22 de novembro de 2010

O Pénis Assassino. Janus (Mmmnnnrrrg)

O Macaco Tozé foi descrito, vezes várias, como sendo “escatológico” ou “pornográfico”, mas uma leitura mais atenta e sem moralismos apriorísticos revelará algo de mais complexo. Nenhum desses géneros, ou pelo menos categorias descritivas, se aplica correctamente na obra maior de Janus (desde já dizemo-lo, entendendo que o traço de Janus recua – por força de variadíssimas circunstâncias que apenas pertencem às condições de produção, importando apenas os resultados, menos densos, escuros, sólidos do que em trabalhos anteriores). Pornográfico não é nem no sentido da mera representação do acto sexual em todos os seus gloriosos pormenores físicos e excretivos, nem sequer em termos de efeito sobre o leitor, já que os momentos de sexo estão minados nesse sentido por uma procura antes dos seus aspectos mais duros, violentos e até mesmo cruéis. Mas não desapaixonados, à sua maneira, como se verá. Escatológico também é negar-lhe a natureza observacional, a franqueza com que lida com o bas-fond, com o peso do corpo das pessoas e com o peso que o álcool, o cansaço físico, a miséria ou outras estradas exercem sobre esses corpos. Não estamos a falar de Johnny Ryan ou de Mike Diana ou de Ivan Brunetti. Estamos em crer que essa forma de votar a obra de Janus a um território de “baixeza” é uma atitude de pedantismo cultural e de cegueira para com outras realidades sociais, na verdade mais próximas da realidade nacional. Janus age mesmo como um arqueólogo da cidade do Porto, dos seus bairros populares, da sua gente agreste, com um olho particular para aquelas zonas que uma nova agenda social, política, de postal ilustrado, vem querer tapar vivências que não se coadunam ao conforto burguês da maioria de “nós” (ver adiante quem são “nós”, e não nos excluímos a nós próprios desse círculo de conforto burguês). Por outro lado, talvez essa forma de encafuar o seu trabalho nesse canto seja uma forma de protecção, de querer evitar pensar essa existência real no nosso país, na nossa cidade, mesmo ali ao lado. A banda desenhada, vivendo na sua esmagadora maioria, como veículo de fantasias, procura naturalmente uma desumanização “por cima”, fazendo trazer à sua tona aquilo que se desejaria ser constante e acessível. A desumanização – a “macaquização” - de Janus faz-se por outras vias, mas precisamente para encontrar a mais elementar natureza humana. O que ele compõe é mais perturbador do que matéria de afago.
O Pénis Assassino, porém, é de outra massa. Para já, por se tratar da maior história contínua dada ao público por Janus. Logo à partida, por se tratar de algo próximo da novela, apresenta-se com uma concentração e desenrolar narrativo mais complexo, no que diz respeito aos desdobramentos de uma personalidade, a do protagonista Francisco, e as outras personagens com que se relaciona. A personagem de O Pénis Assassino é uma espécie de Macaco invertido. Se os “macacos” poderão servir, de forma mais ou menos alegórica, alertar e sublinhar a natureza humana constante – independentemente dos avanços tecnológicos ou as obras de arte e pensamento, somos ainda as mesmas criaturas que se abrigavam em peles de animais, se revezavam em violência, e temiam o escuro –, o facto das máscaras desaparecerem neste livro não deixam de lançar uma qualquer sombra pela sua ausência. No entanto, onde Tozé era uma criatura amargurada, provavelmente por ter vivido muito ao rés-do-chão da vida, este Francisco está mais próximo de um de nós (“nós” tornando-se o modelo hegemónico do leitor, se não homem branco, pelo menos da classe burguesa, minimamente confortável e com expectativas de uma existência segura social e economicamente).
