1 de março de 2009

A Comics Studies Reader. Jeet Heer e Kent Worcester, eds. (University Press of Mississippi)

Este volume é a segunda antologia destes dois editores, depois de Arguing Comics, que reúne textos de várias proveniências incidindo sobre a banda desenhada enquanto território digno da discussão intelectual e académica; aliás, como o próprio título indica, a perspectiva editorial deste volume é mais restrita em relação ao anterior, focando exclusivamente – ou quase – em perspectivas que advêm de um ambiente académico (isto é, textos integrados numa qualquer disciplina com a sua própria história teórica e prática). (Mais)

Para quem segue com menor ou maior regularidade a bibliografia (crescente a um nível exponencial) académica referente à banda desenhada, talvez este livro não traga grandes descobertas, com algumas excepções, mas em termos de livro propedêutico, de uma espécie de manual de primeira abordagem, tal como aquele de Ann Miller, é excelente.

O livro está estruturado por temas gerais, a saber, 1. Considerações Históricas, 2. Técnica (“Craft”), Arte, Forma, 3. Cultura, Narrativa, Identidade, 4. Escrutínio e Avaliação, em torno dos quais se agregam as colecções de excertos de obras maiores ou artigos referentes aos mesmos.

A primeira parte conta com textos do incontornável David Kunzle, Robert C. Harvey, (um retorno ao histórico) Gilbert Seldes, um excerto do famoso Seduction of the Innocent, de Fredric Wertham, que levou à “perseguição” aos comics de terror e crime dos anos 50, uma análise dessa mesma situação por Amy Kiste Nyberg, explicando-se o advento do Comics Code e do ataque quase específico ao império de William Gaines, da EC Comics, um excelente texto sobre Peter Coogan, autor do recente Superhero: The Secret Origin of a Genre, no qual se define a ideia (e função actancial) de super-herói (sendo um dos aspectos a fortíssima iconicidade do símbolo identificativo do super-herói, precisamente o que acontece nesta prancha desenhada por Cassaday para uma personagem que nem é preciso nomear), um estudo comparativo entre a vida e obra de Scott Fitzgerald e Charles Schulz, de M. Thomas Inge, e um breve mais importante apanhado do importante John A. Lent, editor do IJOCA, sobre a contínua discussão sobre as origens da banda desenhada em termos internacionais. Com a excepção deste último artigo, todos os textos focam sobretudo a banda desenhada norte-americana, o que não se pode imputar como desacerto, incorrecção ou fragilidade. É a sua circunstância. A esmagadora maioria dos textos de todo o volume salienta este centro de produção, com pontuais excepções do Japão, do Reino Unido, da Europa francófona....

A segunda inicia-se com uma discussão da ideia de caricatura ou cartoon de David Carrier, em que este elege Gary Larson como exemplo de estudo. A obra da qual este excerto é retirada, The Aesthetic of Comics, teve muitas (justas) críticas quando da sua publicação, e este texto em particular apresenta uma das fragilidades dos argumentos de Carrier, que menos têm a ver com a sua análise do tempo como a ausência de uma distância maior dos seus argumentos. Diz ele que mesmo um desenho humorístico como o de Larson, em que não existe sequencialidade da imagem, há porém uma ideia de tempo futuro, uma vez que todas as anedotas interrompidas no momento-chave nos fazem rir daquilo que ocorrerá logo a seguir. Mas será isso verdade? Afinal, usualmente não pensamos no que sucederá ao gato com precisão neste gag de Larson, mas é a própria interrupção e suspensão, a abertura ao não-cumprimento dessa tragédia e à imaginação aquilo que suscita o humor. É por essa razão que a animação de The Far Side não funciona. Thierry Groensteen é aqui presença obrigatória, com a sua discussão sobre a solidariedade icónica, o cerne teórico do seu Système de la Bande Dessinée. O mesmo se passa com as discussões de Charles Hatfield, Joseph Witek (o único ensaio original do livro), Pascal Lefèvre e Robert S. Petersen (sobre a banda desenhada japonesa), que mais importante do que nos fornecerem com uma definição cabal e fechada de banda desenhada, nos proporcionam com vários caminhos de a pensar, e de a abrir à análise. Pois este é que é o fito de todos estes textos: proporcionar uma forma de pensar analiticamente (ou criticamente, se preferirem) a banda desenhada, trabalhando sobre ela enquanto disciplina artística e plataforma da experiência humana, mais do que mero depósito de “sonhos” ou “fantasias” (se bem que essas dimensões possam ser precisamente o que está sobre o estudo do investigador).

