29 de agosto de 2007

The Mammoth Book of Best War Comics. David Kendall, ed. (Robinson)


Não é sem alguma arrogância que consideramos as escolhas presentes numa selecção ou antologia. Apesar de sabermos que a exaustão e a completude não são sequer os objectivos ou o fim desse movimento de escolha, qualquer que seja a forma com que essa se nos apresente leva-nos impreterivelmente a querer transformá-la. Ou por boas intenções e nos parecer que “falta” um nome, ou por nos parecer criticamente que uma das inclusões não possui a mesma qualidade que as demais, ou até, e talvez seja este o propósito mais natural, enfim, para demonstrarmos as nossas próprias capacidades de antologiador, um exercício desse poder que não passou por nós mas que, nessa correcção, desejamos fazer transparecer.
Podem, entretanto, surgir argumentações que pretendam fundamentar esse nosso movimento de correcção. Ao deparar-me com The Mammoth Book of Best War Comics (de uma colecção que deseja publicar enormes livros sobre temas variadíssimos, e este é o segundo de banda desenhada, de outros que se seguirão, conforme a editora), cuja escolha é da responsabilidade de David Kendall, um consultor literário, sinto-me levado a exercer essa arrogância mínima, por razões que se espelham na introdução do editor. Faz-me perguntar, desde logo, onde se encontram Joe Sacco, Tom Tomorrow, ou Peter Kuper (se bem que haja uma curta de Eric Drooker, companheiro deste último autor na World War III). E nem vale a pena virarmo-nos para trabalhos nas “margens” da banda desenhada ou na ilustração, que em muito tornariam este num bloco muito mais poderoso... penso em Frans Masereel, em Boris Artzybasheff, Mervyn Peake,... Mas a escolha está feita e não deve ser vista “em aberto”. No entanto, abrem-se brechas nessa mesma construção.
A pequena história A Bullet for Me de Darko Macan e Edvin Biuković recordar-nos-á de imediato Grendel Tales: Devils and Deaths, que não mais é do que uma refiguração da guerra que desagregou a Jugoslávia de vez no interior do universo ficcional da série Grendel, de Matt Wagner, e que continua a ser não só uma excelente história de guerra como um dos melhores títulos, se não o melhor, de toda a série indicada. Um dos problemas, perfeitamente justificáveis, mas que provoca essa pena, é a não inclusão de obras maiores. Logo, este meu “ataque” é que se torna injustificável. Mais, tendo em conta as experiências havidas na antologia de Ivan Brunetti, na qual a inclusão de partes de trabalhos maiores chegava mesmo a ser prejudicial à clareza dos propósitos (quer da antologia em si quer da história), a decisão estrutural de Kendall parece-nos bem conseguida e correcta, como forma de introdução aos novos leitores e como espaço de revisitação aos que já as haviam lido. Se coubessem narrativas maiores, talvez insistisse em que se houvesse juntado a estas outras histórias parte do álbum La Bête est Morte!, de Jacques Zimmermann e Edmond-François Calvo, uma espécie de álbum infantil de ilustração/banda desenhada onde os animais representam toda a 2ª Guerra Mundial, recordando tantos outros títulos de construção similar, mas mantendo uma leveza e divertimento estranhos para tema tão grave. Mas ainda assim, um dos melhores livros de guerra no território da banda desenhada.
Todavia, e apesar de aparentemente os esforços de Kendall terem procurado gestos fora do espaço anglo-saxónico, a escolha limita-se ao que foi publicado nos Estados Unidos e Inglaterra ou pelo menos em inglês (com a única excepção da história do alemão Ulli Lust) – a história de Nakazawa é a mais antiga história publicada em inglês do autor japonês e extremamente famosa, as histórias de Macan e Biuković foram publicadas na Negative Burn, as de Danijel Zezelji e de Askold Akishin (ou Akishine, de quem incluo aqui uma imagem) em publicações já traduzidas, a do sueco Fabian Gorason saíra na Warburger... Logo, a procura não foi de modo algum, verdadeiramente internacional. Senão, talvez pudéssemos esperar encontrar aqui histórias de Oesterheld, de Tardi, de Cava, e de tantos outros nomes importantes neste campo específico da criação da banda desenhada. Esta argumentação não faria qualquer sentido se o editor tivesse afirmado ter trabalhado nesses parâmetros, mas como diz ter procurado para além da Inglaterra e dos Estados Unidos, ganharia se tivesse também ultrapassado os limites do conhecimento de uma só língua. O contrário da guerra não é apenas a paz, mas a entrada num conflito pela positiva, isto é, encontrar obstáculos e demoli-los. Essa demolição é uma vitória e vai pelo nome de aprendizagem, encontro, convívio, debate, e muitos outros.