A eleição do membro viril como ponto de partida de complicações não é propriamente original. Poderíamos citar O tagarela de Paolo Baciliero (por via do Brasil, “Grandes Aventuras Animal # 3”), a improvável mas existente série de histórias aos quadradinhos portuguesa Pedrinho (na década de 1970/80 de autor anónimo), de fortes contornos humorístico-corrosivos mas que seriam assaltados como mera pornografia infantil hoje, provavelmente com direito a prisão, ou então variações, desde o preservativo assassino de Ralf König ao esperma negro-mágiko da personagem Klimakks, de The Filth, de Morrison e Erskine. No entanto, se todas essas histórias pretendiam essa referência como forma de catapultar para um determinado tipo de humor (“depravado”, “doentio”, ou outros adjectivos), Janus parece querer transformar o temível bruxedo sobre o pénis da sua personagem como símbolo de um vício desesperante. Podemos ler o livro de uma forma superficial, directa, a história fantástica que se nos apresenta. Mas podermos tentar perscrutá-la como se representasse algo mais.
Uma das pistas de interpretação que nos parece óbvia a informar esta obra é a da herança da culpa católica. Numa conversa informal com o autor, sabemos que a educação católica teve um papel na sua vida e é ele próprio quem admite esta possibilidade de transformação da ideia de culpa como ponto nevrálgico de O Pénis Assassino. Mais, é o autor que nos diz que “A Culpa” foi, num momento, um título hipotético. Assim sendo, é como se fosse um fantasma da ética católica que se instalasse na personagem principal e que, a cada momento do seu orgasmo, essa culpa se substancializasse de imediato. Penso que todos os homens se reconhecerão na frase de Flaubert, “uma onça de esperma perdida cansa mais que três litros de sangue”. Ou a ideia de Bataille, por via popular, da “pequena morte” (L'Erotisme): “o orgasmo [é] quebra, um ficar fora de si, abandono da identidade. O orgasmo também provoca um colapso do eu. No esgotamento, o corpo deixa-se cair no fluxo das correntes que o atravessam, ele regressa ao modo vegetativo” (com Bataille, seria interessante encontrar onde se encontra a dissolução do eu de Francisco). O orgasmo traz sempre ao homem uma fraqueza (no caso da mulher, na esmagadora maioria dos casos, é antes uma electricização adicional), e, dependendo da situação, sentimentos de incompletude, culpa, insegurança, retorno a um qualquer perigo. Parte dessa situação é fisiológica, alterando a actividade cerebral, eliminando a ansiedade no seu momento mas trazendo uma enxurrada nova de mais ansiedade depois; a própria composição do esperma contém substâncias como a putrescina e a cadaverina que aponta para aspectos mais negativos da sexualidade (em termos simbólicos, pois nada têm de negativo, são naturais). Mas parte é também cultural, e um elemento substancial desta nossa cultura é a herança do Cristianismo e os seus vários teores de culpabilidade, as mais das vezes relacionadas com aspectos sexuais.
Independentemente da origem do seu problema estar possivelmente no “mau olhado” da bruxa, uma doença demoníaca instalada no seu membro viril, é possível invertermos a situação da origem e encontrar no próprio protagonista a responsabilidade máxima. Francisco sente-se culpado na expressão física da sexualidade, do seu amor pela noiva (e depois pelas outras vítimas, mais ou menos indesejadas, mais ou menos responsáveis pela sedução, tornando Francisco sempre um instrumento ele-mesmo do seu membro, por sua vez utilizado de modo utilitário pelas mulheres: haverá aqui um qualquer grau de misoginia mágica?, de transferência da culpa?; a maioria dos capítulos refere-se sempre a uma figura feminina). Então o seu orgasmo é transformado numa explosão mortífera. Nesta ideia, estamos possivelmente a reduzir os acontecimentos de O Pénis Assassino a uma espécie de metáfora. Talvez o seja, mas talvez sejamos mais honestos para com a obra se levarmos os acontecimentos como reais, pelo menos no seu universo fictício. É entre a redução ou uma leitura chã que nos dá este universo fantástico, ou um qualquer grau de escavação que permite ir ao encontro de outra leitura. O leitor oscilará onde melhor encontrar o seu próprio equilíbrio, numa obra que pretende retratar os muitos desequilíbrios que espreitam a cada momento das nossas relações, estas mais símias, aquelas mais humanas.
Nota: agradecimentos ao autor, pela conversa. Imagens retiradas do blod da chili com carne.