Para além destes autores, todos eles conhecidos investigadores de banda desenhada (especificamente ou não), acrescenta-se o nome de W. J. T. Mitchell, um famoso teórico e historiador da cultura dos meios de comunicação social, comunicação visual, iconologia e hermenêutica visual e literária e, acima de tudo, e eis o cerne do excerto de Picture Theory neste volume, as possíveis relações e cruzamentos entre texto e imagem. Praticamente todos os livros (adivinho) de Mitchell têm lições a aproveitar por quem se dedica ao estudo da banda desenhada, mas este texto cita exemplos directamente deste território: Doonesbury, The Dark Knight [Returns]…

Os capítulos referentes aos temas de Cultura, Narrativa, Identidade são preenchidos por Roger Sabin, Martin Barker, Anne Rubenstein (com um curioso estudo em torno da historieta mexicana de amor), Bart Beaty, Adam L. Kern e Fusami Ogi. Como é de esperar, estes textos centram-se em casos de estudo, análises detalhadas e exemplos concretos de obras, como ponto de partida ou desculpa para uma abordagem que se prevê aplicável a outras bandas desenhadas, ora complementar ora contrastivamente. Beaty discute a autobiografia enquanto campo específico e recente na banda desenhada europeia (o que é natural, já que a obra de que se aproveita o texto, Unpopular Culture: Transforming the European Comic Book in the 1990s, discute essa cena circunscrita), logo, discute mais uma continuidade, uma tradição, do que um só exemplo… Kern, autor de Manga from the Floating World: Comicbook Culture and Kibyoshi of Edo Japan, faz um contributo admirável à vexata quaestio de como aliar a tradição da estamparia japonesa das ukiyo-e ao advento da moderna banda desenhada no Japão, através de um estudo crítico dos kibyoshi, que poderão ser definidos, de uma forma sucinta, como romances pictóricos (e de que mostro aqui uma imagem, retirada do livro de Kern): o estudo deste especialista em literatura japonesa passa pelas suas dimensões materialistas, económicas, formais, estéticas e históricas, e este excerto é fulcral nessa aproximação, como que tornando esses livros no “elo perdido” dessa continuidade. Ou melhor, como essa união não é possível de modo directo, mas encontrando-se espaço para uma discussão lateral de condições de produção que permitiu à emergência de duas linguagens a um só tempo distintas e comparáveis: os kibyoshi e a mangá/banda desenhada. Tal como ocorre nos exemplos de Kunzle ou Coogan, a escolha deste excertos é notavelmente pertinente para com a obra total, não só não dispensando a sua leitura cabal como até levando a esse convite ou mesmo à sua releitura a partir deste foco.

Há tempos recentes, o filósofo norte-americano Noël Carroll publicou um pequeno livro intitulado On Criticism (de que já havíamos falado, a propósito de Vähämaki) no qual pugna pelo retorno ou valorização da função de avaliação da crítica. E, poderíamos acrescentar, não sendo um mero jogo de palavras, procurando-se ao mesmo tempo sublinhar a importância da crítica na avaliação. Ora é esse movimento duplo o que está previsto na última secção de A Comics Studies Reader, agregando-se o estudo (marxista) de Ariel Dorfman sobre uma personagem chilena, Mampato, o excelente ensaio de Thomas Andrae sobre o humanismo (reparem na dicotomia do título do artigo: "The Garden…) de Carl Barks operando no interior do império da Disney (…in the Machine") [duas notas adicionais: Andrae está de certa forma a "corrigir" a leitura de Dorfman, com Armand Mattelart, em Para leer El Pato Donald. Comunicación de Massa y Colonialismo (livro de 1972 e que é informado pelas edições chilenas da Disney, com alterações substanciais aos textos originais, sobretudo de Barks; esta mesma tónica havia sido já explorada por Domingos Isabelinho, num seu artigo da Nemo)], um estudo estético, analítico e crítico completo da famosa história de Bernard Brigstein, “Master Race” (mostrando aqui uma das pranchas mais famosas, a última de oito), por Benson, Kasakove e Spiegelman (retirado do fanzine semi-mítico, e dedicado a toda a troupe da EC Comics, Squa Tront), um estudo sobre Chris Ware por Kannenberg, Jr. (retirado de um outro volume de estudos indispensável, The Language of Comics: Word and Image, ed. Por Varnum e Gibbons), outro sobre The Birth Caul e Snakes and Ladders, de Alan Moore com Eddie Campbell, de Annalisa Di Liddo, e ainda um outro, sobre o Maus, de Hillary Chute.

Repetindo uma ideia anterior, não se pode entender este volume como um Reader’s Digest, cuja leitura se torna “suficiente” para englobar e terminar as discussões suscitadas por estes textos, mas sim como um passo de descoberta a todo um rol de obras e autores importantes no aturado estudo desta linguagem, e cujo diálogo deve despertar a vontade de desenvolver um discurso próprio, cada vez mais fortalecido e balizado, e, numa palavra, crítico. Para formar a tal massa crítica que possa garantir a existência de “radares” mais potentes sobre toda a banda desenhada. 

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