O que acontece é que o entendimento de “histórias de guerra” acaba por se limitar a aspectos de acção, e não às ligações que a guerra provoca. A inclusão de The Legion of Charlies, da dupla underground de Tom Veitch e Greg Irons, parece querer mostrar uma maior amplitude, mas acaba por apenas confirmar uma certa aura de nostalgia e até uma certa limitação em criticar a guerra pelo lado do abjecto. É nesses aspectos que a selecção acaba por não parecer significativa. Por exemplo, não se justifica que o editor inclua uma história de Archie Goodwin (desenhada por Joe Orlando) que havia sido publicada na Blazing Combat, indicado que “é raro ter uma história sobre não-combatentes”, e ainda utilize na capa uma ilustração retocada de Harvey Kurtzman (da Frontline Combat # 2), mas jamais incluindo o sequer citando este autor. Ora, esse gesto deve provocar algumas questões, tendo em conta que Kurtzman, quase solitariamente, introduziu na produção da mais normalizada linha das bandas desenhadas de guerra (heróicas, combativas, pró-Governo, belicistas, violentas) histórias sobre os outros lados da guerra (o do inimigo, o do medroso, o do pacifista, o da identidade na morte de todos os combatentes). Aliás, quer na Frontline Combat quer na Two-Fisted Tales, surgiam muitas vezes histórias sobre não-combatentes num cenário de guerra. Goodwin aprendeu decisivamente com Kurtzman, mas as histórias destoutro eram superiores em todas as frentes.
Não obstante estas (aparentes, derivadas da minha sobranceira para com o trabalho de escolha efectuado) limitações, há inclusões surpreendentes. A história The Landings in Sicily, retirada da Combat Picture Library, de autores anónimos, é uma daquelas bandas desenhadas típicas de revistas de gare de comboio, mal desenhadas, de estruturas básicas, e que provavelmente jamais pararíamos para considerar. Mas a sua inclusão neste livro obriga-nos a ler, e essa leitura revela que mesmo nessas aparentes péssimas bandas desenhadas, literalmente “carne para canhão”, podem surgir pequenas surpresas de desenvolvimento psicológico das suas personagens. Aliás, Kendall não esconde algum grau de nostalgia como tendo operado sobre este trabalho, e é claro que a Combat Picture Library, juntamente com a Blazing Combat e a Battle Picture Weekly foram as leituras que lhe ficaram de infância, numa dieta regular de “war comics” (por cá, várias revistas alimentavam esta “fome” e durante a guerra colonial surgiram algumas pérolas de propaganda). Uma história de Raymond Briggs é também uma inclusão feliz, pelo lado de um humor mais leve e de tons de conto infantil cortado pela súbita realidade dos soldados, e que pode reequilibrar a ausência desse universo, recordando mais uma vez La Bête est Morte! e ainda o livro The Butter Battle Book de Dr. Seuss, claramente sobre a Guerra Fria entre os E.U.A. e a U.R.S.S. E, finalmente, a presença da banda desenhada baseada em composições de crianças berlinenses em 1946, de Ulli Lust, torna, por si só, esta antologia mais diversificada no seu prisma (em certos aspectos, sobretudo a perspectiva das crianças ser o filtro dos acontecimentos, recorda-nos a mesma estratégia de Miriam Katin em We are on our own).
Nalguns casos, os scans devem ter sido feitos directamente das publicações e não da arte original, e não deve ter havido qualquer correcção gráfica dos mesmos, o que leva a alguns erros e incompreensíveis faltas de qualidade de impressão, e que incomodam a leitura de um modo visual como a banda desenhada (alguns parecem os scans deste blog).
Há relativamente pouco tempo apontáramos para uma tendência da banda desenhada contemporânea em tratar da guerra, surpreendentemente junto a autores que não tem essa experiência real directa. Esta antologia é uma boa oportunidade para encontrar algumas das linhas de continuidade ao longo de várias gerações e quadrantes de criação, e assim, tornar-se um contrapeso e medida de diferenciação do valor e tom dessas obras contemporâneas do “ruído de fundo” (ainda que diverso) que se compacta neste livro.