16 de novembro de 2010

Três curtas de animação portuguesas.

Havendo sido detectados alguns erros crassos (técnicos e de foco) nos textos interpretativos sobre estes três filmes de animação, território criativo sobre o qual nós ainda nos encontramos numa fase de introdução e lenta aprendizagem, resolvemos retirá-los para proceder às necessárias correcções, de forma a poder validá-los de uma forma o mais consolidada possível. Porque acreditamos na necessária argumentação válida para a discussão de todas e quaisquer áreas, e na humildade em dar sempre continuidade à formação inerente a cada território, não retiramos o posicionamento inicial assumido, mas a ele voltaremos com os instrumentos mais acertados.
Obrigado pela compreensão.
Pedro

7 de novembro de 2010

Popville. Anouck Boisrobert e Louis Rigaud (Bruaá)


Independentemente de se tratar de um erro científico, usualmente diz-se que a “velocidade de escape”, isto é, a velocidade que um corpo tem de atingir para escapar à força gravitacional do planeta Terra é de x (não sendo x uma incógnita, mas sim o resultado das equações respeitantes a este assunto, que não saberíamos sequer ler). Mas a velocidade de escape para que um qualquer objecto, ou personagem, ou mesmo mundo, de um livro, consiga pular para fora da força gravitacional do papel desse mesmo livro é, paradoxalmente, mínima e infinita.

Mínima
, porque vivemos num mundo em que a criatividade aliada ao objecto do livro conheceu determinações ao longo da sua história que permitiram belíssimos exercícios, soluções inesperadamente úteis e efectivas, desvios surpreendentes e até mesmo a fundação de uma longa tradição de livros-brinquedo ou livros-jogos a que demos o nome, noutra ocasião, de livros “mãocãnicos” (termo sobre o qual continuaremos a pedir perdão ao leitor pela fealdade). Existem muitos e muitos exemplos de autores e artistas que trabalharam o formato do “pop-up” de modos magníficos e integrados na narrativa (se a houver) dos livros respectivos.

