Saberão aqueles que me lêem, e me conhecem, que é muito lento e paulatino o processo que me tem levado à escrita sobre banda desenhada, e que muitas vezes passa por experimentalismos vários, metodologias mais inflexíveis aqui (ensaiando-as), pensamentos mais livres ali. No entanto, é nessa busca, nesse esforço nem sempre coroado de êxito – algumas das aproximações que fiz sinto-as não só ultrapassadas, como até mesmo erróneas -, que se vai formando uma Ideia. Quando escrevi um artigo sobre a ausência de uma verdadeira crítica da banda desenhada em Portugal, salvo raras mas iluminadoras excepções (cada uma com as suas qualidades e fraquezas), fui acusado directa ou indirectamente de várias coisas, mas quase todas falhando o alvo da crítica possível: o meu pensamento. Ainda hoje, e como a outros autores de pensamento sobre a banda desenhada, acusa-se de “intelectuais”, por querermos articular a produção da banda desenhada num mais amplo património cultural, num mais vasto panorama artístico; de “chatos”, por aqueles que simplesmente têm falta de tempo, esforço ou até mesmo capacidade em tentar gerir mapas de leitura e cruzamentos de referências; “desinteressantes” e “desnecessários” por aqueles que julgam a banda desenhada uma espécie de feudo que devem defender até à morte, pois o que defendem é o seu pequeno saber, a sua pequena paixão, a nostalgia de roupão, a fantasia infantil que ainda não se transmutou em vida adulta; “polémicos”, como se todos devêssemos caminhar num rotundo, monástico silêncio, um respeito boçal pelos “grandes autores”, e não levantar ondas, e como se não fossem os “escândalos” (vejam a etimologia da palavra) precisamente o dispositivo que nos ajuda a saltar e avançar. Entendo, assim, que os anti-intelectuais me achem chato, desinteressante, polémico e até mesmo intelectualóide. Mas não poderão jamais negar que procuro construir uma pensamento mais ou menos articulado sobre a banda desenhada, nos seus mais variados avatares, nas suas transmutações várias, nos mais variegados azimutes de géneros e inclassificáveis, produção e fruição, objectivos e estruturas. E aceito a discussão aberta de todas e quaisquer afirmações que faça. Nem todos os artigos deste blog primam pela melhor qualidade, nem são todos do mesmo tom. Alguns são pequenos reparos, outros mais seriamente articulados, outros ainda pequenos fait-divers do momento, quase inconsequentes. Mas gostaria que no geral eles contribuíssem para um entendimento de que é possível, e até mesmo necessário para a evolução do entendimento da banda desenhada num termo mais geral, num discurso sobre esta arte. Não são os artistas que aprenderão com estes textos (compete-lhes simplesmente criar, melhor ou pior), nem os editores (que continuarão a gerir-se necessariamente por outras estratégias), nem os fãs (que continuarão a pautar-se pelas pulsões e inclinações que lhes saem do corpo e espírito). Mas poderão ajudar, eventualmente, a leitores usando de um certo discernimento, ou a quem pretender debater as questões que poderão surgir no seio deste modo de expressão. Poderão. Ou não. Mas a efectividade dessa estratégia só se nega ou confirma pela discussão séria, balizada e calma, não pelo bate-boca. Agora só falta dizerem que esta invectiva segunda não é mais do que a jactância e amor-próprio. Quer dizer, é, claro, mas onde é isso negativo, quando se tenta assumir a possibilidade da actualização discursiva?
O meu problema com muito do que se escreve nos jornais sobre banda desenhada não é o facto de serem más críticas (mas boas peças de jornalismo). É o facto de se quererem por vezes passar por instituidoras de um juízo de gosto quando não passam por qualquer critério, princípio, ou pressuposto teórico-metodológico. Partem da circunstancialidade e da doxologia, e nela se ficam e se resumem. Não citarei nem nomes nem excepções, pois cada um saberá de quem falo, quem incluo num grupo e noutro, e o barrete servirá a quem o aprouver. Há quem escreva bem, informativamente, que faça excelentes cruzamentos de referências, aponte linhas de força indubitavelmente produtivas, avance propostas fulgurantes de interpretação ou de valor estético. Sem dúvida. E também há quem se resuma a dizer as mais crassas banalidades sobre “os quadradinhos” e as mais patéticas confissões d’alma, como se movendo o (seu) leitor pudesse altear um qualquer valor intrínseco do livro ou obra, artista ou escritor de quem fala. Aqui é que reside a mais grave e frágil crise da esmagadora do que se produz em termos de pensamento da bd: a falta de uma Ideia. Não é a falta de “Ideias igual à minha”, atenção. Não sou assim tão obtuso. Há quem escreva e se paute por linhas diferentes da minha, mas que, como Voltaire, defenderei até à morte o seu direito de as dizer. Para já porque essa divergência contribui para que eu próprio pense numa outra direcção, e exista um diálogo de contraditórios salutar. É a falta absoluta de uma Ideia que articule o assunto ou objecto de que essa determinada pessoa pretende falar ou escrever.
Existe toda uma História, toda uma História da Arte e das Artes, da Literatura, e que mais outras disciplinas filosóficas, metodológicas, científicas, contributivas ao pensamento estético... Não penso que é necessário saber-se “x” ou “y” para se escrever sobre banda desenhada por exemplo, saber-se muito sobre cinema húngaro ou assinar-se a October), mas penso que é imperativo que exista uma qualquer linha de fuga do pensamento para que ajude o autor a escrever. Pois essas linhas são o que provocarão as ligações necessárias ao entendimento sobre a banda desenhada e à articulação do pensamento próprio.