25 de agosto de 2007

The Horse-Headed Statue. Ilan Manouch (auto-edição)


Ilan Manouach já publicou obras em grego, ora em francês ora em inglês. Não há indicação de que esta seja uma tradução, mas a presença de algum “broken English”, a ausência do título da obra de Pausânias (Descrição da Grécia) que se tenta citar – mas não aparece no corpo de texto presumivelmente por estar em caracteres helénicos – e outros pequenos indícios levam a que surja uma maravilhosa magia: é essa mesma tradução selvagem que torna a mente tortuosamente literária e avidamente poliglota de Manouach que se torna o veículo perfeito para a reinvenção e repetição dos mitos antigos. O famosíssimo koan zen do domínio do touro (na pequena história na Éprouvette 3), a história do tigre comedor de homens (em Le lieux et les choses qui entouraient les gens desormais), os vários trabalhos oubapiannos em torno do Petzi, do casal Hansen... E agora os mitos em torno da deusa Deméter, sobretudo o episódio em que ela se recusa a manter o ciclo da Terra enquanto a sua filha Perséfone não retornar, após o rapto por Hades. Cada novo livro seu, cada trabalho, apresenta-nos histórias já sabidas, mas que nos alcançam de uma maneira diferente daquele que guardáramos nas nossas memórias, mesmo que essas versões fossem já compósitas de muitas anteriores.
É como se Manouach estivesse “mais perto de casa”, sublinhando os ritos secretos em torno da “mãe dos deuses”. Este é um pequeno caderno, que mais lembrará um catálogo barato de uma exposição de ilustrações, onde cada texto acompanha a par e passo uma imagem, imagens essas, oito, muito diversas entre si em termos de estilo, materiais, aproximações. Não estamos perante uma obra tão coesa como as citadas anteriormente, nem uma que atinge os píncaros da estranheza (essa qualidade das obras de arte que nos obrigam a entender o que significa ver mais uma vez) como Frag, mas perante um breve exercício de abertura de significados, o que já em si não é fim pequeno. Descobrimos numa loja de curiosidades escavada nas rochas da Arcádia uma estátua com uma cabeça de cavalo, estátua de Deméter (ou Ceres, na versão romanizada). Isso leva-nos a sabermos da sua vida, da perda da filha, da sua recusa em fertilizar o mundo e renovar as estações, da crucificação no relâmpago do seu amante Íasion, das suas metamorfoses, da crise da terra...

Porquanto num tempo em que elas ganham não só estatuto de cidadania mas também provocam excessos e paixões na esfera da política convergem aqui também interpretações e atitudes ecológicas contemporâneas, e ainda associações filosóficas, em certa medida num entendimento de estarmos perante os “últimos dias”, a queda dos “dias dourados”. Não há redenção nem retorno em The Horse-Headed Statue. Porém, a aliança entre a leitura escatológica dos “sinais” e a criação da poesia, normalmente uma poesia cheia de (ou do que nos parecem ser) associações livres, imagens metafóricas inusuais, descrições absolutamente materialistas de objectos que não existem na lógica do mundo racional, não é novidade na História do Homem. Manouach tem contribuído para o crescimento desse tipo de obras que parecem pertencer a todos os tempos e horas, como já acontecera com Arbres en Plastique, Feuilles en Papier, agora com The Horse-Headed Statue e acontecerá ainda com um outro projecto em curso em torno dos... "fumos" (nos quais participarão alguns dos ilustradores da nossa praça).
Para mais informações: http://ilanmanouach.com/
Nota: agradecimentos a Ilan Manouach, pela oferta do seu novo pequeno livro.

Lendemains de Cendres. Séra (Delcourt)