Infinita
, pois ela só será real se estiver aliada dessa magia própria e deíctica a que se dá o nome de “leitura”. Os instrumentos necessários para que essa convergência se dê é múltipla, subtil, por vezes mesmo circunstancial. Quando acontece, há uma súbita iluminação da sua realização.

Popville
é um livro que tanto une a sapiência artesanal do primeiro sentido como a potencialidade de se atingir a do segundo.

Este livro, este objecto, apresenta logo à partida dificuldades cujo início de descrição não apenas as explicita como torna claro o seu propósito, como se cantassem, com Tom Zé, “Eu tô te explicando pra te confundir./Tô te confundindo pra te esclarecer”. Podemos contar 7, 8 páginas? Ou apenas 1/2? No primeiro caso, conto-as pelos gestos que se executam, no segundo pelo “fundo” que permanece e vai sendo transformado. Mas no fundo, talvez tenha apenas uma página, ou as páginas centrais do livro, que é a cidade do seu título. Tratando-se de uma simples construção e crescimento de uma cidade, este retrato pode também encontrar associações ao mundo da banda desenhada, se recordarmos aquela magnífica pequena obra de Robert Crumb, “A Short History of America”, de 1979, cujas vinhetas apresentam sempre o mesmo “canto de terra” dos Estados Unidos ao longo de 12 imagens (e mais 3 “adendas” que acrescentaria em 1988) para dar a ver uma história do seu crescimento civilizacional.

No entanto, se no caso de Robert Crumb se tratava, de facto, de um retrato, algo que correspondia a uma realidade histórica (mais os três hipotéticos futuros acrescentados), o caso de Popville apresenta-se como uma generalidade do crescimento das cidades modernas, a partir de um canto de terra ocupado por uma igrejinha no meio de um renque de árvores, e uma estradinha por onde vem um carro. O que se segue é um ritmado mas inexorável expansão e crescimento, alongando e complicando as estradas, abatendo as árvores e diminuindo as áreas verdes, erguendo novas casas, elevando gruas e prédios de apartamentos, construindo fábricas, fundando linhas de ferro e de comunicação, abrindo espaço à divisão centro/periferia, e deixando as poucas zonas verdes em torno de uma imensa chaminé industrial, por onde, imaginamos, sairão nuvens artificiais de poluição. Em termos de mecanismos de papel, os de Popville são relativamente simples (não elaborados e decorativos como os de Pienkowski ou de Sebuda, por exemplo, ou ainda o ABC3D de Marion Bataille), pois o seu propósito é o do crescimento cumulativo, e não o da organização de quadros sucessivos ou de apoio ao programa narrativo (na verdade, raramente esses mecanismos contribuem de forma significativa ou central para a diegese, havendo uma excepção em The Dwindling Party, de E. Gorey). Logo, essa mesma simplicidade de mecanismos e formas é justa perante a sua ideia. Porque há sempre uma ideia, ou mais até, uma ideologia.

Há sempre uma ideologia, por mais disfarçada que ela possa estar. O texto do posfácio, da autoria da escritora Joy Sorman, tenta criar como que uma dimensão poética ao próprio trabalho de construção de uma cidade, transformando todos os seus passos e elementos, desde as pesadas máquinas aos ruídos, em algo de irresistivelmente belo. Quando escreve “o vazio é preenchido”, parte do pressuposto que a paisagem natural é, em si, vazia, um vazio cujo propósito é ser preenchido pela ocupação dos homens com as suas cidades. Vistas positivamente, claro, pois “a cidade acolheu novos habitantes, prosperou, multiplicou-se e agora vivem todos juntos”. Aquilo que parece ser um mero jogo, lúdico, divertido, sem controvérsias, é no fundo como que uma apologia da construção urbana. Há uma frase no último livro de Gonçalo M. Tavares, Uma Viagem à Índia, que parece fazer um rápido retrato da civilização transmitida por Popville: “Toda a arquitectura é violência” (Canto II, 95.1). Porque é que os autores não aproveitaram para mostrar soluções criativas, fora da “normalidade” da arquitectura e do urbanismo real? Não que queiramos tornar o livro cativo de propósitos ou programas pedagógicos redutores, mas imaginaríamos pelo menos abrindo-se a um desvio conceptual que não procurasse ser subserviente à tristeza real da construção “selvática” em detrimento de outras soluções.

É possível que estejamos a querer carregar demasiado nesse aspecto. O objectivo deste livro é estimular uma capacidade de visualidade, imaginação e reconhecimento, como quando uma criança constrói uma estrada com molas de roupa, uma estação de serviço com esfregões da loiça ou um molho de papéis para fazer um lago. E se os leitores quiserem, podem ler o livro ao contrário, desbastando a cidade até ao regresso nostálgico de uma vida campesina que jamais existiu. Ou abri-lo em qualquer página e simplesmente maravilharem-se com a súbita emergência das formas, as torres de linhas que se levantam, as estações que se desdobram, as manchas que aumentam ou diminuem, as gruas que se alternam... A riqueza deste livros é que permitem ao leitor construir a sua própria leitura e percurso e, assim, interpretação.
Nota: agradecimentos à editora, pelo envio do livro. Uma vez que existia já um vídeo (da Macmillan Childrens no youtube) com qualidade deste livro, utilizámo-lo para ilustrar este texto.