Ora, o grande problema do Roteiro Breve da Banda Desenhada em Portugal é precisamente por primar pela falta de uma articulação desse tipo. O objectivo, sejamos francos, é atingir um público muito vasto e com um interesse tangencial pela banda desenhada, não directo. O livro não é barato, fazendo parte dos volumes que os CTT editam como objecto de coleccionismo filatélico, cujos interesses específicos podem ou não coincidir com este tema particular, equiparável a, por exemplo, “O azulejo português” ou “As telecomunicações em Portugal”; é um volume portanto acompanhado pelos selos a coleccionar. O texto de Carlos Pessoa, reconhecido jornalista do Público, serve para ilustrar uma ideia muito geral sobre a banda desenhada, que é corroborada por um grafismo mais de rápida consulta que de análise. Se levarmos cada uma das palavras que compõe o título literalmente, então este livro cumpre na perfeição esse mesmo objectivo. Não é mais que um roteiro – pois não se aproxima de modo algum com as obras de História da Banda Desenhada (portuguesa ou em Portugal) existentes no mercado -; é de facto breve - mesmo ao nível das frases, informativas, directas, e que resumem a apreciação à adjectivação ou meia dúzia de epítetos -; e são poucos os passos onde se fazem associações com um panorama mais geral, para além do nacional. Repito-o, para o objectivo proposto, está cumprido e não há nada a dizer.
No entanto, esta seria uma oportunidade em que uma tamanha plataforma visível, nas mãos de um autor respeitado e responsável, se poderia tornar num excelente instrumento de sedução, de divulgação até de um leque, mesmo que reduzido, significativo dos valores mais fortes da banda desenhada portuguesa. Mas isso não é feito. É uma espécie de resumo de outras publicações mais densas, de História (mas que também é discutível, pois as mais das vezes são meros repositórios cronológicos de informação, sem quaisquer considerações sociais, culturais, filosóficas), numa espécie de acumulação de datas, nomes e dados, como se nessa própria folia acumulativa se esperasse que nascesse um qualquer sentido.
O facto de se tratar de uma edição de divulgação também não é desculpa, pois bastará, nesta mesma colecção, consultar o volume dedicado ao Padre António Vieira, de Aníbal Pinto Castro. Este autor reconhecido, filólogo e Professor especializado na Literatura Portuguesa apresenta nesse dito volume um texto, ainda que mais simples em relação aos seus artigos e obras académicas, estudos e introduções, ainda assim articulado por uma ideia. Não se restringe, portanto, a um “apanhado” ou a uma “súmula”, mas sim a uma reconsideração de forma a apresentar o seu objecto de um modo específico e interessante conforme aos fins do meio em uso. Não é, infelizmente, o que sucede no livro aqui estudado.
Há outros problemas mais discutíveis, com um gritante caso para a banda desenhada contemporânea portuguesa, dadas as escolhas, focos, ausências, presenças, falhas em canalizar a informação ou ser-se mais equilibrado, mas lá está, a desculpa do espaço, dos objectivos, e outras estarão sempre em frente neste tipo de fragilidades. Gostaria de dizer que se esperava mais, mas na verdade, tendo em conta o trabalho desenvolvido por Carlos Pessoa, e outras publicações anteriores, é precisamente uma apresentação crua, factual e pouco articulada em termos de conceito e reflexão que se previa.
Última nota: Não entendam nada disto pela maldade. Abomino o ataque pessoal. Eu não conheço pessoalmente Carlos Pessoa, e imagino tratar-se de uma pessoa afável e, seja como for, enquanto cidadão livre e pessoa, merece todo o respeito da parte de todos. O que aqui escrito está é em relação ao livro, aos textos apresentados, à metodologia (ou falta de) que segue. Se bem que se trate possivelmente de um livro interessante, coleccionável, e até uma bem disposta e descontraída introdução a quem nada sabe da banda desenhada portuguesa, e cujo propósito não poderia ser mais claro e objectificado no título, é praticamente ineficaz para quem deseje aprofundar os conhecimentos, até mesmo em termos factuais. E para quem busque algum tipo de instituição de análise, que permita um primeiro movimento de divisão em elementos analisáveis, para passar a uma analogia e, finalmente, a uma sucessão que leve à síntese, Roteiro Breve da Banda Desenhada em Portugal é nulo. Li outros artigos sobre a mesma publicação, onde a linguagem às vezes não é mordaz mas mordente. Ainda que possa concordar com pontos assinalados nessoutros textos, não assino esse tom público da discussão.
6 de novembro de 2005
Roteiro Breve da Banda Desenhada em Portugal. Carlos Pessoa (CTT)
Publicada por Pedro Moura à(s) 2:51 da tarde
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3 comentários:
ena ena... então eis aqui a minha mini-descrição/opinião:
http://gentebruta.blogspot.com/2005/10/roteiro-breve-da-banda-desenhada-em.html
Estou a fazer uma pesquisa sobre a presença do português do Brasil em Portugal. Para o efeito, parece-me importante referir a venda, em Portugal, de revistas da BD Disney publicadas no Brasil.
Já consegui saber que passaram a ser publicadas em Portugal, e em português de cá, em 1980. Também sei que começaram a ser publicadas no Brasil, em 1950.
Será que me consegue ajudar a saber em que ano as versões brasileiras começaram a ser comercializadas em Portugal? Algures na década de 1960?
O Roteiro do C. Pessoa também não dá resposta.
Paulo
info@mercuriotic.com
Caro Paulo,
Se bem que existam pessoas específicas que poderão responder-lhe com maior precisão do que eu, e poderei ajudá-lo a contactá-los, aconselhava uma visita e pesquisa cuidadosa num site indispensável:
http://www.bdportugal.info/
Obrigado,
Pedro Moura
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