10 de abril de 2013

Haggarth. Victor de la Fuente (Casterman)

Este volume de mais de 200 páginas reúne, na íntegra, a série de episódios da personagem Haggarth, herói de “sword and sorcery” ou “heroic fantasy” criada por Victor de la Fuente, desaparecido há poucos anos, para a revista (A Suivre) entre 1978 e 1979, contendo material inédito, como o último conto, inacabado (fora uma pequena sinopse). Não deixa de ser algo estranha a associação deste género à (A Suivre), numa sua abordagem imediata que associaria aquele título sobretudo à inflexão “literária” que se faria sentir na banda desenhada europeia a partir dos finais da década de 1960 e início da de 1970. No entanto, esta série surgiu logo no seu quarto número, em 1978. E, mais, recordemo-nos de que o surgimento da Métal Hurlant em 1975 veio fazer inflectir os gostos do público francês por este mesmo género e ainda uma nova ficção científica. Se contrastarmos com os nomes de J.-P. Dionnet com J.-.C. Gal, ou Corben, la Fuente não estará tão só, já para não falarmos das produções norte-americanas, nas quais Conan (surgido na banda desenhada em 1970) teria um papel de grande destaque, assim como Kull, Elric e Warlord. Um texto complementar a esta edição de Nicolas Finet, que autorou uma monografia sobre a história dessa importante revista, recorda-nos ainda a influência de Frank Frazetta e Roger Dean, para além destas e de outras referências, mais ou menos óbvias na relação do género. De resto, importa assinalar que este é mais um dos livros em que a Casterman tem tirado partido do seu património da (A Suivre) para criar um catálogo de recuperação da memória, sobretudo no que diz respeito a trabalhos de menor sucesso comercial, crítico ou que de alguma forma acabaram por ser marginalizados pelo avanço da história.
No que diz respeito à carreira de la Fuente propriamente dita, o texto de Finet também estabelece os princípios gerais de maior importância em relação a este título, desde a criação, ainda em Espanha, de uma outra personagem similar, Haxtur, em 1971, o seu maior sucesso comercial com Mathaï-Dor em 1972, se bem que com contornos diferentes (e irmanáveis a Simon du Fleuve, iniciada em 1973, e Jeremiah, em 1979, todas estas cruzamentos entre o pós-apocalíptico e géneros mais tradicionais) e finalmente a entrada na revista francesa.
Numa primeiríssima abordagem, poderemos dizer que Haggarth não apresenta muitos elementos diferenciados daquelas outras séries assinaladas. Temos o guerreiro solitário e exímio no combate com a espada, paisagens ambíguas em termos históricos mas que parece empregar elementos díspares da Idade Média, do ciclo arturiano, de vários ambientes mitológicos e ainda da pré-história, mesclando alquimia, lagartos gigantes e templos flutuantes. E mulheres semi-despidas. O Mercenário não está longe... Que haverá então de inflexão? De pormenor individual? Na verdade, para a ela chegar, importa fazer ainda uma outra, última, comparação: com Axle Munshine, de Godard e Ribera. Haggarth era um guerreiro Tuna, mas ele é morto. Ao mesmo tempo, um outro jovem é ferido e cego. Por artes mágicas e sortilégios, o jovem consegue salvar-se, mas tomando o rosto de Haggarth. Ou seja, há como que uma mistura das duas pessoas num só corpo e isso vai lançar Haggarth (o novo) numa senda que não apenas tem a ver com as exigências necessárias das acções imediatamente em curso como também da sua própria identidade, que se prenderá com questões de propósito, da liberdade relativa dos homens face a quem detém o poder político, à ideia de pertença a algum lugar ou nenhures. Perceber-se-á aí o alcance da comparação com o Vagabundo dos Limbos, apesar das diferenças que os géneros acarretam e os contextos diegéticos precisos de cada título. Fuentes não terá tempo para explorar muito esta dimensão, uma vez que não deu continuidade à série, mas adivinha-se nesta personagem uma vontade em explorar pequenos desvios comportamentais em relação às expectativas que o género implica, e que terão sobretudo a ver com as suas violência e ideologias típicas.
O estilo de Victor de la Fuente é conhecido, e integra-se naquela grande escola naturalista e de rigor anatómico fundada por, na banda desenhada, Alex Raymond e Hal Foster, e que encontra em tantos autores, cada um com as suas pequenas diferenças fundamentais (elasticidade, pose, jogos de contraste, domínio do chiaroscuro, composição e dramatismo dos enquadramentos, etc.), como Burne Hogarth, Al Williammson, John Buscema, Joe Kubert, Eduardo Teixeira Coelho, Victor Mora, Enric Sió, Julio Ribera, Attilo Micheluzzi, uma continuação regrada e sólida dessas regras. De resto, e novamente remetemos ao texto de Finet, Fuente exploraria, por obrigação de escola, mercado de trabalho e inflexibilidade ética de trabalho, estes mesmos instrumentos nos variadíssimos trabalhos que fez para a indústria de banda desenhada anglo-americana (Dell, Fleetway, através das Selecciones Ilustradas, etc., de que algum material seria publicado em Portugal) e faria para esse título de culto, Tex.
