15 de novembro de 2012

Lynda Barry. Girldhood through the Looking Glass. Susan E. Kirtley (University Press of Mississippi)

Esta é uma monografia académica dedicada exclusivamente à obra da autora de banda desenhada (mas não só) norte-americana Lynda Barry, sobretudo através de um filtro específico, que tem a ver com a representação - figurativa, actancial, social, sexual, política, filosófica - das raparigas na sua obra. “Visualizing girlhood”, como se escreve na página 22. Sendo, como é hábito repeti-lo, o campo dos estudos da banda desenhada relativamente jovem, não é de estranhar que muitos aspectos prementes ou autores importantes não tenham sido ainda alvo de estudos específicos. Se é verdade que Barry já foi alvo de muitos artigos, e é inclusive uma das autoras eleitas por Hilary Chute no seu Graphic Women, ela era merecedora de um estudo como este. (Mais)
A emergência de Lynda Barry está associada a um momento particular dos anos 1980 nos Estados Unidos, que poderíamos descrever como a primeira geração pós-underground, no sentido em que não precisavam de negociar a integração ora no bloco mainstream da banda desenhada mais convencional e comercial (associada a grandes companhias e géneros policiados, dos funny animals aos super-heróis) ora de uma resposta radical que recorria a um igualmente número fechado de elementos para a sua expressão (sexo, drogas e rock’n’roll)… Aos poucos, começavam a surgir espaços de divulgação, trabalho e circulação que não precisavam de seguir essas linhas gerais, e que levariam à emergência da diversidade de géneros e de estratégias visuais e narrativas com o movimento dos alternative comics dos anos 1990. Seria possível associá-la, por exemplo, à geração dos art commix de Spiegelman e cia., na Raw, ou aos New Wave Comics de autores tão díspares como Mark Marek, Mark Beyer ou, o grande companheiro de armas da autora nos primeiros passos de ambos, Matt Groening. O que une também estes autores é a presença na imprensa periódica, mais ou menos alternativa, mas que é muito revelador, desde logo, de uma determinada relação com o tempo, o presente, e um ritmo (e ética) de trabalho que se virá a revelar continuamente nas estruturas e temas da autora.

Sem repetir ou entrar em pormenores biográficos da autora, a sua herança cultural mesclada (filipina, irlandesa, americana), os obstáculos familiares pelos quais atravessou e até mesmo o seu percurso de vida, profissional, académico e artístico, compõem matéria que, não sendo explorado de forma directa - como veremos à frente, existem filtros de  transformação pelos quais Barry faz atravessar todos esses elementos - encontram ainda assim um eco na sua obra. Como Kirtley assinala variadíssimas vezes (e discute-se na entrevista), existem momentos na obra de Lynda Barry em que ela parece dirigir-se, em primeiríssimo lugar, a si mesma quando menina, criando um mecanismo imaginativo e emocionalmente complexo e recompensador que a sua arte permite, transformando-se num veículo de diálogo consigo mesma e, assim, de redenção de todas essas dificuldades.


E são essas mesmas matérias e temas que tornam Barry numa autora que explora algum grau de diversidade social no interior dos Estados Unidos, diversidade que raras vezes é palco de exploração destas linguagens - mormente a banda desenhada -, usualmente mais atreita a um conjunto fechado de referências e representações. Por outras palavras, Barry é uma autora cujo contributo para a crescente diversidade interna da banda desenhada, a que aludimos acima, é particularmente significativa. Depreende-se, portanto, a importância da sua obra enquanto objecto de estudo de uma monografia como a presente, na crescente economia de estudos de banda desenhada.

Na esteira de muitos outros autores, mas sem necessariamente ter sido influenciada por eles ou se inscrever na mesma tradição ou géneros, Barry pode ser considerada uma autora que utiliza a banda desenhada como um veículo para as suas ideias em relação ao mundo, mas que se encontram numa relação e perfeito equilíbrio com outras linguagens, tal como a literatura, o teatro e as artes visuais. Até tendo em conta a qualidade das suas linhas, figuras e formas, não será displicente aproximá-la de toda aquela geração de campeões da ironia, tal como Copi, Saul Steinberg ou Jules Feiffer. Sem desculpas, como eles, Lynda Barry tece material adulto, que diz respeito às relações humanas, aos seus conflitos, paradoxos, confusões, enleios, jamais se furtando aos aspectos menos felizes e protegidos da vida humana, inclusive episódios traumáticos que vincam para sempre a personalidade das pessoas - sem nunca cair, porém, no melodrama, no obsceno, ou tampouco na exploração directa: bem pelo contrário, Barry é uma artista que prima pela construção elíptica (ou “oblíqua”, nas palavras de Kirtley), obrigando um grau de atenção e construção imaginativa pela parte do leitor particularmente exigente.


Parte dessa exigência emerge da maneira como a autora lida com questões éticas necessariamente implicadas pelos géneros, campos, noções e até mesmo campos judiciais da autobiografia, das memórias, da auto-ficção. Aliás, é através do conceito, meio em tom de brincadeira, que inventa, o da autobifictionalography, que Barry demonstra como todos esses processos narrativos não são nunca relatos objectivos e desapaixonados de factos existentes no tecido histórico independentes das pessoas, mas antes construções activas e subjectivas da parte de quem conta. Logo, e de uma maneira que é repetida por tantos investigadores deste campo (e algo que tentámos ficasse patente na exposição central do FIBDA deste mesmo ano), a autobiografia, e géneros correlacionados, não apenas contam o “eu”, mas constroem-no. Isso permite a que se crie precisamente uma multiplicidade do Si que, não se coadunando com narrativas naturalizadoras e redutoras da experiência humana, pelo contrário sublinham uma qualidade líquida, “um sentido heteroglóssico do eu” (pg. 159) que põem em causa a ideia de um eu unificado (processo de secularização que encontra em todo os processos culturais pós-Iluminista, freudiano, feminista, pós-humano, etc. vários dos seus momentos vincados).

