Não é sem alguma arrogância que consideramos as escolhas presentes numa selecção ou antologia. Apesar de sabermos que a exaustão e a completude não são sequer os objectivos ou o fim desse movimento de escolha, qualquer que seja a forma com que essa se nos apresente leva-nos impreterivelmente a querer transformá-la. Ou por boas intenções e nos parecer que “falta” um nome, ou por nos parecer criticamente que uma das inclusões não possui a mesma qualidade que as demais, ou até, e talvez seja este o propósito mais natural, enfim, para demonstrarmos as nossas próprias capacidades de antologiador, um exercício desse poder que não passou por nós mas que, nessa correcção, desejamos fazer transparecer.
Podem, entretanto, surgir argumentações que pretendam fundamentar esse nosso movimento de correcção. Ao deparar-me com The Mammoth Book of Best War Comics (de uma colecção que deseja publicar enormes livros sobre temas variadíssimos, e este é o segundo de banda desenhada, de outros que se seguirão, conforme a editora), cuja escolha é da responsabilidade de David Kendall, um consultor literário, sinto-me levado a exercer essa arrogância mínima, por razões que se espelham na introdução do editor. Faz-me perguntar, desde logo, onde se encontram Joe Sacco, Tom Tomorrow, ou Peter Kuper (se bem que haja uma curta de Eric Drooker, companheiro deste último autor na World War III). E nem vale a pena virarmo-nos para trabalhos nas “margens” da banda desenhada ou na ilustração, que em muito tornariam este num bloco muito mais poderoso... penso em Frans Masereel, em Boris Artzybasheff, Mervyn Peake,... Mas a escolha está feita e não deve ser vista “em aberto”. No entanto, abrem-se brechas nessa mesma construção.
A pequena história A Bullet for Me de Darko Macan e Edvin Biuković recordar-nos-á de imediato Grendel Tales: Devils and Deaths, que não mais é do que uma refiguração da guerra que desagregou a Jugoslávia de vez no interior do universo ficcional da série Grendel, de Matt Wagner, e que continua a ser não só uma excelente história de guerra como um dos melhores títulos, se não o melhor, de toda a série indicada. Um dos problemas, perfeitamente justificáveis, mas que provoca essa pena, é a não inclusão de obras maiores. Logo, este meu “ataque” é que se torna injustificável. Mais, tendo em conta as experiências havidas na antologia de Ivan Brunetti, na qual a inclusão de partes de trabalhos maiores chegava mesmo a ser prejudicial à clareza dos propósitos (quer da antologia em si quer da história), a decisão estrutural de Kendall parece-nos bem conseguida e correcta, como forma de introdução aos novos leitores e como espaço de revisitação aos que já as haviam lido. Se coubessem narrativas maiores, talvez insistisse em que se houvesse juntado a estas outras histórias parte do álbum La Bête est Morte!, de Jacques Zimmermann e Edmond-François Calvo, uma espécie de álbum infantil de ilustração/banda desenhada onde os animais representam toda a 2ª Guerra Mundial, recordando tantos outros títulos de construção similar, mas mantendo uma leveza e divertimento estranhos para tema tão grave. Mas ainda assim, um dos melhores livros de guerra no território da banda desenhada.
Todavia, e apesar de aparentemente os esforços de Kendall terem procurado gestos fora do espaço anglo-saxónico, a escolha limita-se ao que foi publicado nos Estados Unidos e Inglaterra ou pelo menos em inglês (com a única excepção da história do alemão Ulli Lust) – a história de Nakazawa é a mais antiga história publicada em inglês do autor japonês e extremamente famosa, as histórias de Macan e Biuković foram publicadas na Negative Burn, as de Danijel Zezelji e de Askold Akishin (ou Akishine, de quem incluo aqui uma imagem) em publicações já traduzidas, a do sueco Fabian Gorason saíra na Warburger... Logo, a procura não foi de modo algum, verdadeiramente internacional. Senão, talvez pudéssemos esperar encontrar aqui histórias de Oesterheld, de Tardi, de Cava, e de tantos outros nomes importantes neste campo específico da criação da banda desenhada. Esta argumentação não faria qualquer sentido se o editor tivesse afirmado ter trabalhado nesses parâmetros, mas como diz ter procurado para além da Inglaterra e dos Estados Unidos, ganharia se tivesse também ultrapassado os limites do conhecimento de uma só língua. O contrário da guerra não é apenas a paz, mas a entrada num conflito pela positiva, isto é, encontrar obstáculos e demoli-los. Essa demolição é uma vitória e vai pelo nome de aprendizagem, encontro, convívio, debate, e muitos outros.
