28 de junho de 2016

Kramer's Ergot no. 9. AAVV (Fantagraphics)

O acompanhamento diversificado e saudável da banda desenhada enquanto disciplina artística e criativa já informou os leitores atentos que não existem possibilidades de criar categorias demasiado fechadas para descrevê-la como um todo homogéneo. Criar hierarquias absolutas para depois julgar objectos totalmente diferentes entre si é insensato. Existem projectos que ganham predominância por serem majestosas construções das estruturas específicas da visualidade da banda desenhada, e outros em que é a qualidade narrativa que os acaba por tornar incontornáveis. E existem variadíssimos graus de equilíbrio entre esses elementos. Há títulos ainda que ganham notoriedade pelo papel fundamental que terão tido na sua circunstância histórica e outros que, na sua obscuridade face a um público mais massificado, são gestos fulcrais na expansão da expressividade estética da disciplina. Não podemos, por isso, estar sempre à espera de “histórias”, “coerência”, “relevância”, ou outro termo qualquer que actuasse com um poder suficientemente explicativo. A Kramer's Ergot, enquanto antologia dos mais diversos tipos de banda desenhada que revelam acima de tudo um prazer quase epidérmico da criação, uma verve e naturalidade em auscultar as possibilidades deste campo para se explorar o que bem se entender, deve ser vista, com efeito, acima de tudo como um dos melhores pontos de encontro de uma banda desenhada que se vive a si mesma sem a preocupação de um sentido ulterior. (Mais) 

A antologia continua a actuar como um best of da banda desenhada “artística” norte-americana contemporânea, e bem que esteja aberta a receber alguns contributos de autores estrangeiros e de várias gerações. O seu princípio não é aquele que preside à The Best American Comics, ou An Anthology of Graphic Fiction, Cartoons & True Stories, cujo princípio é claramente o da canonização de um grupo de autores de acordo com critérios alavancados numa recepção académica (mas não só). Enquanto esse outro gesto antológico muda de editor de forma a poder cumprir perspectivas bem diferentes entre si mas que por isso mesmo acabam por confirmar uma ideia de cânone, a Kramer's, nas mãos de Sammy Harkham, revelam uma flutuação mais subjectiva e, talvez por isso, mais alargada até no próprio entendimento do que se pode revelar como “importante” num determinado momento. A alteração dos formatos, das plataformas publicadoras, e de outros pormenores físicos, determinam igualmente as escolhas ou a eficiência da colecção. Tendo já falado da e da edição, alguns dos comentários produzidos então têm aqui alguma validade. Mas outros menos, graças a essa natureza mutante.

O tamanho desta 9ª antologia está próxima da do álbum europeu, mas atinge quase as 300 páginas. Não é uma leitura fácil em termos físicos, mas tampouco psicológicos. Já falámos muitas vezes do que preside às antologias para repetirmos as mesmas ideias, mas se existe uma expectativa “narrativa” ao lermos projectos como Crumbs ou Quadradinhos, e uma abandono ao “visual” com Mould Map ou a Volcan, aqui somos mesmo obrigados a ponderar lermos com calma cada “peça”, já que os humores e as naturezas das histórias e/ou imagens se altera drasticamente a um virar de página.

Encontraremos sobretudo banda desenhada, mas há igualmente alguns ciclos de desenhos individuais (o caso de Amandine Meyer, Al Columbia, Marc Bell, Jon Haley, um desenho de Jonny Negron, todos eles associando-se de forma clara à produção consabida de cada um desses autores) e até de pinturas que se agregam sob um tema comum (os “Flesh Paintings” de Jerry Moriarty, que dão continuidade a um projecto estranhamente autobiográfico e melancólico do autor de Jack Survives). Encontraremos igualmente excertos de trabalhos maiores que possivelmente encontrarão edição completa mais tarde, como é o caso de “Windows”, um projecto autobiográfico de Gabrielle Bell, “Discipline”, possivelmente um livro de ficção histórica de grande fôlego de Dash Shaw, e “Shrine of the Monkey God!”, de Kim Deitch, a qual, sendo uma história completa, é capaz de fazer parte de um ciclo de um livro para breve, dentro do campo que o autor tem explorado de misturar aspectos de uma certa linha da cultura popular norte-americana e a sua própria vida (ficcionada, certamente).

Do material mais convencional, encontraremos histórias que exploram a cultura urbana contemporânea, misturando mundos de referências para trabalhar os mais diversos humores, alguns até algo patetas mas que, lá está, exploram uma dinâmica e alegria de criar banda desenhada quase juvenil e que instila na antologia uma urgência positiva. Intrigas policiais de alta octanagem e acção hiperbólica, aventuras nocturnas de uma geração blasé, a vida de uma banda de animais antropomórficos, e muitas, muitas cenas que colocam um certo grau de violência insana no centro da atenção. Alguns trabalhos têm até uma natureza algo “retro”, como os de Tim Hensley, Abraham Díaz, Antony Huchette, Gabriel Corbera, entre outros, sendo possível fazer uma constelação de associações a este ou outro género de banda desenhada ou até mesmo um autor concreto. Como se utilizassem uma mesma roupagem anteriormente empregue para com ela veicular uma cultura desencantada. Nesse sentido, não estamos muito longe dos mesmos instrumentos do que os underground comix dos anos 1960.

Haverá certamente trabalhos para muitos gostos bem distintos, sendo possível atravessarmos histórias tranquilamente melancólicas como as de Manuele Fior para depois enveredar por uma fantasia psicadélica com Patrick Kyle, partir de uma pequena fábula fantástica no Oeste americano com Steve Weissman para chegar ao humor nonsense mas de observação do momento de Archer Prewitt, passando por representações da história do Cristianismo com Anya Davison e a veloz loucura de um Helge Reumann, e as perturbantes sequências de Noel Freibert.


Se outras antologias tentam navegar águas mais ou menos consentâneas a ideias já previstas, ou colecções tentam dominar o território dentro de expectativas comuns, a Kramer's Ergot, com outros gestos, continuam a ter como seu propósito principal estilhaçar essas mesmas ideias e expectativas, demonstrando que ainda há muita surpresa e prazer no inconsequente acto de querer criar.  

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