14 de outubro de 2014

Terminal Tower. Manuel João Neto e André Coelho (Chili Com Carne)

Uma das preocupações dos autores e dos editores foi deixar claro o processo de fabricação deste livro, o qual, em vez de seguir uma mais costumeira organização, e até mesmo hierarquia, de papéis criativos, entre um texto primário seguido por imagens que a consolidem concretamente, houve antes uma tecedura a par e passo entre ambos os autores. Séries de imagens mais ou menos narrativas criadas pelo artista, articuladas com citações de vários autores que compõem uma constelação cultural mais ou menos coerente pela sua aparente anarquia de referências – escritores como Thomas Pynchon e William Blake, filósofos como Peter Sloterdijk, filósofos-escritores como Maurice Blanchot, estrategas como Giulio Douhet, e homens de uma ciência mortífera como Robert Oppenheimer – e diálogos densos (tudo em inglês), se não mesmo obtusos, como se não tivéssemos sido convidados para escutar as conversas em curso, compõem os quadros (ou capítulos) desarticulados de um mundo marcado por limites que jamais identificaremos de modo decidido e final. (Mais) 

O livro abre com uma paisagem montanhosa onde um cume dá lugar a uma torre isolada, levantada contra um céu nocturno. Haverá algum tipo de transição entre uma e outra que permita uma relação entre esse objecto natural e o outro, artificial? Transformou-se a montanha em torre? Deveremos entender esta segunda como fabricação do homem de uma estrutura antrior? Trata-se simplesmente de um “movimento de câmara”? As páginas finais mostram uma das personagens, no interior da Torre (decrépita já, ou ainda em funcionamento? E qual é esse funcionamento?), a queimar qualquer coisa. As labaredas acabam por tomar conta de todo o espaço compositivo, até queimarem o próprio espaço do livro, abandonando-nos nos terrenos baldios, semi-floridos do campo circundante. Haverá algum tipo de arco temporal a ser descrito entre uma e outra cena? Ou estaremos presos a uma espécie de “Zona”, à la Stalker? Existe uma área na qual as coisas sucedem com um comportamento diferente do resto do mundo, e jamais compreendemos as razões disso. Neste caso em particular, conseguimos entrar na Torre, mas essa proximidade não é sinónimo de compreensão.

Se o trabalho de André Coelho é já conhecido pela seu sólido sentido de composição, os desenhos aqui ganham uma maior soltura, trabalhando com o que parece ser ou aparo ou pincel meio-seco para criar figuras esquálidas e de rápida execução, depois sepultadas por um denso trabalho de cobertura com tramas, linhas paralelas e manchas de tinta salpicadas, mas é possível que use outras técnicas como grattage e frottage, e existem intervenções pontuais, sem dúvida, de colagem de fotografia, papéis recortados, papéis déchirés, já para não falar de manipulação de fotografias, lápis e apontamentos de cor. Dessa forma, não podemos dizer que o autor siga apenas uma técnica de desenho, e as figuras humanas e objectos vão surgindo nas mais variadas prestações, contornos e densidades. Essa variação é também verificada, como vimos, nos textos, que menos do que uma unidade, se apresentam antes como blocos singulares. Isto não quer dizer que não haja uma “história” entre todos os capítulos. Até certo ponto é possível arrancar uma sinopse destas páginas: um funcionário da torre, PKE 632, aguarda outra figura, Big Ivan (não inocentemente a alcunha de uma bomba de hidrogénio), que eventualmente chegará à torre, e ambos discutem as funções misteriosas desse equipamento. Talvez tomem conta de um sistema de vigilância, ou de controle de uma zona de desastre, ou contribuam para a sua manutenção. Não há plano, não há futuro, apenas ma paisagem desolada à sua frente. E aquela paisagem que Big Ivan atravessara na sua viagem de comboio foi real? Corresponderá a uma travessia verdadeira na parte que sobreviveu, naquele mundo, a um desastre pós-apocalíptico?