2 de novembro de 2010

O amor infinito que te tenho. Paulo Monteiro (Polvo)

Este pequeno volume reúne quase na totalidade os trabalhos de Paulo Monteiro, cujo trilho na banda desenhada se tem tecido por estes curtos relatos, espalhados em vários projectos editoriais, inclusive aqueles que nascem do colectivo Toupeira, afecto ao Festival Internacional de Banda Desenhada de Beja, de que é ele o director (no entanto, ficou de fora “Rádio Medo”, uma das nossas peças favoritas deste autor). Todavia, a sua pouca produção é contrabalançada, e sobremaneira, pela força da convicção e presença desses trabalhos.
Paulo Monteiro, em termos estilísticos, gráficos, inscreve-se numa família onde encontraremos nomes tão díspares quanto David B., Craig Thompson, um Mattoti a preto-e-branco, e tantos outros (parte dos convites e presenças destes autores no FIBDB terão a ver com um auscultar das afinidades do autor/director?), que dominam a figuração por um traço que tanto tem a ver com a linha como com a pincelada, uma gestualidade a meio dessas duas. No entanto, Monteiro não é tão dado às manchas negras, orgânicas, do autor francês, e a sua plasticidade é mais moldada que a do americano (aliás, nalguns trabalhos faz lembrar uma certa hieraticidade, à la Léger). As afinidades são mais próximas com o autor italiano, digamos O homem à janela lançando uma sombra sobre “Irei ver a amada”. O grau de diferença do autor português está, de facto, na sua capacidade de escrita (mas uma escrita pela ou com a imagem), na sua entrega ao cultivo de pequenos poemas sob a forma de banda desenhada, uma poesia narrativa, histórias curtas embrulhadas num invólucro de ternura, de palavras amorosas, de gestos simples de aproximação. Para quem experiencia essas emoções, sabe que elas são capazes de criar vínculos fortes com o seu leitor. Precisamente como quem lê um poema.
Parte dessa magia é garantida pelo quase constante uso de uma voz narradora “fora” da história, através de legendas acima das imagens, e até mesmo pela utilização directa de um vocativo ao narratário, seja ele específica (“adeus avô”, “eu fico por cá, mãe...”, “ó amada”, “amada minha”), como se o autor construísse pequenas missivas. Algumas delas têm um destinatário muito concreto – o pai, o avô – outras mais difuso – a amada (e a ela retornaremos) ou o leitor em geral, que nunca o é, somos sempre, particularmente, nós. Elas, as histórias, podem ser de uma fantasia que transfigura as relações (“Este infinito amor que te tenho”) como uma metáfora contra a guerra (“A canção do soldado”, em que tanto encontramos Tardi como o Fernando Pessoa de O menino de sua mãe), como ainda podem ser um espelho levantado contra o próprio rosto, ora metamorfoseado por um qualquer grau de absurdo e onírico (“Fico com as minhas baratas” e “Este sou eu”) ora sob a forma de aparentemente linear verter da realidade quotidiana para uma história (“A tua guerra acabou” e “Para lá dos montes”, uma das melhores peças desta antologia, de um equilíbrio riquíssimo e belíssimo, próxima das de um poema de Kavafis ou de Biedma). Mas são sempre retratos de um autor, deste autor, deste homem.
Todos os autores, sabemos, criam as suas obras numa mistura de emoção, por vezes à flor da pele, e de sapiência criativa, de controlo estratégico. Sabemos também que nem sempre autores maiores são emotivos, e bem pelo contrário são relojoeiros perfeitos (Alan Moore como exemplo acabado), e que deixar fluir as emoções de modo desabrido, permitindo uma total e absoluta expressão pode conduzir somente ao grito: catártico, sim, mas grito que não atinge o outro como a palavra articulada. Recordemos um verso já antes citado, de Adolfo Béquer: “si sientes, no escribas”.
Todavia, há como que uma impressão na leitura destas histórias de que a obra de Monteiro se pauta por uma genuína entrega, um encontro entre actos confessionais e um espalhar de uma abertura perante o seu leitor. Há menos uma preocupação em “contar histórias” - se bem que possa ocorrer esse efeito secundário – do que em tricotar essa expressão emotiva; há menos uma procura por moldar uma beleza e talento e virtuosismo visual do que uma busca pelo garante de dar a ver essa verdadeira transmissão de uma respiração que terá a ver com o amor.
Cada peça, portanto, é uma metonímia de todo um mesmo gesto. E que gesto será esse? Bom, é aqui que espreita um perigo de interpretação que não conseguimos evitar.
É muito provável que incorramos agora num tremendo erro de perspectiva crítica, por arrancar a vivência real, empírica, da experiência do autor para depois iluminar a sua obra [e o facto de haver excertos do diário do autor neste volume não nos exime do pecado crítico que se segue]. Sempre acreditámos – e não o deixaremos de fazer mesmo que saibamos estar a incorrer nesse perigo com estas palavras – que misturar a vida pessoal com a respiração da obra abre as portas à pior classe de comentário, e a um biografismo perigosamente inane e estéril. Repetimos (outra vez) uma citação de Hermann Broch que já havíamos utilizado: “Na familiaridade, está latente o germe da insinceridade e da mentira”. Portanto, com a indiscrição que se segue, caveat emptor: Paulo Monteiro é namorado de Susa Monteiro. Se lermos as obras dos dois autores de forma cruzada, e se os conhecermos fisicamente, descobriremos que as histórias de ambos, quando mergulham nas densas tramas do amor, seja ele fantasiado por que paisagem for (e no livro de Paulo Monteiro encontramos o mundo dos marinheiros, uma malha urbana, um passeio de domingo e até a sombra de um enforcado: apenas duas histórias são directamente uma referência à amada, e ambas têm instrumentos gráficos ligeiramente diferentes, representações distintas, mas é como o eco se mantivesse em todas as histórias), e mostram um amante, este acaba por ganhar alguns dos contornos dos rostos ou da presença um do outro. Assim, é como se a cada leitura de cada uma das histórias destes dois autores estivéssemos na presença de algo que tivesse sido escrito a quatro mãos, recordando-nos experiências como Nós, Outros de Casimiro de Brito e Teresa Salema, por exemplo. Uma declaração de amor mútuo através da banda desenhada. Uma correspondência amorosa de trabalhos. Existem outros casais de autores, ou casais de autores de banda desenhada, mas são raros senão inéditos aqueles que se casam (o verbo “acasalar” seria terrível) pela banda desenhada. Um espelho é uma superfície finita, dois espelhos são duas superfícies finitas, mas um espelho virado para um outtro cria um eterno e infinito corredor. Belo, não?
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta do livro, e ao autor, pelos gestos. As imagens do interior forem disponibilizadas pelo autor.

