28 de fevereiro de 2013

Naoki Urasawa. L’air du temps. Alexis Orsini (Moutons électriques)

Semana Urasawa 4. Fazendo parte do catálogo sobre “grandes autores” da editora, ou para ser mais específico, da colecção Bibliothèque des miroirs dedicada à banda desenhada, apenas o facto de fazer ombrear Urasawa com Alan Moore, Grant Morrison, Hayao Miyazaki, Steve Ditko, Jim Steranko, Frank Miller, e Jack Kirby é revelador desde logo daquela programa a que aludíramos no primeiro post desta semana dedicada ao autor japonês. Faz parte de um discurso de construção de referências, de um cânone, de um corpus que se  quer dar a entender como universal e incontornável para além das circunstancialidades históricas. O facto de ser uma editora francesa com um filtro particularmente atento ao circuito anglófono (mas que passa pelo mercado norte-americano) e a géneros transmediáticos específicos deve ser entendido no seu contexto especial, claro, mas é ao mesmo tempo notável, tal como será significativo que este projecto sobre Urasawa seja o único título da colecção disponível em epub (e com um preço muito convidativo). Não sendo algo sequer próximo de alguns dos projectos que têm surgido em língua inglesa, acima de tudo pela UP Mississipi, ainda assim parecem-nos ser estes volumes excelentes instrumentos de introdução ou de balanços.
Orsini disponibiliza aqui uma monografia que pretende ser consequente na sua abordagem histórica, biográfica e crítica, mas pauta-se por um princípio de economia de meios. Se por um lado, a dimensão crítica, em termos académicos ou mesmo de instrumentos mais musculados, é limitada, o uso que faz de inúmeras fontes originais japonesas e a forma muito bem estruturada do livro torna-o um excelente volume não só introdutório à obra do mangaka como também, como acabámos de dizer, enquanto um primeiro e cuidado balanço sobre a obra disponível (o autor menciona todos os trabalhos, mas destaca principalmente o que está disponível em língua francesa, e até como está disponível).
Em vinte e cinco anos de carreira, e, atendendo ao modo possível de trabalho no Japão, e às particularidades do autor, que por vezes trabalhava sobre duas séries imensas, Urasawa produziu uma obra monumental. Assim, esta monografia apresenta em primeiro lugar um longo capítulo autobiográfico, menos intimista e completo do que salientando todas aquelas informações que se podem tornar reveladoras de alguns dos traços ou características repetidas na obra do autor japonês. Não se deixando abandonar propriamente a biografismos fáceis - apesar dos paralelos com a vida de Tezuka, no fim do volume, se prestem a alguns abusos de método -, Orsini mostra como algumas das vivências reais do autor se transformariam em matéria ora de partida para as histórias ora de criação dos seus ambientes. É o caso, por exemplo, do modo como Urasawa faz representar as relações familiares de sangue ou os traços de alguma nostalgia presentes em 20th Century Boys, de que faláramos.
Se essa biografia ocupa quase metade do volume, a outra metade é ocupada com uma abordagem mais analítica e crítica. Desdobrando-se em capítulos que estudam as personagens, os temas, e alguns aspectos sobre influências determinantes, com destaque particular para o cinema e Tezuka…. Orsini faz uma leitura transversal entre todos os trabalhos de Urasawa, organizando-se de uma forma cronológica, para encontrar pontos comuns ou tratamentos diferentes de um mesmo tema, ou procura estabelecer correspondências entre interesses do autor e as formas como eles se expressam em cada título, não obstante o contraste aparente entre essas mesmas obras, sejam elas de uma fase de aprendizagem ou da maturidade, sejam elas curtas ou imensas, sejam elas de um género mais leve ou de outro mais grave… E esses temas não se cingem aos mais óbvios, como a importância de moldar as personagens secundárias, a atenção particular para com personagens crianças ou idosas, ou a presença da cultura popular da banda desenhada, da animação, da música próprias da geração do autor, e carregadíssimas de nostalgia, mas também aspectos como a alimentação, a religião, a internacionalização das paragens atravessadas pelas suas personagens, etc.
Os capítulos sobre cinema aproximam-se um grau mais de uma análise verdadeira, apresentando breves trechos que poderiam passar por close readings, comparando cenas de filmes de Hitchcock ou de Kurasawa, entre outros filmes, com as de alguns dos títulos thriller de Urasawa, mas apenas num ou noutro caso vão além do mero contraste ou levantamento dos elementos. Mesmo assim, são momentos que obrigam a ver com atenção, ou rever, esses trechos do autor japonês.
O capítulo em torno de Tezuka acaba por querer dar continuidade à mitologia em torno desse autor, no sentido de o endeusar e quase tornar a única figura histórica que importa discutir no desenvolvimento da mangá moderna. Não é que se possa diminuir o seu valor, nem se o deve fazer, mas deve-se contextualizar e dar espaço a um enquadramento mais diversificado, até mesmo para reforçar a importância de Tezuka. Por outro lado, esse mesmo processo de engrandecimento serve um outro propósito: o de engrandecer, por sua vez, o “herdeiro” (a palavra é escrita por Orsini na conclusão) de Tezuka: o próprio Urasawa.