Amanhãs de cinzas é um título, a um só tempo, perspectivo, introspectivo e falso. Séra é o nom de plume ou alcunha de Phoussera Ing, um artista de origem cambodjana (paterna) que se viria a refugiar em França após a tomada de poder dos Khmer Vermelhos. Após ter dado corpo gráfico a vários projectos de banda desenhada escritos por outros autores, aos poucos tem-se aproximado de um projecto, que se presume de longa duração, de revisitar as suas memórias do Cambodja, mas também as do próprio país, onde confluirão diatribes contra a violência exercida pelo regime de Pol Pot, os abusos das ideologias, os erros diplomáticos, o sofrimento das populações. Impasse et Rouge e L’Eau et la Terre foram os primeiros blocos desse edifício, Lendemains de Cendres será o terceiro. Uma outra dimensão dupla a confluir aqui é o encontro, nada fortuito e de certa forma habitual num fazer contemporâneo da banda desenhada, da autobiografia e da ficção. Não necessariamente nessa forma híbrida da autoficção, mas onde a reportagem de guerra –construída não só das experiências directas e pessoais como da pesquisa e investigação – acaba por ser melhor transmitida se pelo filtro de personagens e da sua específica estória; neste caso, um homem, Nhek, e uma mulher, Chantrea, cujo cruzamento por acaso os unirá na fuga das paragens de guerra.
O título é perspectivo pois olha para trás. O intervalo de tempo deste livro são os últimos anos do regime Khmer antes de entrar em conflito directo com as tropas vietnamitas. O “amanhã de cinzas” trata-se assim da única visão possível das pessoas que experienciaram esses momentos. Apesar de seguirmos mais atentamente, no grosso da narrativa, o périplo de Nhek e Chantrea, Lendemains de Cendres é uma daquelas obras que facilmente se podem juntar à categoria do polifónico. Faz todo o sentido empregar esta expressão, uma vez que para além das vozes das personagens actantes na acção, cruzam-se no plano diegético citações de discursos políticos, quer dos agentes do regime quer dos seus opositores, excertos dos programas dos Khmer Vermelhos, inclusive Pol Pot, letras de canções populares e revolucionárias, notícias reais, e imagens provindo de fotografias, televisão, filmes documentais (de Rithy Panh, que já antes prefaciara L’Eau et la Terre) e ainda citações da época áurea do Império Khmer original, cujo auge rondará os séculos XII e XIII. Desta forma, o exercício da memória colectiva é empregue da forma mais variada possível para que possam emergir vários e diferentes pontos de vista que construam, não uma imagem unificada, mas prismática. Não há um afastamento da parte do autor, mas a sua moralização directa é mantida a alguma distância. Por outro lado, tornam-se claras certas continuidades, como a de um certo pendor para a violência dos Khmer, quer os antigos quer os modernos, se bem que a violência antiga pareça revestir-se de uma espiritualidade que está ausente da moderna. O que não é de estranhar, pois os carrascos de hoje poderão vir a tornar-se nos heróis de amanhã (todavia, as cinzas manter-se-ão cinzas). Vejamos um detalhe: numa das muitas citações apresentadas, há uma marcante. Dizem “os filhos dos quadros dos Khmer vermelhos”: “A independência é ser-se responsável pelos seus actos: os mortos devem enterrar-se a eles mesmos”. Seguramente que na nossa cultura nos lembraremos de imediato das palavras de Jesus (Lucas, 9:60), os mortos que enterrem os mortos. A literalidade da primeira frase, dos ideólogos, não se revê na expressão cristológica, que aponta a um distanciamento dos assuntos terrenos. O sistema dos Khmer é uma das muitas formas que mostra como as ideologias e as revoluções não podem deixar de ser utópicas pois ao atravessarem a actualidade humana acabam por se prender às paixões do indivíduo, que corromperá os princípios abstractos em aplicações abusivas. O sistema dos Khmer não era de modo algum espiritual, obviamente, e o seu propósito materialista levou a um suicídio imbecil paulatino – não só na ascensão dessa terrível e famosa expressão, “campos de morte”, apontando aos milhões de pessoas mortas, mas à destruição contínua e sustentada pela máquina do Estado da inteligência, da diversidade espiritual, da vida da flora e da fauna... como diz Nhek a determinado momento, o seu propósito é “privar do futuro”.


O título é, assim, igualmente introspectivo. O autor materializa-se mais directamente no final do livro, onde inclui trabalho de fotografia e desenho que recolheu aquando do seu retorno à sua cidade, Phnom Penh, em 1993, ou seja, quase vinte anos depois de ter fugido. A voz imaterial que atravessava os interstícios da narrativa anterior surge subitamente com um peso e presença reais, com uma voz que se assume dialogante com o passado e com o presente, através de nós, os leitores. Os Outros. Pois há um propósito, também de reportagem, aqui presente, que poderá ganhar o nome de lição, alerta ou despertar da consciência. Não se trata de uma ficção de entretenimento, mas uma ficção de descobrimento (“retirar aquilo que cobre”). Alguns momentos da acção narrativa são como que abandonados somente à sequência de imagens, o que torna um pouco difícil a sua interpretação consensual ou a clareza. A manipulação digital dos desenhos originais e do material apropriado de várias fontes constrói ainda uma outra faceta de indecisão e diáfano que aumenta o primeiro grau de estranheza. No final de contas, talvez seja mesmo esse o comportamento desejado a um relembrar dos traumas, colectivos ou individuais, que surgem em imagens repentinas sem nexo ou elos, e que apenas despoletam, de novo, de novo, esses mesmos medos antigos. Haverá diferença entre o pesadelo e a realidade, pergunta-se o protagonista? Haverá diferença entre os relatos dos poemas épicos e bélicos antigos, os pesadelos populados pelos infernos do deus Yama e aquela realidade que Nhek atravessa nos seus dias de vigília, de estradas e caminhos juncados de cadáveres? É este mergulhar que torna Lendemains de Cendres um relato associado a uma voz pessoalíssima, ainda que transmissível, já que toda a poesia é transmissível. E há aqui frases escondidas que são tão resistentes como versos soltos: “Aqui, no país dos outros, temos muito frio”.