O estilo de Barry - compreendendo não apenas a figuração como o enquadramento, a composição de página, a linguagem plasticamente multímoda e materialmente diversa das últimas obras, a caligrafia, a gestão das vozes e dos tempos narrativos - afasta-a de muitas escolhas convencionais seguidas por um grupo maior de artistas, tornando-a, ainda que não radicalmente experimental, pelo menos uma autora de uma idiossincrasia significativa. Um dos aspectos continuamente revelados e estudados por Susan Kirtley são as “camadas”, não apenas, e muitas vezes, literalmente de material pictórico e narrativo (níveis narrativos, tempos, vozes), mas também de emoções e distorções (daí o subtítulo incluir a ideia de “espelho”, quase sempre distorcido).


O foco temático de Kirtley demonstra como Lynda Barry cria situações de representação diametralmente opostas àquelas em uso corrente no mundo da esmagadora maioria da produção (comercial) da cultura popular, do mundo do entretenimento, da moda e da música, que continua a confirmar papéis predominantemente estanques para as mulheres - e cujo “controlo”, por assim dizer, começa precisamente em idades mais jovens. Sobretudo uma imagem “açucarada” que jamais corresponde com a realidade da vivência da maior parte - de alguma? - das jovens. “Este texto [Kirtley refere-se ao romance Cruddy, mas toda a obra de Barry poderia ser assim descrita] negro e perturbante age contrariamente às concepções exageradamente optimistas em relação à adolescência feminina, corrigindo de uma forma hiperbólica e dolorosa mitos idílicos”, acrescentando ainda que ela “traz uma concepção fragmentada e ilusória do si para as jovens raparigas” (pg. 101), que constitui, na verdade, uma imagem mais próxima das realidades sociais a que nos reportamos. Já em modos de conclusão, Kirtley escreve, “A obra de Barry oferece muito géneros, muitas lentes, muitas raparigas, e muitas formas de ver, criando uma percepção multidimensional e uma perspectiva superlativa da adolescência feminina” (pg. 187).


Barry tem toda uma série de trabalhos diferenciados, desde a tira Ernie Pook’s Comeek (que, por sinal, foi compilada num só volume pela Drawn & Quarterly, intitulado Everything) aos vários volumes que têm sido editados nos últimos anos, e que compõem um trabalho coeso (One! Hundred! Demons!, What It Is, Picture This), passando por romances (Cruddy), peças de teatro (The Good Times are Killing Me) e livros de artista (o magnificamente irónico Naked Ladies! Naked Ladies! Naked Ladies!). O trabalho de investigação de Kirtley não os diferencia em termos de grau ou hierarquia, tão-somente respeitando a sua natureza diversa para auscultar os temas recorrentes ou os modos como eles permitem a Barry recolocar as suas questões. E citam-se ainda outras experiências, desde trabalhos para a rádio, gravações e até mesmo as aulas e/ou workshops que Barry tem conduzido ao longo de anos, e que não deixam de interrogar os mesmos campos temáticos. É verdade que a dimensão pictórica de Barry (a sua obra em pintura, ou de circulação galerística) é menos analisada, mas isso prender-se-á, por um lado, com a gestão dos conteúdos analisados deste livro, e por outro com uma questão de acesso e também dos instrumentos críticos e disciplinares empregues. O mesmo poderia ser dito em relação aos ensaios ou aos contos semi-autobiográficos de Barry.
No entanto, um dos grandes contrastes que a investigadora assinala entre o trabalho, digamos, “visual” de Barry, que incluiria a banda desenhada, naturalmente, e o “literário” ou “exclusivamente textual”, é o modo como o tratamento das dimensões mais violentas se tornam mais directas. Como escreve em relação ao romance Cruddy, “parece que ao confiar mais num texto, em vez da imagem gráfica, Barry se libertou para explorar o obscuro, o obsceno e o violento” (pg. 100). Em relação ao campo do visual e até do háptico, a atenção que Kirtley dá à textura, e à materialidade da obra de Barry é central - Kirtley faz um uso judicioso dos vários instrumentos e enquadramentos críticos que têm surgido neste campo de estudos, plenamente integrados - , sublinhando de modo claro essas dimensões, que, tal como os scrapbooks estudados (e aqui citados) por Tucker, Ott e Buckler, são “manifestações materiais da memória”.

Em What It Is, a narradora explica como as histórias “não podem mudar a nossa situação, mas podem transformar a nossa experiência dessa situação” (cit. pg. 184). Toda a obra de Lynda Barry, sob o foco de Kirtley, é precisamente um instrumento que permite, ou deseja permitir, que os seus leitores tenham a capacidade de entrar em diálogo com as suas situações de vida, por mais difíceis que sejam, para poderem alterar o modo como as experienciam, e assim, tornarem-se mais capazes de exercer agência sobre a própria vida.

Uma breve entrevista com a autora encontra-se disponível aqui.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.

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