Seja como for, a influência de Tezuka sobre Urasawa é gritante e óbvia, mesmo pondo de lado o papel que o “deus da mangá” teve na infância do outro autor. Black Jack reflecte-se no Dr. Tenma de Monster, a presença do mestre é assegurada em 20th Century Boys e, enviesadamente, em Billy Bat, o “star system” é retomado por Urasawa (para citar Orsini, “a reutilização pelo autor de algumas das suas personagens preexistentes em séries anteriores”, pg. 230; o que não poderia ocorrer se não existisse uma qualidade na figuração que fizesse emergir personalidades físicas reconhecíveis), um sem-fim de “inside jokes”, já para não falar da mais óbvia ainda e apertada rede de referências retomada em Pluto. Este capítulo torna apenas clara a intertexualidade que a confirma.
cima de tudo, e melhor do que o voo de pássaro de Manben, encontramos aqui uma forma de alargar o horizonte sobre os modos de produção, acima de tudo a questão das relações entre autor e editor. Na verdade, todas as informações sobre a relação profissional de Urasawa e o seu manga henshu-ga, ou tantô, ou para compreendermos melhor, “editor”, que o tem acompanhado ao longo de décadas, em muitos dos seus títulos, Takashi Nagasaki, é de uma grande preciosidade. Aprendemos de um modo claro qual o papel de um editor na indústria da banda desenhada no Japão, até que ponto ele pode mesmo ser considerado como co-autor ou pelo menos cúmplice de algumas ideias, opções ou estratégias narrativas e visuais, e apercebemo-nos de que o funcionamento dessa vida não é tão linear como se poderia imaginar sob a ideia do “génio autor solitário”… Muitos dos aspectos mais importantes dos capítulos autobiográficos, a nosso ver, dizem respeito, aliás, às dificuldades com que Urasawa de deparou para conseguir levar alguns projectos a bom porto, para que algumas das suas formas de trabalho sobre os géneros fossem aceites, ou até mesmo como a recepção do seu trabalho e a sua ascensão foi lenta, complexa e até mesmo dolorosa. É nesse quadro que lemos as passagens de Urasawa por vários projectos, alguns dos quais falhados, as várias revistas, a passagem de Billy Bat para a editora Kodansha, e a intricada novela sobre a autoria verdadeira de Master Keaton.
Esse é, de facto, um dos aspectos importantes. A forma como Orsini demonstra a negociação de Urasawa em relação aos géneros mais populares nos quais se via, de certo modo, obrigado a trabalhar (Yawara!, Happy!) para depois poder conquistar espaço crítico suficiente em apostar em experiências mais arriscadas, contribui para um retrato mais complexo e matizado do mundo da banda desenhada japonesa, tão pouco monolítico como outro qualquer. Os géneros a que Pluto ou Monster ou 20th Century Boys se inscrevem vão sendo descritos por Orsini, baseando-se nas entrevistas do autor japonês, como “menores”, e isso é demonstrado na forma como circulam naquele circuito, mesmo que as menções a projectos paralelos como a Garo ou coisas ainda mais obscuras tenha aqui um papel e presença muito apagados. A revista COM é importante, e ela tem um papel preponderante na carreira de Urasawa, mas é apenas uma alternativa ao mais central dos mainstreams. Mais uma vez, o contexto é tudo. Nenhuma dessas “dificuldades” impediram, claro, que Urasawa tivesse atingido grande sucesso com essas outras séries mais convencionais, ao ponto mesmo de ter influenciado um retorno generalizado da população japonesa ao judo com Yawara! e isso ter mesmo influenciado o apoio dado à judoca que ganhou a medalha de prata em Barcelona…
Aprendemos a ver como Urasawa consegue trabalhar sempre no interior de géneros ora de contornos comerciais mais restritos (Yawara!, por exemplo) ou de outros géneros que até ao seu sucesso eram vistos como “menores” (Monster, 20th Century Boys) para deles libertar um “lado mais humano”. E é nesse sentido, de representações, de exploração das histórias individuais das suas personagens, na eleição da importância de todas e cada uma delas em obras que se espraiam ao longo de centenas de páginas, e por vezes atravessam décadas e locais, que se encontra a força de Urasawa, mesmo até em detrimento de outros autores anteriores, como Otomo ou o próprio Tezuka. Isso é particularmente sentido em 20th Century Boys. Apesar de Orsini citar aqui e ali a influência da gekiga, essa faceta não é explorada suficientemente, a nosso ver. E se não se pode negar esse “lado humano”, perguntamo-nos todavia se poderia ombrear os contornos da verdade angustiante e de um quotidiano matizado pelo absurdo de autores como Yoshiharu Tsuge, Yoshihiro Tatsumi ou Shin’ichi Abe
Como continuação do programa de fortalecimento da importância de Urasawa na banda desenhada internacional contemporânea, todavia, o gesto de Orsini é por demais conseguido.

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