O título é, finalmente, falso, por uma razão paradoxal. A primeira cena do livro (e que dá a imagem capa igualmente) é quando Nhek leva o prato de sopa de arroz à boca. Essa sopa é cozinhada pelo Partido, e serve como símbolo da “unificação” do país. Para encontrar a igualdade, todos comerão do mesmo, e não há acesso a outros alimentos senão esta sopa. “É totalmente insípida”, diz Nhek. Não tem sal. O sal é o que dá sabor, o “sal da terra” (para recuperar outra expressão conhecida) é aquilo que lhe dá a vida. As cinzas representam a morte, o término. Um “amanhã de cinzas” não é um amanhã, foi um hoje arrasado até à sua mais elementar existência, no limiar da aniquilação. O paradoxo está no facto de que o sal, na terra, mata a vida que nela se encerra, ao passo que as cinzas a regeneram. Um “amanhã de cinzas” assim torna-se falso pelo caminho levado a cabo por Nhek e por Chandrea, e ainda pelo o narrador e o autor (que podem ou não coincidir), revelando-se que ao mexer nelas, nas cinzas, poderá despertar novamente o fogo que levará a um amanhã sem adjectivação. Só amanhã. E é isso o que um amanhã deve ser.

15 de agosto de 2007

Aya de Yopougon. Marguerite Abouet e Clément Oubrerie (Gallimard)