Num dos livros citados pelos autores, L'écriture du désastre, Maurice Blanchot escreve o seguinte: “...o desastre é desconhecido; é o nome desconhecido para aquilo que no próprio pensamento nos dissuade de pensar sobre ele, deixando-nos sós, ainda que na sua proximidade. Sozinhos, e dessa forma expostos ao pensamento do desastre que importuna a solidão e faz transbordar toda a sorte de pensamento, como a intensa, silenciosa e desastrosa afirmação do exterior”. Não é surpreendente que os autores utilizem uma citação do mesmo livro no capítulo final, em que uma das personagens - até certo ponto elas parecem ser comutáveis – ateia um fogo (derradeiro? Universal?), em que um deastre inominado se encontre com outro.

A travessia desta estranha e elíptica narrativa é ainda habitada por outros corpos: corvos e abutres, mortos e vivos, insectos que se enrolam sobre si mesmos transformando-se em objectos voadores não-identificados, máquinas de guerra inertes na paisagem desolada, resquícios de um mundo industrial, burgueses auto-complacentes em comboios de luxo (ecos de Transperceneige?), uma mulher nua reduzida à sua condição carnal e objectual, um homem severamente deformado ao ponto de se diluir no que parece ser um coração desfeito, e depois um rio de sangue. Se as imagens surgem separadamente, também seria possível lê-las numa sequência de transmutação metafórica, acompanhada pelo ritmo dos textos, listas de ingredientes, ou descrição objectiva da destruição.

As receitas de químicos e materiais, numa profusão de termos técnicos específicos, recorda ainda alguns exercícios de Ilan Manouach e outros autores, em que uma suposta linguagem o mais objectiva possível, sendo apresentada num contexto totalmente deslocado e acompanhado pela materialidade das imagens e em relações texto-imagem inesperadas, atinge uma dimensão poética tumultuosa, que obriga o leitor a tentar coordenar elos vários, nenhum dos quais possivelmente o correcto, mas cujo objectivo é mais atingido pelo movimento de tentativa do que por uma conclusão conquistada.

Os autores ainda colaboram entre si em projectos musicais como Sektor 304 (que nos atreveremos a descrever como “metal industrial”, mas é possível que não acertemos na mosca), e é tentador metaforizar a colaboração do livro como uma composição musical sob a forma do jam, em que cada um dos passos e fraseados de um deles é respondida pelo outro com uma variação ou uma inflexão que serve para complementar e sustentar a primeira contribuição, e assim sucessivamente, esperando-se que as várias travessias por ritmos e melodias, mesmo que não aparente de imediato, se subsuma numa harmonia final, mesmo que esta seja disruptiva em relação às mais costumeiras linguagens (musicais e de banda desenhada, neste caso). E é isso o que sucede com Terminal Tower. Um dos aspectos positivos dessa conquista é que não parece estarem os autores interessados em subsumir essa construção numa narrativa maior, onde as coisas “pudessem fazer sentido”. Não há nenhuma fórmula ou solução final que “esclareça” o nítido "caos" de referências, o "empilhamento" de ambientes e promissoras, mas jamais testadas e acabadas, linhas narrativas. Isso seria mesmo trair a impressão final, vaga, morbígera, incómoda que Terminal Tower cria. É um mundo estranho que tem lugar à nossa frente, que testemunhamos sem que jamais façamos parte dele. Sem empatia. Nutrem-se assim emoções “feias” face à diegese fantasmática que nele se desenvolve.
Nota final: agradecimentos à editora, inclusive pelo envio de alguns ficheiros digitais (os quais usámos, com excepção da capa), que possuem um brilho e cor que não corresponde totalmente à versão final publicada. 

4 comentários:

manuel j. neto disse...

Caro Pedro Moura,
queria agradecer-lhe o belíssimo e lúcido texto que dedicou ao nosso livro.
Permita-me um reparo apenas. Julgo que as expressões "caos de referências" e "empilhamento de ambientes" não são consonantes com a própria interpretação que o Pedro Moura fez do livro. Parece-me que a sua crítica, densa e complexa, ao Terminal Tower, bem cmo o domínio das referências visuais e textuais nele presentes, revela da sua parte uma compreensão dos nossos propósitos - ou seja, a tentativa de não "encerrar" a narrativa (indo assim de encontro, como o Pedro Moura assinalou, ao ensaio de Blanchot acerca da impossibilidade da inscrição e incognoscibilidade do desastre) e também de criar uma cosmologia discursiva capaz de amplificar os sentidos, os vários níveis de "realidade" e a visão poética já contidaos nos próprios desenhos. Não querendo ser juíz em causa própria, tenho a convicção que, apesar do seu hermetismo, inconclusividade e complexidade,e não obstante os seus defeitos e fragilidades, o texto do livro será tudo menos aleatório ou caótico.
Feita esta nota, não queria terminar sem deixar de escrever que este seu ensaio é para mim um exemplo de pensamento crítico sério sobre, neste caso, banda desenhada e um texto que, apesar da sua falta de "empatia" com o Terminal, é um contributo muito valioso à sua compreensão e dignificação.
Com os meus melhores cumprimentos e um abraço
manuel joão neto