O que acontece é que o entendimento de “histórias de guerra” acaba por se limitar a aspectos de acção, e não às ligações que a guerra provoca. A inclusão de The Legion of Charlies, da dupla underground de Tom Veitch e Greg Irons, parece querer mostrar uma maior amplitude, mas acaba por apenas confirmar uma certa aura de nostalgia e até uma certa limitação em criticar a guerra pelo lado do abjecto. É nesses aspectos que a selecção acaba por não parecer significativa. Por exemplo, não se justifica que o editor inclua uma história de Archie Goodwin (desenhada por Joe Orlando) que havia sido publicada na Blazing Combat, indicado que “é raro ter uma história sobre não-combatentes”, e ainda utilize na capa uma ilustração retocada de Harvey Kurtzman (da Frontline Combat # 2), mas jamais incluindo o sequer citando este autor. Ora, esse gesto deve provocar algumas questões, tendo em conta que Kurtzman, quase solitariamente, introduziu na produção da mais normalizada linha das bandas desenhadas de guerra (heróicas, combativas, pró-Governo, belicistas, violentas) histórias sobre os outros lados da guerra (o do inimigo, o do medroso, o do pacifista, o da identidade na morte de todos os combatentes). Aliás, quer na Frontline Combat quer na Two-Fisted Tales, surgiam muitas vezes histórias sobre não-combatentes num cenário de guerra. Goodwin aprendeu decisivamente com Kurtzman, mas as histórias destoutro eram superiores em todas as frentes.
Não obstante estas (aparentes, derivadas da minha sobranceira para com o trabalho de escolha efectuado) limitações, há inclusões surpreendentes. A história The Landings in Sicily, retirada da Combat Picture Library, de autores anónimos, é uma daquelas bandas desenhadas típicas de revistas de gare de comboio, mal desenhadas, de estruturas básicas, e que provavelmente jamais pararíamos para considerar. Mas a sua inclusão neste livro obriga-nos a ler, e essa leitura revela que mesmo nessas aparentes péssimas bandas desenhadas, literalmente “carne para canhão”, podem surgir pequenas surpresas de desenvolvimento psicológico das suas personagens. Aliás, Kendall não esconde algum grau de nostalgia como tendo operado sobre este trabalho, e é claro que a Combat Picture Library, juntamente com a Blazing Combat e a Battle Picture Weekly foram as leituras que lhe ficaram de infância, numa dieta regular de “war comics” (por cá, várias revistas alimentavam esta “fome” e durante a guerra colonial surgiram algumas pérolas de propaganda). Uma história de Raymond Briggs é também uma inclusão feliz, pelo lado de um humor mais leve e de tons de conto infantil cortado pela súbita realidade dos soldados, e que pode reequilibrar a ausência desse universo, recordando mais uma vez La Bête est Morte! e ainda o livro The Butter Battle Book de Dr. Seuss, claramente sobre a Guerra Fria entre os E.U.A. e a U.R.S.S. E, finalmente, a presença da banda desenhada baseada em composições de crianças berlinenses em 1946, de Ulli Lust, torna, por si só, esta antologia mais diversificada no seu prisma (em certos aspectos, sobretudo a perspectiva das crianças ser o filtro dos acontecimentos, recorda-nos a mesma estratégia de Miriam Katin em We are on our own).
Nalguns casos, os scans devem ter sido feitos directamente das publicações e não da arte original, e não deve ter havido qualquer correcção gráfica dos mesmos, o que leva a alguns erros e incompreensíveis faltas de qualidade de impressão, e que incomodam a leitura de um modo visual como a banda desenhada (alguns parecem os scans deste blog).
Há relativamente pouco tempo apontáramos para uma tendência da banda desenhada contemporânea em tratar da guerra, surpreendentemente junto a autores que não tem essa experiência real directa. Esta antologia é uma boa oportunidade para encontrar algumas das linhas de continuidade ao longo de várias gerações e quadrantes de criação, e assim, tornar-se um contrapeso e medida de diferenciação do valor e tom dessas obras contemporâneas do “ruído de fundo” (ainda que diverso) que se compacta neste livro.