27 de junho de 2012
Portugal. Pedrosa (Dupuis)
Uma das características – não obrigatórias, atenção, mas muito recorrentes ao ponto de parecerem estruturais – da autobiografia (e a autoficção seria aqui englobada, caso que parece ser o deste livro) é a relativa concentração dos instrumentos diegéticos no protagonista, não apenas da perspectiva sobre os acontecimentos retratados no intervalo temporal a que a diegese dirá respeito, mas também das emoções, das sensações, dos juízos de valor sobre os factores todos, etc. Por outras palavras, partindo a história de uma voz/olhar, ela obedecerá ou respeitará os limites dessa mesma voz/olhar. Portugal é diferente nesse aspecto. Algumas vezes seguimos outras personagens nos seus diálogos, a que Simon não teria acesso, nem sequer depois do facto, ou seguimos uma gestão mais próxima da omnisciência narrativa do que a limitação expectável. Não é que essa opção esteja “errada” ou desvirtue um determinado género – afinal, a criatividade, literária ou outra, faz-se precisamente pelos desvios imaginativos que se operam sobre as expectativas dos leitores -, e Pedrosa pode perfeitamente explorar as vozes dos “outros” para criar um espaço de inscrição à voz do seu próprio avatar. O que acontece, porém, é que essas opções – é o que se verifica na visita ao campo para o casamento da prima Agnès – fazem antes o livro aproximar-se de outros géneros mais convencionais, com um grupo maior de personagens, as vontades e acções destes coordenadas num tecido maior e coerente, quando a vida de uma só pessoa nunca é coerente. Ou seja, há uma claríssima imposição de ordem e fechamento narrativo que não se coaduna com o tipo de crises usualmente exploradas pelas autobiografias, mormente aquelas que têm pautado a competência e riqueza particulares no campo da banda desenhada.
É nesse sentido que Portugal tem uma fortuna particular junto a um público mais vasto, não somente pelas suas condições de distribuição económica, claro, mas também pela sua própria estratégia narrativa, já que providencia uma espécie de claro arco conclusivo e apaziguador da vida do protagonista, em claro contraste com outros exemplos, quiçá mais angustiantes – por exemplo Marco Mendes, Alison Bechdel, Debbie Drechsler - mas por isso mesmo mais próximos da condição humana e menos do acto (convencional) literário. Pensamos, então, que a inscrição deste livro de Cyril Pedrosa estará mais perto de outro género: o do melodrama.
O melodrama, sobretudo associado ao meio cinematográfico, foi estudado por Thomas Elsaesser (“Tales of Sound and Fury”, de 1972, é o estudo decisivo) . Tentemos uma sua descrição (utilizando a súmula de S. Bukatman em The Poetics of Slumberland, pgs. 169 e ss.). No mundo do melodrama, encontraremos personagens que habitam um mundo precário, sobre o qual não têm qualquer controlo, ou o qual se apresenta com uma grande resistência aos seus esforços de compreensão e mudança. Essas personagens mostram essa falta de controlo, por exemplo, através de uma inarticulação ou insuficiência da linguagem. No que diz respeito à, digamos, superfície da representação, esse mundo é objectificado através de um excesso estético e de performance: tudo é estilizado, exagerado, as emoções estão à flor da pele. Uma vez que a linguagem não se consegue articular, uma vez que esse veículo claro da razão (sem entrarmos agora no domínio estruturalista ou pós-estruturalista de que a linguagem pode ser tudo menos clara a racional), há duas ou três hipóteses: ou a linguagem se reduz ao balbucio, ao discurso interrompido, ou explode numa torrente incontrolável mas que não é de forma alguma uma transmissão clara. Ou então é através de um excesso de performatividade, quer dos corpos dos actores/personagens quer através das técnicas formais da linguagem em causa (se no cinema falaríamos de cenografia, trabalho de câmara, fotografia, uso de música, etc., na banda desenhada falar-se-á de composição, expressividade dos personagens, a dimensão cromática, etc.). Ao mesmo tempo, ainda sob a influência de Elsaesser, no que diz respeito às representações de sexos, a ideia de uma masculinidade assertiva, confiante, controladora é posta em causa nesse género, e essa ansiedade sexual é demonstrada de uma forma específica ao (mega)género. Bukatman diz que no noir essa ansiedade tem lugar nas figuras da femme fatale, uma “ameaça” exteriorizada, ao passo que no melodrama ela é “interiorizada, criando protagonistas muito mais atormentados e contraditórios” (Poetics, 169). É verdade que o melodrama acabou por ganhar uma presença tão alargada (Hollywood, telenovelas, etc.) que hoje poderá surgir como um cliché, um estilo esvaziado, formulaico e sem qualquer hipótese de ter um verdadeiro impacto, surgindo como um género antirealista, cuja superfície visual, de estilo, de composição é intensificada e mima os estados emocionais e subjectivos dos protagonistas. No entanto, e ainda para seguirmos as citações de Bukatman, desta feita em torno das cartas de Van Gogh (que informam o filme por ele analisado), podem verificar-se de facto essas “inexactidões” mas que se verificarão “mais verdadeiras que a verdade literal”, auscultando as tensões emocionais, as repercussões sobre o ânimo, o espírito, etc.
Pensamos que é claro onde esta ordem de ideias levará. Portugal está mais próximo dessa economia de meios associada ao melodrama do que ao género da autobiografia, que diz respeito antes a instrumentos expressivos e estilos mais próximos dos círculos “alternativos” contemporâneos. Ou então, outro modo de o ver, Portugal é a oportunidade precisa daquilo que em inglês se chama “co-opt” desse mesmo género (a autobiografia) pelos agentes do mainstream: uma incorporação, então, a um só tempo neutralizadora dos traços mais radicais do género – questões de auto-representação do corpo, crises de organização temporal ou até mesmo de personalidade, confronto entre a genuinidade e as fronteiras éticas (veja-se Neaud para uma reflexão profunda desse aspecto no interior da obra de banda desenhada) – e naturalizadora – a exploração do “eu” torna-se uma “história bem contada”, ou algum descritivo frouxo desse tipo.
Simon encontra-se num “mundo precário”, que se reflecte ou expressa através das suas crises de trabalho – não publica há muito tempo, não consegue produzir – , amorosas – a relação com Claire encontra-se num impasse – e familiares –a relação com o pai é feita de encontros casuais e inconsequentes, em que ambos evitam conservar verdadeiramente. Esta personagem mostra uma vontade débil no que diz respeito a compreender de facto esta(s) situação(ões), e apesar de haver sinais da necessária mudança, não há qualquer passo dado. Afinal, é o convite a um festival de banda desenhada a Portugal (Sobreda) que espoletará esse movimento de aproximação de um “centro” que não apenas era deslocado como totalmente desconhecido – ou reprimido – em relação a Simon. Seguir-se-á então o inevitável movimento de aproximação e crise (obedecendo à mais ortodoxa das “estruturas de três actos”).
O livro organiza-se por capítulos claramente delineados em torno de movimentos, não apenas espaciais como temporais e até mesmo de vozes. Cada capítulo é intitulado “segundo”, associando-se depois aos nomes sucessivos de filho-protagonista, Simon, o pai Jean e o avô Abel. No entanto, não se julgue que estamos perante acessos directos às vozes internas, às memórias dessas personagens: Simon é a camada do tempo presente em que tudo ocorre, em que tudo encontra o seu nexo. Não temos acesso ao(s) passado(s) propriamente dito(s), mas antes à impressão desse passado como experienciado por Simon. Não há, portanto aqui, grandes crises de organização temporal. Poderá parecer paradoxal termos falado de acesso a mais que uma perspectiva de personagem e agora falarmos de uma subsunção de todas á voz de Simon, mas referimo-nos a duas instâncias diferentes dessa dimensão: no primeiro caso falamos na superfície actancial, narrativa, dos episódios, no segundo à focalização geral do livro, à sua respiração ética, se quiserem.
Simon não é aquela figura assertiva indicada acima, ainda que tampouco seja uma sua redução ultra-emotiva (como se verifica, por exemplo, em Jeffrey Brown ou o Craig Thompson de Blankets). Se no início o seu traço é a apatia, é de uma forma muito calma que ele se vai expressando e desabrochando enquanto personagem: as mais das vezes através de narrações externas, de “pensamento”, ou de acções silenciosas. Se consideramos os dois grandes objectos de contenda emocional de Simon – a ex-namorada e a sua relação com as raízes portuguesas – verificaremos com facilidade onde se encontram os momentos do silêncio/ balbuciar (as discussões evitadas, a fantasia do “mergulho”, o livro que não se segue, a procrastinação do trabalho, a manca aprendizagem do português, mas também a falta de diálogo com o pai, a ausência da figura materna) e os da explosão não-comunicativa (o telefonema a Claire quando está bêbado, os blocos que se enchem de desenhos nas festas e servem de modo de sedução – uma vez falhando, outra acertando -, mas também a entrega a certos prazeres físicos, desde o consumo de álcool e cigarros ao libertador passeio de bicicleta).
É raro que o círculo da impressão seja ultrapassado para dar lugar à presença dos demais de forma mais moldada. Até a opção em povoar algumas das cenas com corpos apenas delineados e transparentes faz compreender uma redução dos outros a meros complementos circunstanciais dos ambientes retratados, ganhando apenas maior substância quando a interacção com o protagonista a isso obriga. Esse impressionismo perpassa igualmente o tratamento do país “exótico” visitado pelo artista francês. O livro faz menção, como não podia deixar de ser, a toda uma geração que emigrou de Portugal em condições miserabilistas e adversas, mas sem nunca tornar isso na matéria principal da sua estrutura ou discurso. Isto é, no fundo, a dimensão política é apenas reduzida à experiência imediata de quem lhe é familiar, um outro tipo de silêncio que ainda hoje é corrente (ou só lentamente se começa a quebrar).
A representação de Portugal não deixa, com efeito, de ser algo exoticizida. As questões da língua não estar representada de forma sempre correcta é, francamente, de somenos (se bem que, para o leitor português, pelo menos, esse factor, aliado ao tratamento fugidio e semi-fictício aos locais atravessados pelo protagonista, estilhaça o “efeito de realidade” que se poderia - e desejaria? - formar). Mais preocupante parece-nos ser o retrato de um Portugal eternamente ruralista, tradicional (até o primo Alessandro – Alexandre? -, professor de filosofia, frequenta “benzedeiras”) e de uma felicidade fácil – todos falam francês, todos vivem da terra e do sol. Ou da banda desenhada. Se bem que se poderia dizer que o tratamento caricatural é algo constante ao longo do livro, são as personagens portuguesas – o primo Alessandro, sobretudo, mas também as velhinhas na Marinha da Costa – que atravessam um tratamento à Goscinny/Uderzo. Mesmo a rapariga portuguesa que Simon seduz na terceira parte, durante o São João, não tem direito a uma só palavra, o que apenas a torna ainda mais objectificada. E Simon abandona-se a interpretações - que ele chama mesmo “deveras pessoais, suficiente e vagamente esboçadas” (245), mas que não têm jamais um contraponto. O tratamento das tais matérias representacionais – históricas, materiais, económicas – sempre deixadas em esboço confirmam esse tratamento algo nebuloso, impressionista, ensimesmado.