Pedro Moura disse...

Olá, MJ Neto,
Agradeço muito as tuas palavras (passemos esse obstáculo), que muito me honram. Numa segunda leitura, mais distante do texto, entendo porque fales de falta de "empatia", pois de facto o tom é algo seco, mas isso não se deve a qualquer tipo de animosidade contra o livro. Bem pelo contrário, e até provado por um historial particular, aprecio muito experiências que tentam alguns dos limites da forma e não receio as ambivalências de sentidos e o abraçar da irresolução.
Penso que as expressões que apontas são claramente empregues num sentido superficial, que é totalmente negado precisamente pelo objecto na sua totalidade - este é, em especial, um objecto que deve ser tomado na sua totalidade e não como uma flecha linear que se vai explicitando - e é por isso que sublinho no final as "promissoras, mas jamais testadas e acabadas, linhas narrativas". Quer dizer, elas estão lá, prometem um novelo, mas negam-se à tentativa, digamos policial (final, de causalidade estreita, "explicativa"), de a encerrar numa forma definitiva.
Realmente, discutir banda desenhada (ou outro descritivo que se desejasse) sob os auspícios de Blanchot não é o exercício mais usual de pensamento, pelo menos na nossa praça, mas o modo como ele aponta para a forma o desastre, nesse seu entendimento, é aquilo que nos impede sequer de colocar questões organizadas, como aquilo que nos tira o tapete de todas as categorias, é uma potência precisamente para expandir, cada vez mais, o território criativo desta área.
Obrigado e um abraço de volta,
Pedro

manuel j. neto disse...

Caro Pedro Moura,
se fiz referência àquelas duas expressões em concreto é porque me parece que elas atentam contra o próprio texto, havendo nelas ecos de um facilitismo crítico muito habitual em Portugal e não só - quando o teu ensaio sobre o livro é precisamente o oposto desse facilitismo. Mas também porque há nelas algo de sintomátio porque, apesar de o livro não ter sido objecto de muitas recensões, sinto que essa é uma crítica recorrente a este trabalho - incmpreensibilidade, hermetismo, pós-modernismo (no sentido pejorativo do termo, que é o mais corrente). Como se a banda desenhada não pudesse ser mais do que um plot ilustrado por desenhos em vez de uma mera linguagem ou forma de expressão artística ou, como dizes, uma potência de expansão do território criativo.
A problemática dos limites da forma é, de entre todas, e na arte em geral, a que menos me interessa pessoalmente. A forma é instrumental, serve um propósito discursivo ao qual este se pode adapatar ou não - o que quer dizer que, à partida, nada me move nem a favor nem contra os formatos mais clássicos e, por maioria de razão, os mais experiemtais. Na ressaca de todas as vanguardas e na era da horizontalidade absoluta, talvez a forma seja um mero veículo de expressão, já muito desligada da questão do conteúdo e das ressonâncias de sentidos e emoções nele contidos.
Mas essa seria uma outra conversa.
Obrigado novamente pelas tuas palavras e um abraço.
manuel

Pedro Moura disse...

Nesse caso, farei uma correcção no texto: para além do "esclareça", coloco entre aspas essas outras expressões, para deixar claro que eu próprio consideraria essa abordagem apenas um primeiro embate superficial, que não procura, ou é mesmo incapaz, de ir além dessa fuga de estruturas mais normalizadas para encontrar ritmos mais dilatados e modos de estabelecer sentidos mais complexos.
Seja como for, agradeço a atenção, como sempre.
pedro