An Anthology of Graphic Fiction, Cartoons & True Stories, cujo
princípio é claramente o da canonização de um grupo de autores de
acordo com critérios alavancados numa recepção académica (mas não
só). Enquanto esse outro gesto antológico muda de editor de forma a
poder cumprir perspectivas bem diferentes entre si mas que por isso
mesmo acabam por confirmar uma ideia de cânone, a Kramer's,
nas mãos de Sammy Harkham, revelam uma flutuação mais subjectiva
e, talvez por isso, mais alargada até no próprio entendimento do
que se pode revelar como “importante” num determinado momento. A
alteração dos formatos, das plataformas publicadoras, e de outros
pormenores físicos, determinam igualmente as escolhas ou a
eficiência da colecção. Tendo já falado da 5ª e da 7ª edição,
alguns dos comentários produzidos então têm aqui alguma validade.
Mas outros menos, graças a essa natureza mutante.
O tamanho desta 9ª antologia está
próxima da do álbum europeu, mas atinge quase as 300 páginas. Não
é uma leitura fácil em termos físicos, mas tampouco psicológicos.
Já falámos muitas vezes do que preside às antologias para
repetirmos as mesmas ideias, mas se existe uma expectativa
“narrativa” ao lermos projectos como Crumbs ou Quadradinhos, e uma abandono ao “visual” com Mould Map
ou a Volcan, aqui somos mesmo obrigados a ponderar lermos
com calma cada “peça”, já que os humores e as naturezas das
histórias e/ou imagens se altera drasticamente a um virar de página.
Encontraremos sobretudo banda
desenhada, mas há igualmente alguns ciclos de desenhos individuais
(o caso de Amandine Meyer, Al Columbia, Marc Bell, Jon Haley, um
desenho de Jonny Negron, todos eles associando-se de forma clara à
produção consabida de cada um desses autores) e até de pinturas
que se agregam sob um tema comum (os “Flesh Paintings” de Jerry
Moriarty, que dão continuidade a um projecto estranhamente
autobiográfico e melancólico do autor de Jack Survives).
Encontraremos igualmente excertos de trabalhos maiores que
possivelmente encontrarão edição completa mais tarde, como é o
caso de “Windows”, um projecto autobiográfico de Gabrielle Bell,
“Discipline”, possivelmente um livro de ficção histórica de
grande fôlego de Dash Shaw, e “Shrine of the Monkey God!”, de
Kim Deitch, a qual, sendo uma história completa, é capaz de fazer
parte de um ciclo de um livro para breve, dentro do campo que o autor
tem explorado de misturar aspectos de uma certa linha da cultura
popular norte-americana e a sua própria vida (ficcionada,
certamente).
Do material mais convencional,
encontraremos histórias que exploram a cultura urbana contemporânea,
misturando mundos de referências para trabalhar os mais diversos
humores, alguns até algo patetas mas que, lá está, exploram uma
dinâmica e alegria de criar banda desenhada quase juvenil e que
instila na antologia uma urgência positiva. Intrigas policiais de
alta octanagem e acção hiperbólica, aventuras nocturnas de uma
geração blasé, a vida de
uma banda de animais antropomórficos, e muitas, muitas cenas que
colocam um certo grau de violência insana no centro da atenção.
Alguns trabalhos têm até uma natureza algo “retro”, como
os de Tim Hensley, Abraham Díaz, Antony Huchette, Gabriel Corbera,
entre outros, sendo possível fazer uma constelação de associações
a este ou outro género de banda desenhada ou até mesmo um autor
concreto. Como se utilizassem uma mesma roupagem anteriormente
empregue para com ela veicular uma cultura desencantada. Nesse
sentido, não estamos muito longe dos mesmos instrumentos do que os
underground comix dos anos 1960.
Haverá certamente trabalhos para
muitos gostos bem distintos, sendo possível atravessarmos histórias
tranquilamente melancólicas como as de Manuele Fior para depois
enveredar por uma fantasia psicadélica com Patrick Kyle, partir de
uma pequena fábula fantástica no Oeste americano com Steve Weissman
para chegar ao humor nonsense mas de observação do momento
de Archer Prewitt, passando por representações da história do
Cristianismo com Anya Davison e a veloz loucura de um Helge Reumann,
e as perturbantes sequências de Noel Freibert.
Se outras antologias tentam navegar
águas mais ou menos consentâneas a ideias já previstas, ou
colecções tentam dominar o território dentro de expectativas
comuns, a Kramer's Ergot, com outros gestos, continuam a ter
como seu propósito principal estilhaçar essas mesmas ideias e
expectativas, demonstrando que ainda há muita surpresa e prazer no
inconsequente acto de querer criar.
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