A questão da identidade – não apenas de Simon, que se pretende “redescobrir” ou “reinventar” graças ao encontro catalisador com Portugal e as suas raízes pessoais, mas também do avô Abel que se define como ele mesmo na carta final, à margem da nacionalidade, e eventualmente toda a família que dele descende e aqui participa – é apenas uma espécie de vaga referência, sem nunca se tornar uma marca verdadeiramente estruturante do relato, nem se constituir numa espécie de ferida, vinco, mancha que tintasse toda a experiência que se vê desenvolvida ao longo das páginas. Afinal, torna-se apenas uma pequena escusa, um pretexto que não é constitutivo do texto.
Não se entenda de maneira alguma que esta leitura se pauta por qualquer tipo de defesa da cultura portuguesa em particular, o que seria irrelevante na abordagem crítica. Trata-se tão-somente de, mais do que sentir qualquer tipo de “vergonha” ou “orgulho”, colocar a questão se Portugal, este livro de banda desenhada de Cyril Pedrosa, se apresenta de facto com instrumentos estruturais, estilísticos, narrativos e ambientais que o tornem significativo enquanto obra de banda desenhada – já que em termos de mitologia local, é óbvio ter conquistado as praças costumeiras.
Temos, neste nosso espaço, repetido a seguinte citação (ou imagem) de Jorge Luís Borges. No prólogo ao seu livro de poemas Os Conjurados, escreve o seguinte: “…a beleza, tal como a felicidade, é frequente. Não se passa um dia em que não estejamos, um instante, no paraíso. Não há poeta, por medíocre que seja, que não tenha escrito o melhor verso da literatura”. Ela serve-nos como uma espécie de utensílio conceptual que nos deve obrigar sempre à busca, na leitura de um livro qualquer, de qual o seu “melhor verso”, qual o momento em que consegue proporcionar o instante de paraíso. A nosso ver isso ocorre neste livro nas páginas 154 e 155, que se encontram lado a lado, mas não compõem uma unidade visual nem narrativa, mas tampouco um contraste absoluto entre si. Quer dizer, são apenas dois momentos isolados – ou isoláveis analiticamente - entre si, com algumas linhas de união naturalmente (que decorrem da própria diegese e da psicologia insuflada no protagonista e suas circunstâncias), mas podem ser lidos individualmente como “máquinas menores” de criação de significado.
A primeira mostra “um instante de paraíso” tal como experienciado por Simon, que lhe serve para desistir de se apegar a uma forma de melancolia, isto é, de se relacionar com o passado. Até aquele momento, o (imediato) passado era uma canga para ele, pela maneira como se havia separado de Claire. Esse peso é literalmente “jogado fora” com o bonequinho que ele aperta, e que lhe servia de uma espécie de dispositivo de defesa em relação aos confrontos, evitados, com Claire. Ao mesmo tempo, esse acto servirá de eixo para finalmente se dirigir a ela de maneira adulta e conclusiva (o telefonema que se decide a fazer na página seguinte, e que é contraponto de um outro telefonema, estúpido, que lhe havia feito bêbado e insultuoso). O “paraíso” imiscui-se nesta página pela forma controlada como começamos com uma cena panorâmica que encima toda a página, afastada do protagonista, mas cuja dimensão sonora lança uma linha de associação. Segue-se-lhe a “caixa” de oito vinhetas, de composição retórica, que voga em torno de Simon e as vacas no riacho, e o trajecto do bonequinho: quando regressamos a uma visão panorâmica, já Simon a abandonou. O modo como o meganarrador cria um diálogo somente entre as onomatopeias entre o bonequinho e o mugir das vacas faz também surgir uma ideia de comunicabilidade – cujas falhas é tema de Portugal – que vai para além do verbo.
A segunda página não deixa de estabelecer uma relação com a comunicação verbal também, mas desta feita optando-se por um discurso claro, nítido, contínuo e fluido, mas que se destaca incorporeamente dos “quadros” visuais a que temos acesso. Formalmente, esta prancha é simples – uma grelha regular (3 x 4) – mas efectiva. Uma enfermeira fala com a tia de Simon a propósito da saúde da sua mãe (que vemos a assoar-se no sofá), e esse diálogo continua até que ela se vai embora da casa no carro (na 10ª vinheta), seguindo-se duas vinhetas “silenciosas”. Mas entre a primeira e a última vinheta da enfermeira, atravessamos oito cenas em que nenhuma das personagens envolvidas no diálogo surge, optando-se antes por vogarmos em torno da casa junto aos outros membros familiares, com uma clara concentração em Simon, cujas acções de dilatam ao longo da coluna central (vertebral?) da página. Existem palavras invisíveis – que dizem as outras personagens nos seus diálogos, que gritam as crianças no rio? - e existem acções invisíveis, e é no cruzamento dessas linhas visíveis e invisíveis que a decisão de Simon – telefonar a Claire, pôr um ponto final da sua história amorosa, avançar na sua vida – se torna mais significativa. Poderíamos simplesmente ler as palavras que são ditas como “comentários laterais” à própria situação de Simon (uma técnica que encontramos utilizada de forma acabada em Watchmen, por exemplo). Mas essa disrupção entre o verbo e a imagem poderá ter uma dimensão ontológica moderna, que terá a ver com a tal diluição das certezas, da absoluta confiança nos sistemas de representação (de que o discurso verbal, e até racional, faz parte). Até o facto de na quinta vinheta vermos Simon a subir para a esquerda e de costas da cena, algo que intuitivamente vai “contra” o sentido da leitura, sublinha a natureza melancólica e melodramática a que temos aludido ao longo do texto.
Cyril Pedrosa pertence a toda uma nova geração de autores franceses cuja prestação do desenho é muito manual, caligráfica, como não temos deixado de repetir a propósito de Sfar e outros autores. Nesse aspecto Pedrosa integra-se perfeitamente numa escola contemporânea do seu país, e não se destaca particularmente, apesar dos encómios que se tecem nesse sentido. A qualidade das cores, por exemplo, com filtragens luminosas, nimbos, jogos cromáticos que diferenciam a figura do fundo, alteram contrastes e subsumem tudo a um “ambiente” coeso – ora naturalista, respeitando-se a forma como uma fogueira iluminaria os corpos à noite, ora fantasioso, como os verdes dos “mergulhos oníricos” do protagonista – trabalho esse provavelmente feito através de recursos digitais, sublinha uma certa qualidade próxima da do cinema de animação, como se se tratassem de tintas sobre acetato, ou um daqueles livros utilizam os stills dos filmes para criar uma versão em papel. Até mesmo o estilo alongado dos corpos desenhados por Pedrosa, aliado às finíssimas linhas que os compõem, figuras esquálidas, expressivas e plásticas, são aproximáveis do de um Silvain Chomet. Há casos de aguarelas belas, muito visíveis, mas em menos momentos das liberdades expressivas que ela permite do que se pensa – talvez no soberbo jardim outonal em Marinha da Costa (página 241, em baixo), ou na página ilustrada da carta de Abel, na sua tradução final – e as mais das vezes são competentes, acabadas, conseguidas, mas jamais audazes (não estamos a falar da exuberância de um Sfar, de um Baudoin ou um Guibert, afinal, nem tampouco do lirismo de um Pratt ou a mestria férrea de um Emmanuel Lepage). A escolha em colocar legendas externas, do protagonista-narrador, em “cartuchos” transparente e com letras mecânicas é visualmente pobre, destoando sobremaneira com a gestualidade fina e célere que parece regular todo o trabalho do autor. Regressando às lições de Elsaesser sobre o melodrama, aos elementos que ele aponta – que acreditamos estarem patentes em relação a esta obra – é nestes aspectos que encontramos um certo “excesso de performatividade”, ou melhor, uma certa desvinculação entre o fundo e a figura, o conteúdo e a forma, a matéria e o tema: exuberante visualmente, talvez, mas seguro, senão mesmo inócuo, nas outras frentes.
Por outras palavras, esta obra é competente (o domínio das ferramentas estruturais e narrativas da banda desenhada, pelo autor, é inegável, mas mais uma vez esse é apanágio do tal “excesso”), mas não é, de todo, uma reflexão e uma crise profunda (como o será, por exemplo, o novo livro de Bechdel, Are You My Mother?). Se nos permitem um jogo transparente de conceitos, quer na sua origem quer no seu efeito, este livro proporcionará uma boa leitura-movimento mas não uma complexa leitura-pensamento.
Nota: agradecimentos a Frederico Duarte, pela oferta do livro, e a sua insistência.
Publicada por Pedro Moura à(s) 10:19 da manhã 2 comentários
Etiquetas: Autobiografia, França-Bélgica
22 de junho de 2012
Limbo. Ilan Manouach et al. (Cinquième Couche)
Este projecto apresenta-se desde logo de um modo que, pensamos nós, é inédito no modo de relação entre o texto e as imagens, lançando uma linha de associação a Les hommes-loups, de Dominique Goblet, autora com quem o artista grego tem grandes afinidades criativas. Uma das possíveis maneiras de pensar a ilustração é a relação que se estabelece entre essas duas formas expressivas que parecem viver em pólos opostos de semioticidade (de uma perspectiva ocidental, moderna, etc.) a que damos o nome de escrita e imagem. Por um lado, o sistema da escrita alfabética, que utiliza um número relativamente reduzido de signos (nos nossos alfabetos entre 23 a 26 letras para representar sons simples vocálicos e consonânticos), os quais, combinados, permitem um número praticamente sem limite de enunciações; por outro, o das marcas gráficas icónicas, cuja comunicabilidade se restringe aos temas concretos - o que a imagem representa em si, para começo da conversa -, mas incidência é infinita, pois cada marca gráfica é única e irrepetível. Se existem imagens que parecem apenas cobrir conceitos mas não “objectos do mundo” concretos, como os diagramas ou alguns símbolos, e outros abarcam categorias transversais, como os pictogramas, outros ainda englobam concretudes, com menor (fotografia) ou maior grau de abstracção (a banda desenhada, o desenho). Ou, se preferirmos uma redução simbólica, temos aqui uma oposição entre dois sistemas, um analítico, outro sintético.