Gambuzine # 2. AAVV (ed. Gambuzine)

Se em termos materiais, esta edição do novo Gambuzine é mais feliz, há duas outras dimensões mais limitadas: por um lado, e por menos importante que isso seja para a editora e os autores, há as tropelias da linguagem (gralhas, traduções apressadas, desgramáticas, etc.), que se não impedem a fruição do caroço, tornam a sua mastigação mais complicada; por outro, o leque de diversidade de trabalhos é mais circunscrito, havendo uma natureza mais condensada entre eles.
O desencantamento contemporâneo – delimitado ao “nosso” espaço: uma Europa social-democrata, liberal, contemporânea, supostamente multicultural – é sabido, e ele não voga apenas por entre os “jovens” como por toda a população (para quando a revolução e as manifestações dos reformados e das empregadas de fábricas insolventes?), mesmo que muitas dessas pessoas não saibam sequer como procurar modos de expressão desse mesmo sentimento, e menos ainda em como o transformar numa via de acção transformativa.
Se os anos do pós-guerra, e sobretudo após o Maio de 68, significaram alterações profundas no tecido cultural e social da esmagadora maioria dos países da Europa ocidental (Portugal ainda teria de esperar algum tempo e foi fazendo essas aberturas “às mijinhas”), e depois os anos 80 foram a chave de ouro da ilusória felicidade capitalista, estamos neste momento a assistir e a sofrer uma outra viragem política, cujo escopo e profundidade ainda não podem ser aventados. Há a sensação de que há uma falência de facto de vários projectos – o projecto liberal, o projecto democrático moderno, o projecto multiculturalista (vide A. Merkel) e até mesmo as promessas tecnológicas e energéticas de décadas anteriores – mas não parecem despontar alternativas credíveis, sustentáveis, plenamente moldadas, e despojadas de maniqueísmos fáceis e demagogia, seja de que quadrante for (vide classe política portuguesa). Se viragem houver, não obstante os “pequenos vietnames” por aí espalhados (Nápoles e Atenas, Berlim e Paris), será marcada sobretudo pela resignação e o silêncio... Já ninguém pergunta “que fazer?”, mas “fazer o quê?”.
Os autores reunidos em Gambuzine pertencem a uma tribo mais ou menos reconhecível, mesmo que nenhum nome lhes faça justiça (punk, okupa, anarca, são epítetos, na nossa opinião, falhos de razão e de aplicabilidade restrita e enganadora, mesmo que possam ser tentados numa primeira abordagem). São ainda autores com um carácter obsessivo em relação às mudanças possíveis, são panfletários e contestatários, e talvez mesmo românticos.
Esta edição tem como que um dossier dedicado ao autor alemão Wittek (a associação da editora/autora, Teresa Câmara Pestana, aos círculos underground alemães, são conhecidos), apresentando-se quatro histórias do mesmo, algumas de tom autobiográfico, outra fantasiosa, mas todas elas apontando para um entendimento muito específico dos sacrifícios que cada um de nós pode/deve/tem de fazer para levar avante uma qualquer ideia de felicidade e/ou liberdade, bastas vezes jamais a atingindo. Seguem-se vinte histórias curtas de 19 a 20 autores, sendo apenas nove (ou assim os identificamos) portugueses. Esta não é uma informação que permita qualquer tipo de leitura à partida da revista, zine que é feito na liberdade dos trabalhos que acumula e apresenta aos leitores, e não se podem também fazer separações superficiais entre um “tom português” e outro “estrangeiro” ou algo que o valha. O denominador comum, como dissemos, é aquela atenção e grau de intervenção social que os instrumentos da banda desenhada, pautados pela comentário, ou melhor, a sátira social e política, conseguem.
Seja através da clássica estrutura da tira ou banda desenhada cómica (Raul und Rautie, Titus Ackermman), da fábula animal (Stefan e Clayton, Lukas Weidinger), do breve poema onírico (Catarina Henriques e Fruzzie), do humorado retrato das classes políticas portuguesas (António Vitorino e Plu!), ou o tom aparentemente “alternativo” (Schmico, cujo estilo é muito aparentado ao de Câmara Pestana, tal como o de Fruzzie), todas elas agregam-se para construir uma ideia centralizada dessa voz una que devolve a imagem da sociedade, concentrando-se nos seus inoportunos, injustos e injustificados desarranjos. Mesmo as peças mais “oníricas”, “poéticas” ou outro adjectivo que seja mais ajustado, como as de Sónia Oliveira, de Pedro Rocha Nogueira (cuja experimentação figural já é habitual aos seguidores da sua obra, vinda sobretudo das publicações de Beja), parecem querer apontar, ainda que alguma vagueza, flutuação geral, impressão leve, para as possibilidades da expressão total da liberdade dos homens. De certa forma, é como se fossem herdeiros das alegorias políticas dos autores de animação de leste (Norstein, Trnka, Svankmajer, Barta, etc.), expondo as suas vontades e posicionamentos através destes instrumentos mais modestos.
Uma dimensão mais vincada politicamente é a do episódio histórico (e caricato, irónico) da fuga de um guarda de fronteira da Alemanha Oriental para a Ocidental em “Uma história verdadeira”, de Alex Blotevogel, companheiro de T. C. Pestana na aventura do Gambuzine. Apesar dos seus instrumentos de composição de página poderem ter encontrado formas mais acabadas, o objectivo é composto de modo directo e, surpreendentemente, sem grande drama. Outras menções directas a essas realidades são a rábula curta de Anna Bas Backer, sobre as “desaparecidas” e a tortura do regime argentino nos anos 70, e as curtas irónicas de Andreas Alt sobre os sem-abrigo (que nos parecem ser baseadas em duas coisas: uma forma invertida da famosa personagem da Harvey, Richie Rich, e notícias reais sobre os sem-abrigo). A própria Teresa Câmara Pestana apresenta quatro histórias, sendo uma delas escrita por Vasco Câmara Pestana, que atravessam vários humores e naturezas, mas que tocam todos os temas centrais à publicação, enquanto programa; cada história, respectivamente, é sobre: o respeito e integração na natureza, a distribuição dos papéis sociais no mundo contemporâneo (a autora chama a “História de um pai e filho nascidos no mesmo ano de 1965” [ver imagem acima] uma “noveleta da treta”, mas é uma das suas peças mais narrativamente acabadas e fortes), o comentário directo político, e uma abordagem poética-alegórica como aquela citada atrás.
Uma palavra especial guarda-se para a história de Álvaro sobre a educação sexual. O conhecido humor deste autor apura-se substancialmente quando ele o emprega sobre aspectos reais da nossa sociedade, isto é, quando tem alvos mais concretos e verdadeiros. Para mais, a forma como constrói, quase instantaneamente, personagens e seus cenários próprios, o ritmo tão exacto das suas trocas e interacção, faz desta uma pequena pérola do retrato de um país como o nosso.
Tudo isto reúne-se portanto num objecto que respeita o fantasma da origem do seu nome: um animal elusivo, que todos sabem como caçar e avistar, mas sem nunca concretizar com exactidão essa captura, por esfumar-se numa ilusão mais rápida que a realidade.
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta e envio da publicação.