Mais, o domínio do artista espanhol do preto-e-branco, sem (quase) recurso a meios-tons ou tramas industriais, estuda-se não apenas nos corpos humanos (os músculos dos guerreiros e as formas voluptuosas das mulheres), mas nas formas mais fluidas e orgânicas: os fumos e os líquidos, as lianas, os ramos, os arbustos e as plantas, os variadíssimos animais, dos mais realistas aos mais extraordinários, e os grandes planos que mostram edifícios ou mesmo aldeias semi-medievais e semi-fantásticas.
A maneiracomo Fuentes gere as relações entre os tempos da acção é muito significativa. A banda desenhada, mormente a clássica, gere sempre tempos diferenciados, o dos textos falados ou nas legendas, e o das imagens, mas pode encontrar formas de complicar a sua relação, através da composição ou modos de transição entre as vinhetas. Ora é isso o que sucede em muitos momentos, aumentando o grau de acção da série.
Por exemplo, na página 84, Ethan pergunta a Haggarth o que ele experienciou no interior de um estranho templo flutuante, mas quando Haggarth lhe responde, já estão a uma grande distância do mesmo templo. Uma interpretação seria pensar que Haggarth escutou a pergunta, mas fica em silêncio o tempo da descida, de agarrar as vitualhas e colocá-las a tiracolo, começar a caminhar, com Ethan atrás – insistindo na pergunta? – e apenas responder passado 3 minutos. Mas para quê “imaginar” essas outras acções? (lá está o problema de querer verbalizar o que ocorre entre as vinhetas, como McCloud o deseja). Porque não aceitar que este é um diálogo corrido, sem silêncios entre as falas, e que apenas na banda desenhada permite um movimento maior entre espaços? Não é apenas em cenas de diálogo que vemos estas (supostas) discrepâncias temporais. Na página 148, Haggarth defende-se de uma amazona que o ataca: numa primeira vinheta a amazona prepara-se para o ferir com uma lança e inclina-se para trás, ao passo que Haggarth prepara para a golpear com as costas da mão, mas flecte os joelhos para ganhar estabilidade; na seguinte, ele desfere o golpe, e a amazona deixa cair a lança. Mas não há indícios nas suas posições físicas que permitam entender quem se aproximou de quem (os pedregulhos do cenário não ajudam, se se ler o conjunto maior). O que se passa então?
Estas temporalidades não são propriamente ditas “experimentais”. Bem pelo contrário, a obra de Victor de la Fuente faz parte de uma produção classicizante, que procura o mínimo de ruído possível no que diz respeito à naturalização da leitura dos seus textos: isto é, procura-se que os leitores leiam a “história”, esquecendo-se de estarem a olhar para a estruturação composta e pensada de uma sequência de imagens singulares. Mas essa aparente falta de respeito para com a temporalidade do mundo real é então própria da matéria da banda desenhada, aproximando-a então de uma dimensão performativa tal como ocorre nas peças de teatro no momento em que são levadas a cena. Tratamentos narratológicos contemporâneos não devem olhar para estas ou outras cenas como “desrespeitando” o tempo fenomenal do nosso mundo – como o qual estaremos sempre a fazer comparações – mas antes a aceitarem-nas como fazendo o seu próprio tempo. Ou, citando Viktor Shklovsky, “o ‘tempo literário’ é claramente arbitrário: as suas leis não coincidem com as leis do tempo vulgar”. A existência de dois tempos, o verbal e o visual, na banda desenhada, ainda complicam mais esta situação. Mas uma análise atenta destas discrepâncias, mesmo não lançado esta obra (ou outras análogas) para a categoria do “pós-moderno” ou do “anti-mimético”, demonstrarão ainda assim técnicas não-miméticas no interior de produções naturalizantes.
Haggarth é um daqueles textos que confirmam todas as forças e qualidades do mainstream: em termos de criação da situação, de moldagem do protagonista, de estruturação do mundo ficcional, da arte do desenho clássico, na composição rigorosa e dinâmica, tornando o texto total fluido e elegante. É uma promessa também de uma pequena mudança ou diferença num género que usualmente se pauta pelas mesmas características de sempre, apesar de não ter tido continuidade. Acima de tudo é mais um elemento para ir compondo o edifício de uma história imensa da diversidade deste campo criativo.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.

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