À relação física, presencial, das imagens e do texto podemos dar o nome, seguindo Michel Melot, de “concorrência”. Partindo do seu sentido etimológico, trata-se da distribuição física de ambos num plano visual - a página, por hipótese, mas poderia ser uma secção de uma página, ou a dupla página, ou uma qualquer unidade no interior de um livro ou outro objecto similar. Ora, o que ocorre em Limbo é algo inusitado: o texto surge num volume, as imagens noutro (veremos como em Goblet é algo diferente). Mais, a “unidade” que estes volumes compõem não é cromática - o volume textual é amarelo, o das imagens vermelho - nem de tamanho ou formato - o textual é menor, classicamente rectangular, o das imagens maior e mais quadrado - mas são ambos livros irmanados. Não apenas no título, no nome do autor, nas informações editoriais. Também na texturização das capas dos volumes (ainda que diferentes), na gravura de uma caricatura de um judeu - reconhecível como tal - com uma pala no olho, nas sobrecapas exteriores rasgadas (reminiscente de uma experiência similar da revista Raw, no seu sétimo número, de spiegelman e Mouly), no tipo de papel, etc. Não conseguimos conceber a existência de Limbo em que os dois volumes possam estar separados, enquanto unidade de significado. Mas tudo aponta para essa possibilidade física.
Os textos parecem ser descrições clínicas de operações laboratoriais operadas sobre várias plantas, sobretudo árvores: estudos de vacinas, de hipotermia, de degeneração das células, de aplicação de venenos, produtos químicos e desfolhantes, eflúvios de toda a espécie, e outras mais radicais: “As operações de modificação geológica consistem em agregar e queimar o número maior possível de árvores e arbustos, utilizando para esse fim todos os recursos tecnológicos disponíveis”. Listas de efeitos, observações, catalogação de todos os passos e resultados constituem a matéria destes textos: “O histórico destas operações foi conservado meticulosamente”. Estes textos têm uma qualidade clínica que quase apaga a ideia de um autor pelas suas maneiras mais usuais, não havendo qualquer busca por um grau de expressividade transmissível pelo uso da gramática, de um vocabulário marcado e pessoal, de um domínio qualquer de diferenciação… Parece estarmos a ler um manual.
Quanto às imagens, criadas por um grupo de 6 artistas, a saber, o próprio Manouach, André Lemos, Pascal Matthey, Tommi Musturi, Dimitris Baboulis e Alberto, são apresentadas sem qualquer ordem aparente, misturam-se entre elas, não têm registo de identificação (apenas assimilável por quem reconhecer os traços específicos das assinaturas “estilísticas” de cada um), e seguindo vários tipos de paginação, colocação no plano de composição, formatos, etc. E no que diz respeito ao que se figura e representa, aos modos de preenchimento da imagem, etc., não há qualquer valência consistente. Algumas imagens são figurativas, outras abstractas, outras misturam os registos. Alguns autores parecem fazer pequenas variações sobre um tema, ou provocar diferenças internas a um conjunto de imagens manipuláveis, outros devem seguir instintos momentâneos. Um dos artistas segue uma linguagem claramente infantil, representando animais (é mesmo possível que seja uma criança, não sabemos), outros carregam as imagens de referências de muitos quadrantes. A leitura aturada e cuidada das imagens e sua correlação com as imagens não é de todo impossível, mas é uma tarefa hercúlea tentar descortinar uma só linha de desenvolvimento e resposta.
As próprias opções gráficas do texto, paginado em blocos de uma reduzida elegância utilizando as letras em Impact a itálico e negrito, parecem querer apresentar uma ideia totalmente despojada de qualquer tipo de expressividade e beleza (algo que é impossível em absoluto, mas pode pelo menos criar essa ilusão ou transmitir essa impressão). Manouach obriga-nos a ponderar se a consideração do tipo de letra e o seu arranjo tipográfico pode fazer parte da análise viável da significação do texto, e estamos em crer que, pelo menos neste projecto, sim. É um grau de materialidade a ter em conta.
A estrutura do texto, daquilo que não sem alguma interpretação forçada chamaríamos de “história”, é tão regrada quanto aleatória parece ser a resposta das imagens. Primeiro dividindo as plantas nas duas grandes subdivisões de angiospérmicas e gimnospérmicas, e depois seguindo as consequentes classes, ordens, famílias, etc., visitam-se todas a divisões sistemáticas, separando-as de acordo com esses mesmos princípios, e votam estas a toda a espécie de (violentas, mortificantes senão mortíferas) experiências médicas, daquelas indicadas ao extermínio total. Como explica a primeiríssima frase do livro, o que se pretende é uma “modificação geológica” (que podemos imaginar como metonímia da própria estrutura do mundo, do universo, ou seja, de nós mesmos). Todo este exercício parece, repetimos, revestir-se de um tom desapaixonado, científico, clínico. E é-o, tendo como fim uma imitação de um outro discurso histórico: o do Holocausto.
Esta associação pode parecer gratuita, mas a ideia de “limbo”, reforçada por uma referência ao inferno japonês (Jigoku), pelo menos uma imagem figurativa de Manouach, e algumas imagens que representam pilhas de esqueletos ou esqueletos cumprindo algumas operações, já para não falar de outros projectos do autor-editor (como Katz), fazem com que o livro duplo seja uma espécie de ensaio poético e figurativo sobre esse acontecimento histórico, esse “buraco negro” do entendimento. Mesmo tendo corrigido a frase mais tarde, a ideia de Adorno de que escrever poesia depois de Auschwitz era obscena teve as suas repercussões, sobretudo a de ter tomado o pulso à impossibilidade de escrever poesia (ou qualquer outro tipo de linguagem criativa e significativa) com o mesmo tipo de inocência ou despreocupação para com a ideia de “mal” (por mais banal que fosse, nas palavras de Arendt) intrínseco ao ser humano.
O texto poderia ser assim entendido como a marcação clínica, regrada, pautada, burocrática, da máquina de extermínio montada, e as imagens como a resposta emotiva, desconexa, violenta, agressiva, dos testemunhos, ora próximos e implicados ora com alguma distância.
Será extremamente controverso, claro está, fazer comparações directas entre o que é descrito nos textos e os acontecimentos históricos e reais, ou as imagens e qualquer tipo de tentativa representacional desses mesmos acontecimentos (Claude Lanzmann e outros autores acham que não se deve sequer colocar as coisas em termos de representação, e apenas a sua ausência pode respeitar a realidade). Mas Manouach pretende precisamente esse tipo de confrontações e provocações, que tanto dizem respeito à forma como os discursos sobre o Holocausto se têm “naturalizado” sob a forma de frases feitas, sentimentos de circunstância ou abordagens patéticas, sentimentalistas e facilitistas que por terem grande distribuição correm o risco de delimitar o horror: são os gritantes casos de Schindler’s List e A vida é bela, mas também de livros como O Leitor, de B. Schlink ou O rapaz do pijama às riscas, de J. Boyne. Como comercializar e sacar “entertainment value” de um genocídio estipulado maquinalmente? Como escreve Dominick LaCapra em Writing History, Writing Trauma, “práticas sociais e instituições [geram] limites normativos que não têm de ser confundidos com normalização - limites que são afirmados como legítimos mas estão sempre abertos a serem desafiados, desregulados, transformados, e até mesmo a sofrerem desorientações radicais”. Ora, onde aquele tipo de narrativas “de sucesso” criam discursos rapidamente confundidos com a normalização - o “isto foi mesmo assim”, o esgotar os elementos passíveis de discussão ou experiência emocional e de pensamento histórico, etc. - surgem nestes projectos advindos de áreas menos contaminadas pela normalização práticas sociais de resistência. Limbo apresenta, sem dúvida, uma “radical desorientação” em relação aos limites levantados. Como é de esperar, o impacto deste projecto será delimitado, uma vez que opera ele mesmo no exterior de toda uma série de campos expressivos expectáveis (mais da ordem do “não é banda desenhada”, “não é livro de artista”, etc., do que de uma afirmação disciplinar), e a sua recepção será diminuta.
Que gestos poderão existir então de resistência às expectativas e previsões que não exijam um esforço dos seus leitores?
Nota: agradecimentos ao autor, pela oferta do(s) livro(s).
Publicada por Pedro Moura à(s) 11:34 da manhã 0 comentários
Etiquetas: Experimental, Outros países
Les hommes-loups. Dominique Goblet (Frémok)
Como havíamos proposto em relação a Limbo, também este livro de Goblet proporciona uma contestação das relações habituais entre o texto existente num livro e as imagens que lhe estão associadas. Na verdade, no caso de Goblet, mesmo existindo uma noção ou conceito de “história” na origem de toda a matéria plástica, é esta que toma a dianteira do acto criativo e da sua presença final na tessitura, ou texto. São os textos verbais existentes, afinal, uma espécie de notação ilustrativa às imagens centrais, recordando - salvas as distâncias históricas, artísticas e até mesmo do contexto comercial contemporâneo - as experiências de Hogarth, Grandville ou outros.
Goblet volta a colaborar com Guy-Marc Hinant para a fabricação dos textos, mas desta feita toda a matéria verbal não é apresentada ao longo do livro, mas antes disposta em forma de pequenos quadros textuais nas “segundas guardas” no princípio e no fim do livro (isto é, as duplas páginas imediatamente depois e antes das verdadeiras, físicas, guardas, que retratam um grupo de caçadores, na primeira parte em plena acção, na segunda descontraídos, em pose de grupo a fotografar). A sua leitura é portanto dirigida de uma forma complementar. Ler na ordem física do livro, ler em primeiro lugar, ler após as imagens, não ler, são todas opções que cabem ser tomadas somente pelo leitor ou leitora. No entanto, a própria divisão assim estabelecida recria toda uma série de expectativas relativas à hierarquia ou pelo menos o interrelacionamento do texto e da imagem (como decorre em Limbo de Manouach).
Como em tantos outros projectos, a leitura destas imagens fará despertar linhas narrativas virtuais, pela repetição de certas imagens - a casa isolada na floresta, os homens de negócios, os coelhos, as cabeças de lobo, cenas relativamente sedutoras e outras claramente pornográficas, retratos de crianças isoladas, quase em perigo, cenas de densas florestas… Mais, a casa é repetida variadíssimas vezes, em esquemas cromáticos muito diferenciados (e possivelmente materiais, igualmente), o que, em termos representacionais, poderá fazer o leitor imaginar serem cenas em momentos diferentes, quer a longo de um dia (cenas diurnas versus nocturnas) quer ao longo das estações (Inverno versus Verão).
Esta aparente procissão de imagens autónomas para contradizer a natureza do objecto-livro. Tal como Roland Barthes havia escrito, em Leçon, que a literatura, mais do que utilizar a linguagem, a põe em cena, parece-nos que Les hommes-loups (e alguns outros livros desta banda desenhada a que, em outros momentos, chamámos de “experimental” ou “por vir”) exacerba essa ideia de pôr em cena. Há uma imanência nestas imagens presentes que obrigam os leitores a um esforço particularmente vincado para se tornarem co-autores, isto é, a obrigá-los a se consciencializarem - ou agirem, noutra hipótese, mesmo sem essa consciência verbalizada -, de que a autoria é uma função do texto. Logo, este livro não nos é ofertado sem resistência: impele-nos a fabricá-lo também.