Scott Pilgrim, vols. 1, Na boa vida e 2, Contra o mundo. Brian Lee O'Malley (Booksmile)

Num momento em que a banda desenhada é pasto para adaptação cinematográfica e televisiva, e tendo em conta que os maiores sucessos junto ao “grande público” e à “imprensa mainstream” ocuparão maior atenção – pensamos nos filmes em torno das personagens da Marvel e da DC, do Red, das séries The Human Target e Walking Dead, etc. - é sempre um ponto positivo ver transformações que bebem de fontes relativamente diversas, como o recente (mas cinematograficamente negligenciável) Tamara Drewe e este deliciosamente leve Scott Pilgrim.
Scott Pilgrim (6 vols., pela Oni Press, entre 2004 a 2010) foi apresentado em alguns círculos, logo ao seu início, como “mangá norte-americana”, e a verdade é que muitas das estratégias visuais, narrativas e emocionais da banda desenhada moderna japonesa são empregues de modo claro nesse título canadiano (antes que apontem um qualquer erro de argumentação, recordem-se que o Canadá é um país norte-americano, daí o epíteto anterior) No entanto, tudo isto é complicado pela ascendência coreana do autor, o que o coloca num paiol cultural de cruzamentos e influências que já não encontra obstáculos ou diferenciações de leitura em lado algum Como sair desse imbróglio de cruzamentos, linguagens e possibilidades? Como Scott: para a frente.
A parte visual e narrativa que o livro deve à “mangá” são as dimensões de mais fácil e imediata apreensão: um formato próximo daquele dos tankobon mais finos (seguido pela edição portuguesa); uma liberdade de composição de página que leva a um equilíbrio ora por momentos de alto dinamismo, típicos de acção ou imitando clichés de jogos de computador ou de animé, ora por estruturações mais calmas, permitindo momentos de diálogos calmos e pausados; uma figuração reduzida e estilizada mas que não deixa de conter todos os elementos necessários à transmissão das emoções necessárias (quase próximo da simplicidade/eficácia dos emoticons, para dizer a verdade); a capacidade para moldar um mundo fantasioso, ou melhor, efeitos fantasiosos, plena e naturalmente integrados num ambiente realista. Aliás, esses momentos parecem ser violenta e inesperadamente desligados do ambiente que havia sido estabelecido no início e a que se retorna depois na história restante, mas é essa mesma discrepância que dá algum charme a toda a diegese. Não estamos longe de escolhas aparentadas com títulos da mangá, propriamente dita, infanto-juvenil, de que as séries One Piece ou Naruto (pelas cenas de luta, sobretudo) são expoentes contemporâneos, mas a temática e o objectivo central de Scott Pilgrim é ligeiramente mais maduro. Uma maturidade cheia de humor escapista, ou um escapismo com laivos maduros. Ambas as leituras são, julgamos, possíveis.
O estilo de O'Malley é estilizado em extremo, através de uma busca por traços simples que recordam uma abordagem de suaves bandas desenhadas infantis. O facto de ter publicado pela Oni Press não é de somenos, pois é aí que encontraremos outros autores, norte-americanos, canadianos, etc., que se lhe aparentam na abordagem cool/estilizado/simples, de Brian Ralph a Scott Morse, entre tantos outros; mas O'Malley é aquele que mais se aproxima desse idioma mangá mundial. Mais, Scott Pilgrim é mais suave nesse sentido do que o seu livro anterior, Lost at Sea, o qual, mais realista e maduro no tema, não era pautado por este dinamismo bem-humorado.
Esta aposta da editora Booksmile, com experiência no mercado para crianças e adolescentes (tweens, na nova gíria), parece-nos ser bem-vinda, saudável e inteligente. A edição é muito cuidada (salvo uma ou outra página com um corte infeliz, mais radical do que na edição original), a tradução é excelente, fluida e integrada (não só mantendo o factor “cool” da linguagem adolescente para português corrente, o que é difícil, como encontrando trocadilhos com a nossa cultura, portuguesa, que funcionam bem. Exemplos: “Poo on you” = “Cocó para ti”, “Scott Pilgrim has two girls on the go” = “Scott Pilgrim tem dois amores”), e, o que é um aspecto importante, o preço é bastante convidativo. Esperemos que a sua distribuição seja cuidada e chegue ao público que merece, o qual, diríamos nós, flutua entre os adolescentes e os jovens adultos (o que não impede pessoas fora dessa classe de os ler, como nós mesmos). Além disso, o facto de ser um título relativamente recente e que terá a sua versão cinematográfica a estrear em breve, torna-o um produto de pensamento comercial bem pensado, ao contrário das apostas recentes da Asa, em dois títulos cujo “prazo de validade” é discutível.
Permitam-nos a continuação da discussão do livro (que na versão portuguesa apenas tem dois volumes para já, mas imaginamos que os completarão até a estreia nacional do filme, em Dezembro) através da sua versão cinematográfica, já vista por nós.
Scott Pilgrim vs. The World (Edgar Wright)