Uma vez que o mercado francês de banda desenhada é imenso (são publicados dois livros de banda desenhada por dia; NOTA: ver comentário em baixo), a sua compartimentação em nichos de mercado não é surpreendente, e a instauração de “horizontes de expectativas” específicos associados a determinadas casas editoriais, colecções, etc., também não. Já antes havíamos aqui falado de dois outros títulos da colecção Bayou, da Gallimard, a saber, Klezmer de Joann Sfar (o director da colecção) e Orage et Désespoir de Lucie Durbiano. Também Aya de Yopougon procura perseguir o mesmo fantasma ou princípio organizativo: histórias claras, de um propósito narrativo simples e límpido, com uma arte descomprometida, de linhas claras, onde a simplicidade e a legibilidade terão muito maior peso que a experimentação ou os riscos de uma paginação menos comum. Narrativas as quais se dirigem sobretudo a um público que deverá rondar os onze, doze e os dezasseis anos, citadinos e com uma cultura acima da média. Afinal, quase todos estes títulos exibem personagens principais que têm a mesma idade, que invariavelmente se apoda de “idade dos porquês” ou “idade do armário”; em suma, um momento intervalar na vida de um jovem em que este se começa a aperceber que o invólucro que os protegia até então não é assim tão sólido e se mistura um terror em saber que poderão ser dele expulsos com o desejo de se livrarem dele e procurarem traçar um caminho individual. O momento em que se descobre que as afinidades com os membros da família se começam a dissipar para dar lugar a elos mais fortes com os amigos. Uma crise, enfim, pela qual muitas pessoas atravessam em graus diferenciados, mas cujas linhas gerais são idênticas. Aya de Yopougon não é excepção. Assistimos precisamente aos momentos em que Aya começa a ganhar os contornos psicológicos e individuais de uma mulher, e emancipada, o que a contrasta com as restantes amigas, mais preocupas com soluções fáceis e imediatas de resolução de vida.
Parece-me que o leitorado destes livros se presume acima da média cultural uma vez que os bastidores, as circunstâncias, os ambientes onde estas personagens relativamente tipificadas nesta categoria se movem procuram retratar um mundo maior do que aquele que se fechará na experiência mediata desse leitorado médio. Se Klezmer recupera um imaginário dos judeus russos, Aya mergulha directamente na experiência da escritora, Marguerite Abouet, dilatando-se sobre o que seria a vida das adolescentes na Costa do Marfim na passagem dos anos 70 a 80. A preocupação aqui não é tanto reconstruir as ligações de uma vida individual com as de um país, estruturando assim um retrato cultural ou um posicionamento político mais “engajado”, como sucedera com Marjane Satrapi em Persepolis, mas pura, simples e, mais uma vez, descomprometidamente, mostrar essa vida individual, através das acções de um quotidiano que é banal: sair à noite, fazer planos da vida académica, dar uma mãozinha aos amigos, namorar, procurar um equilíbrio feliz entre “portar-se bem” e “portar-se” mal, e tentar resolver os graves problemas quando a segunda opção descarrila. Enfim, ir vivendo a vida sem que ela se tenha que tornar um constrangimento ou um símbolo de algo para além da sua imanência. As comparações são necessariamente falhas, como já antes repetira, e esta aproximação a Satrapi não serve como elemento de diminuição de Aya. Os propósitos não são os mesmos. Estamos perante uma obra leve, mas que mesmo assim serve de porta de apresentação de uma cultura que, à partida, nos é alheia. Por isso não entendo a insistência nos textos de apresentação, afirmando que Abouet “conta uma África bem viva, longe dos clichés, da guerra e da fome”. Porquê ir buscar esses elementos, precisamente “clichés” para depois apontar, negativamente, estarem ausentes de Aya? Essa ausência não é em si positiva. Não é espaço para esses temas em Aya. O seu território é outro. Mais, o facto desses textos apontarem para a existência de uma África que possa ser composta de “clichés, guerra e fome”, e até o próprio facto de mencionarem, a propósito de uma colaboração entre uma escritora da Costa do Marfim e um desenhador de Paris, uma ligação a “África”, parece sublinhar a existência de um preconceito à partida.
Abouet não me parece ser uma “voz” da Costa do Marfim, muito menos de África, tal como Sfar não o é da França ou da Europa ou de um judaísmo aberto ao mundo. Abouet é uma voz individual, que reconta aqui pela fórmula da “auto-ficção” (as primeiras páginas do primeiro volume de Aya de Yopougon informa-nos que estamos perante uma longa digressão analéptica) a vida de três jovens mulheres do bairro de Yopougon (da cidade de Abidjan), cada qual formando-se como uma personagem de pleno direito, e em nada redutíveis a símbolos ou metáforas. É óbvio que não existe em qualquer tipo de discurso inocência política ou de poder, e é possível através da leitura de Aya apercebermo-nos do posicionamento moral de Abouet em relação ao papel que se espera(va) que as mulheres assumissem numa cultural tradicional, os jogos de poder sexual exercidos por todas as camadas sociais, a estratificação e limitações da mobilidade social, a importância dos pequenos prazeres num país em que a prosperidade económica foi real e visível durante um pequeno momento, mas a sua população – e estas personagens mostram em vários momentos essa razão – adivinharia que mais valia aproveitar o dia presente.
Um outro ponto ou aspecto que revela a consciência de que a estruturação deste livro é feita como plataforma de apresentação de um Outro, isto é, de que este livro se apresenta não como um discurso onde as experiências se plasmam de imediato com as dos seus leitores mas atravessará algumas camadas de estranheza e distância, está presente na inclusão de um glossário de calão costa-marfinense e uma espécie de dossier nas quais as personagens dos livros desvendam receitas, conselhos, truques e “segredos” (“entre outros”, como não deixam de sublinhar). Esse gesto de aproximação revela ao mesmo tempo a distância que é preciso transpor. Mas sempre com leveza e humor, de uma forma natural.
Os desenhos de Oubrerie estão em plena consonância com um estilo muito em voga estes dias pelo mundo francófono (mas também para além dele), e onde Sfar tem precedência, mas onde se juntam Sapin, Durbiano, Micol.... Um desenho simples, leve, em que parece ser a facilidade do primeiro traço a que é eleita como elemento constituinte do desenho final. Oubrerie emprega pequenos truques, como a distorção ou caricaturização extrema das suas personagens estilizadas ou a hiperbolização da expressão, para conseguir melhor transmitir as emoções em causa. As variações das cores são também competentes sem cair na estranheza, e tanto servem para sublinhar momentos-chave das reacções das personagens (em que apenas uma vinheta muda subitamente de paleta) como para criar o ambiente certo dentro dão naturalismo possível, salientando-se particularmente os cinzentos e azuis dos momentos nocturnos, os vermelhíssimos pores-do-sol, os iniciais ocres e sépias para introduzir toda a narrativa, que se estenderá por outros volume seguramente.