Por outro lado, se recorremos a Walter Benjamin, descobrir-se-ão outras qualificações. Num dos fragmentos mais decisivos do Livro das Passagens (N3,1), ao falar do seu conceito da “imagem dialéctica”, que junta num “repente” o passado e o presente, que faz diluir a intenção, e que estabelece uma relação, não temporal entre o passado e o presente, mas uma relação dialéctica entre aquilo-que-foi e o agora, uma imagem figural (bildich), Benjamin termina assim: “A imagem que é lida - o que quer dizer a imagem no agora da sua qualidade de ser reconhecível (Jetzt der Erkennbarkeit) - é marcada no mais alto grau pelo selo do perigoso momento crítico em que toda a leitura é fundada”.
Este livro - e alguns dos outros que construiriam uma comunidade específica da banda desenhada - não são aquelas meras máquinas de ficção, fantasia, histórias, reflexos, que pedem pelo acto de actualização que a leitura, no seu sentido “fraco”, constitui, mas antes é ele mesmo constituído enquanto texto na leitura construidora, por assim dizer, que é garantida pelo(s) leitor(es). Não é portanto um texto existente, à espera de leitora, mas antes como se fosse esse acto o último ponto da cerzidura.
A argumentação de que este livro “faz” ou “não faz” parte do corpus e do mundo social da banda desenhada não é suficiente. Como diz Jean-Christophe Menu (La bande dessinée et son double), a existência de fronteiras auto-homologadas da banda desenhada leva muitas vezes a que ela não inclua em si mesmo experiências que a podem tornar um território mais vasto, diverso, poroso e, por isso mesmo, estética e culturalmente saudável. É preciso, portanto, identificar os elementos que são passíveis da aproximação da obra de Goblet à dessas tais fronteiras mais habituais. Les hommes-loups é um livro pensado em conjunto com os desenhos criados e que ele encerra, mas numa dinâmica autónoma e separável. Isto é, Goblet não pensa os desenhos como objectos autónomos para serem apresentados em exposição, e que por acaso são alvo de uma agregação num livro/catálogo, nem tampouco cria um livro cujos materiais de produção são passíveis - como quaisquer outros - de serem alvo de exposição. Ela pensa ambas as dimensões ao mesmo tempo, auscultando as possibilidades da variação de materialidade dos desenhos terem uma presença forte no significado legível num volume e pensando a espacialização expositiva fora das circunstâncias do livro. Há aqui desenhos (descrição física, disciplinar, produtiva), há uma ideia de série e sequência (repetição de elementos figurativos e/ou temáticos, construção de um eixo mínimo de relações interpessoais entre as personagens identificáveis, entre os espaços retratados, entre alguns elementos de tempo), há o formato do livro (que coordena as operações cognitivas do leitor/espectador).
Mais do que uma diegese classicamente disposta com os seus elementos, o que se apresenta é uma rede aparentemente desconexa de elementos singulares, independentes e descoordenados - algo que não deixa de ser uma falsa leitura, já que se são série e variação, não podem ser singulares, se se relacionam entre si formal, temática ou materialmente não são independentes, e se se encerram num conjunto significativo e formador de significados, o livro, não serão de todos desprovidos de coordenação. O que emerge, porém, dessa leitura atomizada, rizomática se quiserem?
Tal como faz parte da linguagem contínua de Goblet, há uma qualquer presença fantasmática que têm a ver com traumas associados à infância ou à vida familiar. Se Souvenir d’une journée parfaite era um trabalho de luto sobre uma figura paterna, Faire semblant c’est mentir a raiva que advém do confronto com uma figura materna, e Chronographie é um exercício de diálogo gráfico com a sua filha, Nikita Fossoul, apercebemo-nos de um padrão que bebe da sua experiência pessoal, mas sem que se permita consubstanciar-se em autobiografia ou em autoficção (como defesa?, como fuga do género?, como resposta complicada?, ou como forma própria de dar a ver o desvio provocado pelas memórias?). É outra coisa. É um aproveitamento de linhas de força, talvez, ou uma exploração de ecos emotivos, de “fantasmas”, de peles, que depois são transfiguradas na sua obra plástica e de banda desenhada.
Les hommes-loups pode ser visto como uma fábula sobre o avanço do capitalismo industrial e a destruição das paisagens naturais. Ou sobre a destruição do ser humano da natureza, vegetal e animal (outra coincidência, mas muito superficial, com Limbo). Ou uma versão complexa do Capuchinho Vermelho, fazendo emergir as suas interpretações hodiernas sobre os abusos sexuais feitos sobre crianças. Ou uma fábula sobre um lobo que é um homem, ou um homem que é um lobo, ou um monstro que habita as duas peles, e que recupera saberes e vivências antigas, populares, ou que têm hoje uma leitura psicológica nova e surpreendente. Ou é um diário pessoal em que muitas das observações e experiências atravessam um qualquer filtro transformador (algumas páginas têm anotações textuais, e algumas delas são claramente autobiográficas).
É também muito possível que nenhuma dessas - breves, esquemáticas, redutoras - interpretações esteja correcta, nem mesmo se forem combinadas entre si, já que qualquer tentativa de agregar os seus sentidos levaria sempre a uma desagregação dos módulos flutuantes de significado que atravessam o livro.
Ele é um território enérgico dos seus elementos, um tecido incompleto apenas antes da leitura, a qual se constitui como um desafio.
Publicada por Pedro Moura à(s) 11:26 da manhã 1 comentários
Etiquetas: Experimental, França-Bélgica
20 de junho de 2012
A crise explicada às crianças. João Miguel Tavares e Nuno Saraiva (Esfera dos Livros)
A opção de eleger um universo com animais antropomorfizados é uma opção que se revela, graças a certos estudos recentes, como um instrumento pedagógico bem mais eficaz do que a tentativa em “falar da realidade” de forma directa. As crianças não são estúpidas, mas há sem dúvida alguma limitação nos processos cognitivos, que se vão formando ao longo da vida (siga-se Piaget ou seja quem for na descrição desse desenvolvimento). Mais, o seu uso para o ensino de mecanismos que possam ajudá-los a se defenderem de vários tipos de ansiedade, de projectarem situações hipotéticas ou imaginárias nas quais jogam a sua afectividade, emoção e poder de decisão, ou até somente como plataforma de aquisição de conhecimentos e experiências está atestado. É um grande desafio e risco escolher esta via para um tema tão premente, e historicamente preciso (não se trata de uma realidade natural ou que faça parte da experiência contínua das pessoas). Será ela uma ferramenta eficaz para compreender situações tão complexas, multifacetadas e permanentemente mutantes como a da “crise económica”, que é tão produto como produtora do tecido social, cultural e político? Por outras palavras, em que se inscreve e que ela mesmo cria, a um só tempo? Se, de acordo com John Morgenstern (Playing with Books: A Study of the Reader as Child) se verifica de facto uma usual repressão de aspectos da vida humana como o horror, a morte, o sexo e a ironia, como abordarmos um tema como este, no qual a distância irónica e a consciência dos abusos permitidos pela situação é necessária?
Não há falta de livros que tentam, de uma forma sucinta e simples, tornar mais acessíveis determinados problemas cuja complexidade muitas vezes parece derrotar quem deseja deles aproximar a compreensão, derrota essa muitas vezes esmagadora logo à partida. Os volumes Para principiantes (da D. Quixote) ou a colecção Já percebi! (de Kellie Gardner e colaboradores, projecto da Flammarion e, por cá, da Eixo) fazem parte da nossa memória pessoal, aplicadas não somente àquelas coisas que as crianças e adolescentes imediatamente quererão saber porque fazem parte do seu mundo visível – as flores, os animais, as máquinas, as estrelas – mas igualmente àquelas que parecem ser mais intangíveis e imateriais (nunca o sendo), como conceitos, pressupostos, categorias culturais. A “crise” é uma dessas realidades, carregada que está numa rede densa de tantos outros conceitos intimamente relacionados, e muitas vezes nem todas as suas facetas são claras, por mais informados que sejamos enquanto cidadãos activos no nosso sistema político, social e cultural. A crise explicada às crianças trata-se portanto de um desse tipo de gestos, e se não mergulha na ironia de forma directa, nem procura explicitar todos os factores envolvidos “na realidade”, apresenta uma versão suficientemente simplificada que permite o início da discussão (um livro dito infantil nunca se lê somente de capa a capa, mas deve tornar-se parte do diálogo permanente entre pais e filhos, educadores e educandos, factor da construção de identidade).
Em breve, falaremos do projecto To Whom Who Keeps a Record (Abonnenc, Pestana, Abranches) o qual faz menção a projectos educativos “de esquerda” dos anos 1970, tal como os livros de propaganda de banda desenhada chineses ou angolanos, ou o Livre d’histoire… Esses são projectos que claramente demonstram como é impossível atingir-se uma qualquer posição para além (ou acima) das ideologias. Quer dizer, não há qualquer discurso ou posicionamento possível que esteja de fora de uma qualquer construção ideológica; a defesa de que se fala a partir de uma “posição a-ideológica”, “neutra”, “objectiva”, as mais das vezes relaciona-se com os discursos vigentes do poder, o que significa, no nosso caso, aos mecanismos de construção societal burgueses, capitalistas e dirigentes. O seu segredo está em apagar a possibilidade mesma de outra alternativa, ou se ela for indicada, será sempre vista como “utópica”, “idealista”, “nefelibata”, “irrealista”, “inconsequente”. De que posição falava afinal Fukuyama para declarar “o fim da história”?
A assunção de uma posição clara, a revelação de quem fala e de onde fala é necessária para a clareza desse mesmo discurso. Ora este livro pretende, através do seu mecanismo aparentemente simples de apresentar duas histórias, duas versões de uma mesma realidade (voltamos aqui à questão de os factos não existirem por si só, mas se constituírem através dos discursos que os apresentam), ser visto como “objectivo”, como “equilibrado”, deixando que os leitores se decidam por eles mesmos conforme a versão que lhes fizer mais sentido. Mas isso ocorrerá de facto?
É que a própria forma como elegemos os elementos a explicar, a opção em tornar visíveis estes e não aqueles factores, o modo como se narra a sua relação e preponderância, fará desde logo surgir uma perspectiva, que não se corrigirá, seguramente, com a tentativa de ver as coisas por outro prisma, uma vez que esse prisma, emergindo como “diferente”, “alternativo” no seio de um outro – que se vê não como “prisma” mas “realidade” – será sempre também visto como “insustentável” senão mesmo “ficcional”. Como se entenderá, a nossa preocupação está em não diminuir a metodologia da leitura crítica da chamada literatura infantil a abordagens temáticas, sobre as suas matérias e conteúdos, mas antes numa atenção particular para com as suas estratégias discursivas, atentando sobretudo à lição estruturalista e pós-estruturalista (ainda que sem abusos) sobre as relações entre a própria linguagem (aqui devendo englobar todo o tipo de estruturas sígnicas, inclusive as imagens e a suposta “realidade”).