O filme em si é uma adaptação excelente. Não segue à risca o que estava previsto no livro, pois seria impossível respeitar todos os desvios que O'Malley cria em torno de Pilgrim, e o filme necessitava de uma maior concentração diegética (cujo grau de alteração tem sempre de ser aceite, mas depois verificado em relação à sua pertinência: o caso de Tamara Drewe é exactamente o contrário, demolindo-se o que havia sido conquistado pelo livro de Posy Simmonds). Por outro lado, as opções da versão cinematográfica em redistribuir papéis ou alianças parece-nos ter sido não apenas uma imposição dessa mesma linguagem como ainda um melhoramento em relação à trama emocional e construção psicológica das personagens. Por exemplo, algumas das opções de Scott são dadas ao companheiro Stephen, o que torna mais distribuída a relação entre os papéis das personagens e o facto de ser Michael Cera o actor torna a cagunfa de Scott mais tolerável, na opinião de muitos espectadores.
Além do mais, como é cada vez mais conforme neste mundo de franchising e merchandising, ou de media incorporados, a estreia do filme está implicada ainda numa rede de vídeo-jogos, animações, e outras parafernálias.
Há desde logo uma dimensão visual e de movimento que o cinema traz ao livro, um conjunto de instrumentos que lhe são próprios e moldam a história de modo diferente. A potencialidade que o CGI veio trazer ao cinema tem dado azo à exploração quase superficial dos efeitos que essas técnicas permitem, mas colocaram-se de lado totalmente as outras dimensões importantes no cinema, como, se quiserem, a escrita. Na falta de escritores verdadeiramente originais (salvas algumas excepções, como a óbvia e obrigatória referência a fazer a Charlie Kaufman ou Diablo Cody), esse sistema de produção de entretenimento vira-se para remakes (Dinner for Schmucks é um repescar de Le dîner de cons, de 1998, cujo protagonista “idiota” é um tal Monsieur Pignon, que influenciaria um autor português na criação da sua personagem principal...), fórmulas repetidas (“comédia romântica”, “crise adolescente”, “last stand”, etc.) ou então baseados em... jogos de computador, parques de diversões e até jogos de tabuleiro! (esperamos num espaço de 10 anos O Jogo do Galo. O Filme?). Um outro filão, obviamente, é o da banda desenhada, sobretudo a de super-heróis ou géneros contíguos. Aliás, “Hollywood has run out of ideas” é uma frase recorrente em alguma crítica norte-americana, mas essa crítica também poderia afectar outros pólos de produção cinematográfica. Apenas a título de exemplo, e para não citarmos blockbusters que criam fãs-acólitos automáticos, veja-se a curta-metragem de animação Sintel, cuja existência se deve basicamente para a promoção do programa de modelagem 3D, o Blender, e cujos restantes elementos o tornam num dos mais patéticos e terríveis exercícios criativos (e empregar esta palavra é uma benesse) dos últimos tempos. O CGI não é muito diferente do que antes de chamava “efeitos especiais”: se são eles quem se torna a espinha dorsal de um projecto, pode conseguir mesmo uma espinha concreta e sólida, mas despida de tudo o resto. A esmagadora desses efeitos, de resto, serve para a ontologia realista desses filmes, isto é, aquilo para que é empregue serve para sublinhar a “realidade” desse mesmo universo fictício: aqueles dragões existem mesmo, estes ogres são reais, estes miúdos montam mesmo vassouras voadoras e estes sabres de luz funcionam mesmo... raramente se procuram efeitos visuais que sirvam para a própria experiência visual, livre, do filme (talvez The Yellow Submarine seja um grande exemplo disso).
No caso de Scott Pilgrim, e em relação a esta crise dupla – crise da escrita, suporte pelo CGI – temos duas procuras positivas, porém: por um lado, a escrita, não sendo propriamente “the great Canadian novel”, ou sequer uma obra-prima para o século XXI, traz à baila uma rábula fantasiosa em torno das relações amorosas dos adolescentes contemporâneos bastante justa ao tempo, por outro, os efeitos, ainda que pertençam à ontologia realista da sua história, são tão deslocados e artificiais em relação à acção (em alguns momentos, recordar-nos-ão a cena dos “preços flutuantes” de Fight Club), que os tornam apetecíveis, cómicos, significativos e, mais importante, revitalizadores.
A utilização de toda a matéria do livro, já de si um pot-pourri típico da contemporaneidade do zapping e do “short attention span” dos saltos culturais torna Scott Pilgrim Vs. The World o que de mais perto poderá existir de encontro entre uma linha coesa narrativa e a estrutura youtube. Está tudo misturado, desde a cultura slacker (quase fora de moda) às bandas-animadas Gorillaz e Dethklok, as personagens-padrão trabalhadas (mais desenvolvidas no filme em termos de concept design, o que não poderia deixar de ser), as batalhas de músicos (recordando tanto as DJ battles ou os combates de instrumentos em concertos ou programas de televisão, como séries de animação), aos inevitáveis jogos de computador 8-bit (também isso pasto para novos sabores de índole punk), passando pela magnífica mistura de DDR e jogo de arcadas, imbuído naturalmente na cultura hipster japonesa (ninjas e o barolo). Nonsense? Não será antes um mega-diverso-sense? Talvez até seja ambos, mas qual é o problema? É um retrato mais fiel da vida do que as supostas lições de moral e de integridade que se transmitem com os melodramas Iron Man ou mesmo O Senhor dos Anéis. É um filme leve, não pensamos sequer que tenha pretensões de ser mais do que é.
Scott Pilgrim anda “na boa vida” e a vida dele é boa.