O livro apresenta, portanto, uma versão “para miúdos de direita” e “para miúdos de esquerda”. Do ponto de vista “da direita”, o problema está no apetite voraz e progressivamente crescente dos ursos (que é o défice, mas também poderia ser chamado de Estado e, portanto, também de contribuintes ou devedores individuais). Do “da esquerda” está nas abelhas (os mercados, mas que deveriam ser vistos antes como os agentes financeiros, sobretudo especulativos) descontroladas. E o produto que leva à contenda, tensão, desequilíbrio, é o mel… É óbvio que quer uma quer a outra analogia são incompletas: afinal, quem produz o mel? Qual a reciprocidade do consumo do mel pelos ursos? Qual a função (ou dieta) dos outros animais que são chamados à colação? Essas são algumas das facetas que revelam as suas fragilidades quando se tenta mostrar “os dois lados”, quando nenhum deles explora de uma forma completa a descrição do mundo em que se querem expressar. De alguma forma, este projecto recorda-nos aquelas lições, pouco veladas para os adultos, que eram transmitidas pelas canções do (marxista) José Barata Moura. “Os ratos cozinheiros Pimpocas e Rinhaunhau”, por exemplo, era relativamente clara sobre a relação entre as forças de produção (os ratos) e o aproveitamento desequilibrado pela parte dos detentores do capital (o gato). Dizemos relativamente porque não explicava a canção que os meios de produção eram afinal propriedade do detentor do capital, e como os meios de produção são ele mesmo capital em circulação. No caso do livro presente, a “dieta” do urso, por exemplo, não é um instinto natural, mas sim uma imposição que lhe foi colocada – pelas abelhas (o Capital nos seus vários avatares), se quiserem, ou pelo que nós chamaremos o “Parlamento dos Animais” (que será seguramente uma representação da UE).
O livro é um instrumento eficaz, curioso e não sem inteligência e humor para dar início a essa aprendizagem, e torna-se ainda mais agudo - para nosso próprio exercício de adultos - tentar compreender o que é deixado “de fora”… Por exemplo, não é explicado que parte das consequências da crise não são suportadas nem pelas abelhas (as quais têm acesso a mel produzido por outras abelhas) nem pelos ursos (que sempre arranjarão maneira de encontrar dietas de engorda alternativas, ou pura e simplesmente aparentes), mas sim por outras criaturas… Se seguirmos a analogia animal que animais escolheríamos? As pulgas? Seja como for, a crise, que de facto é provocada por abelhas e ursos, é “paga” por terceiros, excluídos desta pequena narrativa (a menos que as vejamos integradas no corpo do urso).
Haverá algum momento em que esta fábula explicita que toda esta situação actual é provocada precisamente pela natureza endémica do tardo-capitalismo financeiro? Não queremos dizer que outros sistemas económicos alternativos – como as oligarquias de estado ou um capitalismo de estado – estejam desprovidos das suas próprias crises, desequilíbrios e até horrores, tão-somente indicar que, estando nós inscritos num determinado sistema, não podemos imaginar que ele seja alvo de uma tensão por agentes claramente divididos por linhas ideológicas, mas antes que a sua própria constituição leva inevitavelmente a certos resultados. No caso presente, a crise actual (semeada há décadas, repetida desde os anos 1980, prevista) foi provocada pelas próprias regras do sistema (algumas das quais refeitas à medida que se avança, como a de não deixar morrer as abelhas que se portam mal mesmo que tenha sido por culpa delas) – os subprimes, as dívidas soberanas galopantes, as desregulações governativas dos mercados, e a “guerra silenciosa” entre o euro e o dólar, como entre o petrodólar e o petroeuro (e preparemo-nos para o petroyen, petroyuan ou o que for), já para não falar das profundas transformações que o próprio mercado europeu (o parlamento dos animais, como lhe chamámos, na extensão desta narrativa) impôs nos tecidos produtivos dos seus membros, empurrando-os para o resultado que agora se colhe. E a questão não é se é a direita ou a esquerda podem resolver a questão, já que ambos os campos têm a sua quota-parte de responsabilidade nos abusos sobre o tecido económico que aqui nos trouxe… Ainda assim, do nosso ponto de vista, a versão “de direita” retira algum peso de responsabilidade à agressividade das abelhas antes da crise e que para ela conduziram (a forma como enfiavam mel pelas goelas abaixo dos ursos).
Onde estão os conceitos de co-responsabilidade dos emprestadores, e os seus cantos de sereia? A política do trash for cash? As políticas fiscais desajustadas aos contribuintes diferentes? A forma como a conversa do desregulamento apenas funciona numa – permitindo que as abelhas-banco recebem mais mel para voltarem a multiplicá-lo quando o emprestam ao urso, mas não se fecharem colmeias quando não há mel a escorrer? Onde está a correlação entre a dieta do urso e a devolução do mel consumido? Onde está a ordenação das várias espécies de ursos, desde os imensos Kodiak que obrigam os pandas a estarem descansados, que lhes enviavam potes de mel, para depois os fustigarem por não fazer nada mais que mastigar bambu? Onde está a entrada de factores como a energia barata, a resposta concertada às outras florestas, a necessidade de equalizar a produção dos vários ursos entre si? Onde está a promessa gorada da solidariedade da união de ursos ou animais?
É claro que não podemos acusar o livro presente por optar por explicações quasi-monocausais, nem apresentar uma dimensão mais ou menos unitária da direita e da esquerda, mas é a sua existência que nos permite projectar e imaginar como é que a narrativa continuaria ou se moldaria para integrar todos esses problemas.
Desconhecemos se existirão desde logo “miúdos de esquerda/de direita”. Estamos em crer que existirão crianças livres dessas construções simplistas e que, à medida que forem expostas ao mundo e às suas lições, irão aperceber-se da realidade complexa e não-dicotómica que se forma em nosso torno. Mas estamos também em crer que não é através de narrativas aparentemente “objectivas” e “equilibradas” que elas construirão a sua própria perspectiva, que é necessária, talvez cada vez mais, ser informada, culta, abrangente e activa. Talvez o aspecto mais problemático do livro seja a dicotomia final, em que cada um dos pais diz que o outro vê o mundo “de pernas para o ar”, parecendo querer sublinhar a aparente impossibilidade de diálogo, de cooperação ou de construção conjunta de soluções, como deveria ser uma responsável cidadania democrática.
É então A crise explicada às crianças um instrumento provavelmente necessário para muitos pais e educadores, eles mesmos (nós) forçando-se ao exercício que os autores seguiram de imaginarem o outro lado da questão, e depois procurarem, quer na leitura quer nas vidas reais, perceber que caminho se deve trilhar a partir do centro do livro…
Tendo em consideração a experiência de Nuno Saraiva, no campo da banda desenhada mas também no da ilustração editorial e outros, não podemos dizer encontrarmos aqui um campo de inovadores gestos do autor. Tudo se pauta por uma comedida expressividade, clara, sem dúvida, linear e respeitadora do propósito narrativo do livro, mas sem que se nutra uma qualquer torção interna ora na composição do livro, ora nos vários níveis de significação que poderiam emergir nas imagens. Há uma maior preocupação em criar imagens hieráticas, simbólicas e pontuais de cada passo da narrativa do que lhes insuflar uma dinâmica própria que as tornasse um elemento suficientemente autónomo e paralelo a essa mesma narrativa. Possivelmente a razão disso é estar tudo subsumido ao jogo principal, da inversão quase simétrica das duas histórias especulares, em que cada imagem se vê reflectida na sua correspondente do “outro lado”, algumas com grandes proximidades, outras com maior subtileza, mas sem que as diferenças ou correspondências façam acrescer uma leitura inesperada.
Um aspecto autoral muito equilibrado é o facto de, havendo duas “versões”, duas capas, qe se permite que os nomes dos autores possam surgir alternados, com a primazia dada a cada um deles nas partes em que são assumidos papéis (semi-ficcionais) no interior do livro como os pais das crianças. O próprio código cromático (azul e vermelho), o tipo de letras utilizado no(s) título(s) e desde logo a estratégia do que é apresentado na(s) ilustração(ões), desde os objectos – iPad versus jornal de papel, consola versus ábaco, e a própria representação física das personagens antropomorfizadas, a diferença do humor do urso nas guardas do livro... - sublinham a diferença interna das perspectivas, se bem que mais uma vez através das tais dicotomias absolutas.
Um pequeno fait-divers é a justiça de ter sido o actual ministro das Finanças, Vitor Gaspar, a fazer a apresentação deste livro, levando a trocadilhos também eles justos, pela sua especialidade em “contos da carochinha”…
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
Publicada por Pedro Moura à(s) 10:38 da manhã 2 comentários
Etiquetas: Ilustração, Infantil, Portugal
19 de junho de 2012
En silence. Audrey Spiry (edição do autor)
En silence é um livro simples, mas é nessa sua simplicidade que pode ser arvorado como uma conquista.
Por algum grau de coincidência – mas sem dúvida que por afinidades e foco de atenção – falámos nos últimos tempos de autobiografias (Marjane Satrapi, Marco Mendes, Caeto e Topedro). Sensibilizados, como uma emulsão, e por pequenos factores extratextuais, não é irrelevante que nos pareçam surgir elementos que nos fariam imaginar tratar-se este livro de uma recordação de uma experiência vivida. Todavia, não existindo elementos suficientemente fortes, deveremos evitar fazer essa leitura, para mais por não se tornar reveladora das linhas de força do próprio livro.
Um jovem casal de namorados junta-se a uma família para, num recanto paradisíaco do interior francês, se dedicarem ao desporto radical do canyoning, descendo toda a extensão de um rio e o seu ambiente circundante, ora mergulhando nas suas águas, saltando as suas cascatas e desníveis, aproveitando os seus rápidos, ora embrenhando-se na vegetação luxuriosa em seu torno. Mas esse passeio, desenrolado numa só tarde, servirá para Juliette, a rapariga do casal, se indagar a si mesma, no seu íntimo, tentando perceber que frissons ainda sente ao ver Luis, o namorado, ou que anseios sente pela sua ausência, assim como para revisitar, nessa mesma ponderação, as suas memórias partilhadas nessa relação, e então decidir-se o que deve ser preservado ou abandonado dessa relação. O livro opta por uma estratégia, a nível da composição e da verbosidade (repare-se no título), muito suave, cândido, e sem quaisquer histrionismos.
Mas a “conquista” de En silence, a sua linha de força, é feita noutra camada. Para a ela chegarmos, há um outro aspecto que se nos surge pertinente graças a informações extratextuais: é o facto da autora ter trabalhado na indústria da animação. Essa área criativa não deixa de estar aparentada com a da banda desenhada, não tanto por razões temáticas, figurativas e estéticas (isto é, pelo seu desenvolvimento histórico e social, até como tecnologia, se o podemos dizer dessa maneira), mas por uma certa ontologia do desenho, da sua plasticidade transfigurada pela narração (nos casos em que isso ocorre, que é a maioria, mas não legisla em absoluto nem uma nem outra arte). Essa pequena informação ilumina de uma maneira capital as imagens criadas por Spiry neste livro.
Há aqui alguma da sumptuosidade visual – figurativa e cromática – de Brecht Evens, mas onde esse autor parece querer criar uma profunda reflexão sobre as relações mas sai-se limitado pelo seu efeito, Spiry parece mais comedida, mais simples nos propósitos narrativos, mas por isso mesmo consegue fazer libertar das suas pranchas um ar poético, sempre simples, e não desprovido de algumas qualidades. Sobretudo pela exuberância visual, explosiva, animada, metamorfoseante. Há duas tensões no cinema de animação, ou até em todo o cinema, se o quisermos, identificadas e discutidas por Deleuze sob a forma dos seus conceitos da imagem-movimento e imagem-tempo. A complexidade e qualificações desses conceitos impedem-nos que sejam transformados em meras sebentas aplicáveis, mas baste-nos por agora utilizá-los como identificando o primeiro como as instâncias em que a imagem parece sempre servir um propósito narrativo, causal, representativo, completo, claro, e o segundo como aquelas em que a tónica recai sobre a própria duração, a incompleta metamorfose e abertura contínuas das formas, reflexo mais de um devir do que um tornar-se.
Não deixa de ser uma violência fazer a destrinça entre os elementos que devem compor o todo de uma banda desenhada numa só mole expressiva, mas como dissemos, nem sempre podemos estar à espera que tudo “cante em uníssono”, e podemos ver fulgurâncias maiores num ou noutro aspecto. No caso do presente livro, encontramo-las nessa qualidade plástica das figuras.
O corpo da protagonista, e de outras personagens, por vezes, parece seguir uma plasticidade fluida, que mima a da água em que mergulha, pela qual é transportada, empurrada, amassada. Se existem efeitos que sabemos corresponder aos fenómenos físicos, apenas capturados por instrumentos ópticos que vêem além do olho humano (e bastaria falar da fotografia), como a bolha que o corpo arrasta em seu torno, mesmo quando emerge, a autora parece estar mais interessada porém na fluidez do traço, do pincel, das tintas e da cores, e instilar em algumas cenas essa qualidade líquida, plasmática, animada, sobre os corpos humanos. Há cenas em que o corpo se estica, se deforma, ou até estilhaça, revelando uma plasticidade que tanto deve à água como à plasticidade ou morfologia elástica “clássica” (mas não obrigatória) dos desenhos animados. Mais do que um retrato da realidade ou dos seus efeitos – e isso é procurado ainda assim, como nos momentos em que o excesso da luz solar e das cores digladiando-se entre si estilhaçam os rostos em fragmentos de cor plana -, a autora cria uma liberdade que se dá na superfície do papel e das tintas misturadas. Se uma leitura molecular, analítica, revela “coisas impossíveis”, na sua apreensão global, coordenada, orgânica, é justíssimo e preciso. De resto, no percurso lento da arte, Spiry utiliza instrumentos que foram fundados na pintura por Cézanne, e que encontrará nos Expressionistas alemães (os grupos Der Blaue Reiter e Die Brücke) as suas maiores afinidades, senão influências directas. Mas também poderíamos seguir as pisadas da história da animação, agregando os nomes de Oskar Fischinger ou Georges Schwizgebel, ambos realizadores de alguns dos mais influentes filmes de animação alguma vez feitos, e ambos propensos à sinestésica dança que as cores e a música em conjunção podem proporcionar.
Não estamos a falar, portanto, somente da técnica do squash and stretch, apesar de tudo subsumida à ontologia narrativa, representacional e até humorística de toda uma série de personagens animadas, e que influenciariam igualmente artistas de banda desenhada como Jack Cole ou Kyle Baker, ou artistas de animação que também fizeram banda desenhada empregando técnicas similares, como John Kricfalusi (em vez das simples “versões” de personagens da animação em banda desenhada - vejam-se os livros da Hanna Barbera - que perdiam toda a sua dinâmica especifica nem procuravam uma alternativa). Falamos de um prazer pela exploração própria de uma fragmentação, plasticidade e metamorfose dos corpos quase independente da narrativa. É claro que ainda se poderiam procurar raízes disto em alguns exemplos da banda desenhada do século XIX em que os corpos ainda não se decidiram a seguir regras humanas: vejam-se os corpos de Wilhelm Busch, alguns de Doré, de Grandville. Mas no caso presente temos de tomar em consideração o momento histórico em que o trabalho de Spiry se inscreve, ou seja, enquanto gesto de “resposta” e “distanciação”.
O comportamento das figuras de Spiry com a água do rio, por um lado, lembra a lição de Bruce Lee, “torna-te água”, por outro, o poema de Goethe sobre as nuvens, “sobe, adensa, esgarça, desce”. Não são as fragmentações existenciais de Buzelli, David B., ou outros. E são essas transfigurações momentâneas que fazem imaginar as impressões próprias destas personagens em relação ao ambiente mas também com o estado de espírito delas mesmas, que se abre assim a uma plasticidade emocional que se revela de várias maneiras.
Transfigurações que também constituem as pequenas mas seguras transformações que operam no livro, e que, na sua descida fluida, o fazem conquistar os tais pequenos passos avante.
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
Publicada por Pedro Moura à(s) 12:49 da tarde 0 comentários
Etiquetas: França-Bélgica
18 de junho de 2012
Autobiografia sem factos. Topedro (edição do autor)
Topedro quer criar com este pequeno livro um desafio, uma contestação, até mesmo uma provocação à ideia de autobiografia, sobretudo às formas empedernidas em que elas podem incorrer, num momento em que, enquanto género, pode ganhar uma presença demasiado confortável na circulação cultural. Falando da banda desenhada, talvez seja essa a razão que leva o autor a anotar no início do livro “sob o síndroma de Satrapi/Thompson”. Mas outros materiais paratextuais ajudam a aproximarmo-nos desse desafio. De Bernardo Soares cita: “tenho para com tudo que existe uma ternura visual, um carinho da inteligência – nada no coração”. E num pequeno texto introdutório, que é como que um diálogo consigo mesmo, escreve: “não tens nada para contar…
“Estranhas-te, e alguém te convenceu que somos o que vivemos, o passado é o Eu.
Pois, podes construir uma ‘história de vida’, uma autobiografia dava-te uma identidade; mas terá um espectador conteúdo?”
São muitos os factores interpeladores, que estimulam a discussão, como vemos. Para mais, quando o que se segue pode ser descrito – de forma demasiado superficial – como uma colecção de imagens avulsas, sem sequência clara, sem narratividade intrínseca, todas retiradas de um bloco de desenho oblongo, algumas em página dupla, outras singulares, quase todas horizontais, mas algumas verticais. Existem cenas de interiores, que servem de extremos, e muitas de exteriores, cenas nocturnas e diurnas, despojadas de presença humana ou delas cheia.
Superficial, dissemos, e assim abdicar-se-ia de notarmos que a primeira imagem do interior é precisamente uma cena de um interior, em que vemos parte do corpo do autor, e o seu bloco de desenho aberto, de páginas em branco. A última mostra um outro espaço interior, diferente, com um livro fechado sobre um cadeirão. Haverá aí, portanto, desde logo, uma promessa dos gestos e imagens que se moldarão nas seguintes? E uma espécie de conclusão? E poderíamos fazer um esforço – de interpretação, de força teorizadora, de imposição de sentidos? – em lermos uma sequência: o autor abandonando os seus espaços interiores e domésticos, saindo mesmo do seu espaço urbano na direcção de uma terra à beira-mar (no Alentejo, parecem algumas cenas e algumas palavras anotadas apontar), e aí abandonar-se a observações mais pausadas, começando a surgir pessoas que conversam nos cafés, que se sentam nos paredões na praia, num concerto, que pescam… Não há narrativa clara, nem palavras que ancorem os sentidos num “conteúdo” repetível verbalmente, sem dúvida, mas ainda assim evola-se desta colecção uma “identidade”, uma “história de vida”, mesmo que não seja coincidente o suficiente entre a que o autor haverá experienciado e/ou transformado no livro, e aquelas que os vários leitores tecerão nas suas leituras. Isto é, os factos estão ali, são-nos ofertados, mas são os nossos próprios pensamentos, interpretações, que os formam enquanto factos e, com eles, que tecemos a rede de relações entre eles, fazendo então emergir o mundo. Não queremos dizer que haja sempre coincidência, mesmo naquelas autobiografias em que os “factos” pareçam mais claros, em que a “verdade” pareça mais consensual. A epígrafe final, também de Bernardo Soares, apoia-nos na compreensão desse desencontro, dessas diferentes perspectivas mas que ainda assim fazem o mundo: “tudo o que sabemos é uma impressão nossa, tudo o que somos é impressão alheia”. Quer o autor então, com esta colecção de imagens desconjuntas – ou não, já que pertencem ao mesmo objecto organizado? – mostrar-nos aquilo que sabe, mas nós não, mas através de cujas impressões, as nossas, moldamo-las enquanto o que ele é?
Voltando àquele texto introdutório, parece-nos, mas podemos estar enganados, que o autor partilhará daquela ideia de que uma autobiografia será tanto mais interessante quanto a vida que se contará (“não tens nada para contar”). Mas essa é uma ideia algo perigosa, não só por hierarquizar à partida as vidas em si como “interessantes” e “não interessantes”, como por colocar a tónica da valorização no fenómeno numénico, no “objecto”, e não no acto da poiesis que é constituído pelo próprio gesto da autobiografia, isto é, a própria constituição do facto. As ciências cognitivas, aliadas à teoria narratológica, têm-se aproximado de uma descrição que coloca os processos de narratividade no centro da formação do eu. Nós somos narradores das nossas próprias histórias, e a unidade da nossa identidade é assegurada precisamente pela subjectividade da observação e experiência. É pela relação que, nas nossas mentes, fazemos das nossas próprias impressões, experiências, memórias (tudo destroços e jamais um contínuo ininterrupto), em torno de um eixo, a que damos o nome de “eu”, que se forma esse mesmo Eu. É, portanto, algo processual, não objectual. Para mais, uma autobiografia, forme-se ela por que meio for, obrigará a uma qualquer gestão dos signos, de decisões conscientes misturadas com intuições impensadas, impulsos e vontades. Uma construção de factos.
Mais, a nossa própria ideia de ver uma sequência introduz a questão do tempo, imposição nossa mas inevitável também. “Podemos perfeitamente imaginar o tempo sem fenómeno, mas é impossível imaginar um fenómeno sem o tempo”, escreve Gombrowicz em Curso de filosofia em seis horas e um quarto. Topedro providencia os fenómenos dos seus desenhos, e eles mesmos são factos, que colocamos em fiada, num texto.
O autor publicou ainda um outro volume, intitulado Diário dum pária de aldeia, uma outra colecção de imagens, que podemos projectar serem feitas nos mesmos locais que o outro livro, acompanhadas de algumas frases soltas e que poderão ser entendidas como pequenas confissões poéticas, e que não deixam ainda assim de ser vistas como gestos de um projecto autobiográfico alargado: afinal, tratando-se de imagens feitas em cadernos de desenhos, que se imaginam criados sob o domínio do exercício do desenho ao vivo, olhando os objectos (ou factos?) do mundo, que toda e qualquer imagem é um traço da presença do autor no mundo, um intervalo de tempo, observação e decisão. Cada desenho como um facto construído, cada fiada de factos (os volumes) um gesto autobiográfico. E nesse sentido, não temos aqui somente provocações, mas como novos modos de constituir factos.
Nota: agradecimentos ao autor, pela oferta de ambos os volumes.
Publicada por Pedro Moura à(s) 3:21 da tarde 3 comentários
Etiquetas: Autobiografia, Portugal
15 de junho de 2012
Logo depois da vírgula, Mattia Denisse [no Buala]
Trata-se de um livro que desafia, em parte, muitas das fronteiras estabelecidas em torno de alguns objectos que são mais ou menos centrais nas nossas preocupações (desenho, relação texto e imagem, acto literário, literariedade, inter-, intra-, para- ou hipertextualidade, etc.).
O texto encontra-se aqui.
Agradecimentos a Lígia Afonso, Barbara says... e Francisca Bagulho (Buala).
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Etiquetas: Colaborações, Crítica literária, Territórios contíguos
14 de junho de 2012
Memória de elefante. Caeto (Companhia das Letras)
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Etiquetas: Autobiografia, Brasil
11 de junho de 2012
Maria Keil. 1914-2012
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8 de junho de 2012
Diário rasgado. Marco Mendes (Mundo Fantasma)
Tendo em conta o panorama algo limitado na publicação de banda desenhada em Portugal, que sobretudo sofre de constantes comparações com pólos mais fortes de produção, em vez duma atenção às suas especificidades, e que tem necessariamente repercussões na sua apreciação pública, circulação, divulgação e mais ainda em termos de recepção crítica, é muito natural que o conjunto destes trabalhos sob a forma de um “livro” - um objecto de capa cartonada, com uma lombada, uma chancela que não sendo uma grande editora vem pelo menos associada a um importante agente da banda desenhada à escala nacional, com distribuição alargada (pela Turbina), etc. - chegue a um público bem mais alargado e diverso daquele que havia sido conquistado e contactado através dos fanzines do colectivo A Mula, o mais recente jornal Buraco, a colecção em Tomorrow the Chinese Will Deliver the Pandas, ou até mesmo, paradoxalmente, o blog do autor, que dá título a esta publicação e à ideia de Poema Contínuo da obra do Marco Mendes. Por outro lado, precisamente dado o perfil usualmente conservador e estático do círculo da banda desenhada, que preza mais a continuidade, a manutenção de abordagens convencionais e fórmulas - narrativas, figurativas e estilísticas -, Diário rasgado não deixa de ser um objecto com algum grau de diferença, e um nível de maturidade, impacto emocional e intelectual algo raro na produção nacional. Nada disto significa que o caminho seguido por Diário rasgado seja necessariamente “superior” ou “melhor” que outros - por exemplo o da fantasia desabrida, ou as explorações mais ou menos criativas e desreguladoras de géneros conhecidos - mas é esse um caminho que está munido de instrumentos que o aproximam de outros círculos artísticos, literários e de pensamento, exigindo um público mais adulto que o “médio”.
Não está o autor sozinho, claro está, e isolando certos traços encontrar-se-iam “compagnons de route” - neste tipo de abordagem naturalista à autobiografia teríamos Marcos Farrajota, Teresa Câmara Pestana, e o mais recente David Campos, na dimensão emotiva mas não melodramática encontraríamos Paulo Monteiro, na distância irónica Janus, Tiago Baptista e Miguel Carneiro, nos aspectos formais Nuno Sousa e Carlos Pinheiro - mas é a convergência desses mesmos traços que tornam o seu trabalho (como o dos restantes autores) singular. E se abríssemos o leque a nível internacional, muitas outras referências se fariam notar.
Apontemos uma só, por servir de signo de abertura ao livro e por deixar algum tipo de “aura” sobre Diário rasgado. A primeira página do livro mostra uma imagem, sem texto, sem título (recordemo-nos de que esta é uma colecção de pequenas “unidades” individuais, usualmente de quatro vinhetas regulares, com um título próprio). Nela, vemos uma cena interior, da sala da casa em que o protagonista vive, e vemos três troços de corpos humanos: uma mão entrando pelo canto superior esquerdo, segurando um cigarro meio-fumado, uma perna que se atravessa ao longo da margem, do canto inferior direito até meio da cena, e, relativamente escondido, um rosto de alguém deitado de lado. Por um lado, tendo em conta as informações diegéticas e visuais ao longo do livro, seria fácil identificar cada um desses pedaços de corpo como pertencendo a três das pessoas vivendo naquela casa: Marco, Didi Vassi e Palas. Mas ao mesmo tempo poderíamos, sob o signo de Guido Buzelli, pensarmos que se trata de um corpo só, fragmentado. A cena de abertura de Zil Zelub, do autor italiano, apresenta o protagonista (também ele um avatar auto-ficcional de Buzelli) numa prancha convencional, cujas vinhetas fazem com que o corpo deste surja judiciosamente enquadrado e próximo da superfície da imagem, em contraste com o seu interlocutor, de maneira a que não haja de nada estranho nessa mesma imagem: parece simplesmente que há uma opção de focalização de grandes planos sobre o protagonista. Mas virando a página descobrimos que a fragmentação física superficial da imagem correspondia afinal a uma fragmentação literal (na ficção), pois os membros do protagonista estão desassociados do tronco. E dá-se início então à história absurda desse magnífico livro.
Ora, ao virarmos esta primeira página de Diário, não encontraremos nenhuma confirmação diegética desse tipo. Este tipo de fragmentação, ainda que não seja explorada literal, imaginativa e diegeticamente no livro de Mendes, tem ainda assim uma presença de grau, pois ainda assim a disposição dos corpos “judiciosamente enquadrados” e a “fragmentação física superficial” leva a pensar que haverá algo dessa dissociação sobre o protagonista, o “Marco” de Diário rasgado… Verifica-se sempre, aliás como em toda a autobiografia em banda desenhada, uma espécie de desdobramento na figura do protagonista, ao qual chamaremos, como é prática corrente na crítica académica, “Marco” (isto é, utilizando o primeiro nome do autor, nos casos em que não haja menção de nome no próprio texto, o que não é o caso presente). Esse desdobramento é, por um lado, gráfico, já que os autores se representam a si mesmos de modo diferente às suas percepções cognitivas no mundo empírico (já voltaremos a esse assunto). Por outro lado, o autor deixa uma nota no final do volume dizendo que tudo o que o livro discorre pertence à ficção, mas talvez essa seja a maior ficção de todas. Aceitando que de facto não se está perante a mais chã - nunca o é, mas imaginemos aqui querer indicar-lhe um “grau zero” - das autobiografias, estaremos pelo menos perante a auto-ficção ou a auto-fantasia, no sentido em que o autor constrói como que um duplo, um avatar, um doublé, um “fato de ficção” que depois se coloca nas ficções que cria, mas onde todos os elementos terão ligações, se não directas, desviadas subtilmente da realidade experienciada. Não queremos entrar na discussão, eventualmente improdutiva se não seguir os mais equilibrados instrumentos, de que toda a obra é autobiográfica, mas tampouco desejamos afunilar a discussão àquelas onde se verifica o “pacto” explícito de Lejeune, mas antes apontar para a existência de um território mais ou menos coeso e consensual que aceita empregar o termo de “autobiografia” para um conjunto de trabalhos. Ora, Diário rasgado inscreve-se nesse território alargado, se bem que com as diferenças que lhe são próprias.[e é por essa razão que optámos por esse marcador no blog, não outra]
Como dizíamos, dá-se aqui aquela torção típica que ocorre em meios narrativos visuais, que, não podendo utilizar uma espécie de pronome visual diferenciado dos demais personagens, isto é, não existindo um “eu” nas imagens, leva a que todas as personagens sejam representadas como uma terceira pessoa, cuja cidadania material é idêntica, a do protagonista sem diferença das demais, a não ser a sua presença mais continuada, focalizada, etc. Logo, nessa realidade, ocorre uma torção que leva a essa dissociação - afinal, nós não vemos o nosso próprio rosto se não em reflexos, e um desenho é um reflexo, ainda que atravesse canais e filtros mais pessoalizados do que uma fotografia, por exemplo. Porém, como já havíamos indicado quando da edição de Pandas, Marco Mendes faz atravessar as suas histórias - e o seu avatar - por toda uma panóplia de géneros e humores, criando dissociações secundárias no interior do seu discurso.
A capa parece ter um aspecto elegíaco: o esquema das cores sombrias, a forma como se apresenta uma data em frente do nome do autor, e a cena de um avião descolando, que não se percebe se parte ou se regressa, se diz respeito ao próprio protagonista ou a uma outra pessoa. Mesmo que depois se confirme o que representa, na capa essa sensação mantém-se, isola-se da matéria no seu interior. Depois confirma-se de facto que é uma partida, e é algo que pode ser visto como o âmago deste livro: a relação de Marco com Lígia/Lili. Essa mesma relação ocupa o centro do livro, de maneira a que poderemos ver na sua estruturação de ponta a ponta uma curva linear que representa o grande arco: a entrada na vida de Marco de uma namorada, as paixões e tensões, o seu fim e os efeitos posteriores. E a pressão ou gravidade desse acontecimento sobre tudo o resto, por mais desligado que pareça.
Veja-se, por exemplo, o caso de “Afrodite”. Esta é uma das muitas unidades que Marco Mendes cria sem texto, obrigando o leitor a deduzir de uma forma mais profunda o grau de emotividade e de experiência transmitida do que aquelas em que os textos, os diálogos, as piadas podem tornar as coisas mais centradas numa comunicabilidade superficial. Bem vistas as coisas, por mais exercícios de descrição ou de certeira écfrase que se tente, não conseguiremos detectar com exactidão porque é que entendemos aquela projecção de desejo que se verifica na quarta vinheta. O corpo nu da modelo surge nas três primeiras, estando na terceira representada de forma indirecta (na verdade deslocada em terceiro grau, porque é um desenho de um desenho), e na última a jovem mulher já não é modelo de nu, partindo do pressuposto de que se trata da mesma personagem. A personagem de Marco age como professor de desenho, e as suas acções, eventuais palavras, gestos, à-vontade mostra o poder que exerce em relação à modelo, no sentido de ser ele o foco de atenção que molda o corpo dela enquanto percepção dos alunos. Na quarta vinheta há uma distância intransponível, sublinhada pela forma como a modelo se protege e afasta e mergulha na zona escura do desenho, e o Marco, aparentemente descontraindo com um cigarro, a segue com o olhar - não lhe vemos os olhos é certo, estando mesmo cobertos pelos óculos, mas adivinhamo-lo pela inclinação do corpo contra o umbral, a da cabeça… Se esta cena pode funcionar isoladamente enquanto jogo de olhares, desejo, representações, exercícios de identidades masculinas e femininas, e poderes, no interior da continuidade do Diário ganha outros contornos diferentes - está depois do fim da relação com Lili, está antes da cena de “flirt” e da história imediata após esta. Tratar-se-á essa segunda personagem feminina da modelo? É o sonho sexual memória ou projecção/desejo?
Não há aqui uma atenção sobre essa relação Marco-Lígia de uma maneira analítica ou clínica como ocorre em outros autores tais como Jeffrey Brown, Joe Matt, ou outros, mas antes uma sua dissolução líquida no resto da vida (tal como representada em Diário rasgado - a vida com os colegas em casa, a vida profissional, a vida familiar, a vida quotidiana), como se fosse o seu sangue. É essa ausência que marca um espaço de luto que influencia as outras cenas e episódios, inclusive aqueles que isoladamente poderiam não ter qualquer ligação a esse centro (“Águas passadas”, “Domingo à noite” “Jantar”, e, claro, “Afrodite”). Há um outro tema que poderia eventualmente ser o imo, deslocado, desta obra, patente na história “Saudade”, e explorada noutras histórias não incluídas no livro, mas essa é uma via de análise que pede tempo, e também a suspenderemos. Assim sendo, e mais uma vez à luz dos Trauma Studies, o livro pode ser visto como funcionando enquanto processo de “cura”, de transformação da memória dessa(s) relação(ões) e momentos em texto e, uma vez existindo enquanto texto, passível de ganhar um “fecho”. Este, curiosamente, e reforçando a ideia de arco narrativo convencional, não é mais do que um regresso à mesma situação do início, de jovens adultos de uma geração “à rasca”, dividindo a casa e abandonando-se a prazeres banais de álcool, drogas, saídas nocturnas e sessões de observação do sexo oposto e de comicidades chãs (mas que podem ser vistas como uma resistência política à seriedade, hipócrita, que os poderes instituídos parecem obrigar qualquer discurso a subsumir-se, isto é, para que haja diálogo tem de haver uma submissão a certas “regras de direito à voz”).
Nessa esteira, é mesmo importante compreender igualmente como o autor não dispensa a inscrição do seu contexto político-social. Aliás, como havíamos visto na apreciação a um seu desenho avulso - mas que pode perfeitamente ser encaixado no “Poema contínuo” da sua obra -, essa é mesmo uma dimensão da maior importância neste autor, mesmo que não seja alvo de uma discursividade explícita. Ainda assim, se isolarmos as vezes que as personagens se referem aos seus empregos, as suas expectativas profissionais, carreiras, situações económicas e sociais, ou fazem comentários (mais ou menos valorizadores, mais ou menos de juízo, mais ou menos cómicos) sobre os outros - que podem ser tanto representantes de uma certa ideia de normalização social como outros tantos párias, no cômputo final emergirá uma certa ambiência política que se nutre por valores de esquerda, de descontentamento com os discursos de um suposto “sucesso” ou “empreendedorismo necessário”, e as “inevitabilidades económicas” em que parecemos habitar na contemporaneidade capitalista.
De certa forma, Marco Mendes está na esteira de uma tradição artística que pode remontar a Courbet, no sentido em que não pretende idealizar ou embelezar a realidade, mas tentar capturá-la tal como ela é. Obviamente, que, estando num momento mais avançado da produção artística, a discursividade necessariamente pós-moderna de Marco Mendes impede-o de ter uma aproximação ingénua a essa mesma realidade, sabendo como o desenho, a sua estruturação estilística, as suas opções por uma materialidade opaca, com um peso visível, a sua consequente manipulação nas estruturas significativas da banda desenhada (mesmo que sejam as contínuas e simples grelhas de quatro vinhetas), como tudo isso enfim são gestos específicos, contidos, conscientes de transformação dessa tal “impressão da realidade” numa tessitura com significado próprio. A realidade, sento inatingível nela mesma (o númeno), é passível de ser constituída através dos instrumentos expressivos e artísticos do autor, de maneira a que mesmo a sua suposta abordagem “documental” acaba por se revestir de um sentido estético. Ainda assim, a realidade criada por Marco Mendes tenta dar a ver, devolver ou recriar uma certa ideia de genuinidade. A ironia em relação aos seus espaços de vivência, à sua auto-representação (por mais filtrada que seja), a “sujidade material” dos seus desenhos (mesmo que haja algum trabalho de “limpeza digital” que afaste das materialidades dos desenhos originais, tema debatido no próprio livro), e até mesmo a integração de elementos de fantasia na “vida real” são os factores que contribuem para essa qualidade de genuíno. A despreocupação para com a camada imagética - as rasuras sobre textos, os contornos de certas personagens corrigidas, os riscos rápidos para marcar sombras ou volumes, as manchas de corrector enquanto corrector (pois pode ser usado com outros fins), a não-limpeza “para fora” das molduras das vinhetas, a marca da fita-cola nalguns locais - pode até ser pensada, ou pelo menos fará parte dos instrumentos expressivos específicos deste autor, mas por essas mesmas qualidades, que contrastarão com uma certa ideia clássica, metódica e “limpa” de criar banda desenhada (uma forma artística que preza a revisitação do material original para o seu tratamento final para reprodução), aproxima-se desses valores de genuinidade. Lembra mesmo aquela metáfora de Walter Benjamin em “O contador de histórias”, na qual fala da marca que fica no texto de quem conta a história, como a marca deixada no barro pelas mãos do oleiro (esse ensaio tem outras determinações que seriam úteis na exploração deste livro de Marco Mendes, mas suspenderemos essa discussão por agora).
No entanto, é preciso ter-se muito cuidado para que não se confunda essa noção de “genuíno” com a da “verdade”, a tal qualidade numénica, real, dos eventos e das coisas. Esse seria um caminho não só improdutivo como perigoso, passível de se formar numa questão colocada ao autor: “isto foi mesmo assim?”, “esta pessoa disse isto?”, etc., remetendo de novo para a nota inicial. Não deixa de ser significativo que a história inicial, “Evereste”, mostre o ensejo de escalar essa montanha para ver melhor o mundo, como uma figura isolada e heróica à la Caspar David Friedrich, mas todo o livro nos mostre antes uma outra perspectiva, mais ao rés do chão, menos cume, que ainda assim é capaz de observar a natureza do mundo, o trabalho e os dias, devolvendo-nos um certo rosto.
Mais uma palavra sobre a materialidade, precisamente no que diz respeito a essa genuinidade. Além do que foi dito, este estilo “ruidoso”, por assim dizer, permite que jamais se naturalize a camada visual, impedindo-a de se tornar num filtro transparente, ilusório, que fosse capaz de parecer transmitir “a verdade”. é pela sua constante mutação, tactilidade, incompletude clássica e materialidade suja, pelo cruzamento de abordagens visuais num mesmo plano de composição ou entre páginas, que deixa surgir o “Sem expressão” (Ausdrucklose), um outro conceito fulcral de Benjamin, em “As Afinidades Electivas de Goethe”: “No sem-expressão, surge a violência sublime do verdadeiro”, acrescentando ainda o filósofo que é nele “que se perfecciona a obra quebrando-a, para fazer dela uma obra fragmentada, um fragmento do mundo verdadeiro, o torso de um símbolo”. Benjamin refere-se, como se tende, ao romance de Goethe, que se apresenta como um todo coeso e de estrutura límpida. O grau fragmentário de Diário rasgado é por demais óbvio, mas não diz só respeito a uma condição contemporânea de produção, que se forma num contexto criativo que o aceita como tal: ele não procura disfarçar essa mesma condição, assume-a.
E de facto, um outro aspecto recorrente nas narrativas desta natureza é a sua qualidade fragmentária, de desordenação narrativa (no sentido de organização que obedece a eixos temporais e causais normativos), e que permite vários tipos de recombinação - que se verifica, como veremos - e ritmos discordantes. Seguindo uma lição de E. Ann Kaplan, tratar-se-ão de “narrações sem narratividade” (Trauma Culture, pg. 65). Modos tais como a intervenção de cenas oníricas, fantasiosas, interrupções da linearidade temporal com analepses, por vezes súbitas, a circularidade (sublinhada pela ideia de recombinação), um humor quase histérico por vezes, o emprego de estratégias claramente transferidas de géneros convencionais (menos observáveis nas escolhas deste livro, todavia) fazem parte desse desarranjo, ou de uma terceira camada de dissociação. A recombinação dos trabalhos é notória, quer se se fizer um contraste com a antologia anterior (Pandas) quer se se tomar em atenção as datas de produção e primeira publicação e o lugar que essas unidades tomam agora no livro (bastará olhar para as datas para ter uma sua primeira impressão, ou algumas das indicações no final do volume). Uma compulsão da “obra completa”, do “Poema contínuo”, e das escolhas efectivas, poderá revelar-se muito significativo. Por exemplo, a ausência de uma história como “Pesadelo”, da economia tão central do livro, colocará questões muito produtivas. Seja como for, o autor reutiliza alguns dos seus trabalhos anteriores e subsume-os formalmente a uma regra quase perene, a das quatro vinhetas, como se desejasse impor um outro tipo de coerência ou de continuidade, a qual por sua vez faz menção a uma tradição específica à banda desenhada, a saber, a das tiras cómicas (sobretudo na sua forma influente à la Schulz), ainda que as “punchlines” e as elipses sirvam para desregular as expectativas do humor, e da melancolia.
Isto demonstra como mais importante que uma suposta “verdade” está a formação, a criação, de uma impressão de genuinidade da experiência desta(s) personagem(ns), com a qual podemos encontrar empatias, a qual reserva os lugares do sujeito que lê e do sujeito que é lido, respeitando a diferença intransponível, mas cuja experiência em segunda mão se pode revelar gratificante, enriquecedora, interpelante, interrogadora, ou outros afectos possíveis.
Marco Mendes, trabalhando no interior de uma economia de géneros que pode dar pelo nome de “alternativa”, vive num espaço de negociação de um equilíbrio tenso, entre a abdicação das “ficções dominantes” (expressão de Kaja Silverman), mas mesmo assim preservando alguma ideia de coerência narrativa - a presença de personagens recorrentes, a possível identificação de um eixo espácio-temporal minimamente reconhecível, coeso e agregador da diegese, o estabelecimento de relações de continuidade entre cada “fragmento” de maneira a permitir uma leitura contínua. Mais, a própria possibilidade de recombinação leva a pensar na procura incessante - e na possibilidade de novos relançamentos - de uma coerência sempre em construção.
Nota final: apesar de indicarmos a Mundo Fantasma como editora, é necessário indicar que se trata de uma co-edição com a Turbina e o colectivo A Mula; agradecimentos ao autor e à editora pelo envio do livro.
Publicada por Pedro Moura à(s) 2:38 da tarde 12 comentários
Etiquetas: Autobiografia, Portugal