9 de agosto de 2013

O Livr-O-Mem. AAVV (Barbara says…)

Na língua inglesa, o provérbio mais comum que possivelmente traduziria o português “quem vê caras não vê corações” é “don’t judge a book by its cover”: literalmente, “não julgues/valorizes um livro pela sua capa”. Mas se fazermos juízos de valor sobre pessoas pelos seus atributos físicos exteriores é eticamente condenável, não o fazer em relação aos livros é de tolos. Qualquer bibliómano terá em si um qualquer grau de fetichismo perante estes objectos, que não são naturais, mas totalmente feitos pelas mãos e vontade dos seres humanos. Devemos, é mesmo nossa obrigação moral e estética, julgar os livros pelas suas capas. E pelo seu miolo, formato, “mão”, peso, textura dos papéis, composição da mancha tipográfica, distribuição dos textos e imagens, existência e gestão dos materiais paratextuais, integração das imagens, resolução das mesmas, escalas cromáticas, som das páginas a serem folheteadas, o cheiro das colas na espinha, forma de se relacionarem com outros livros nas nossas prateleiras, a sua história pessoal, desde o destaque nessas mesmas prateleiras até ficarem somente mostrando a sua lombada entre outras. Não nos podemos esquecer, claro está, do seu “conteúdo”.
Existem muitos submundos do livro no qual a quase total coalescência entre essas duas vertentes - forma e conteúdo - é conseguida com um brio inusitado, maravilhoso e, por isso, perene no meio das tempestades que o tempo e os seus estilos e diversas vontades fazem atravessar. Os livros de Paulo De Cantos farão parte dessa categoria. E este outro livro, novo, projecto dos Barbara says… é um gesto nessa mesma direcção, a um só tempo de recuperação e de re-fundação ou de continuidade desse prazer. O texto presente não é mais do que um brevíssimo “recado” sobre o título, que tem mesmo um site próprio.
O Livro-O-Mem é toda uma série de coisas ao mesmo tempo. É a colecção de vários textos que nasceram das Jornadas Cantianas, encontros dedicados ao trabalho do polimata Paulo De Cantos, e aos seus magníficos livros, que uniam beleza tipográfica, de design a uma preocupação particular para com uma pedagogia muito específica, mas também reveladora de práticas de produção que hoje seriam vistas como “independentes” ou “alternativas”, mas que de facto se unem na palavra “brio”. A leitura dos textos apresentará o homem e a carreira, e mostra uma bibliografia substancial – se não exaustiva, pelo menos tentativamente cheia – dos livros feitos por ele, assim como de outros materiais complementares, visuais, acima de todos o comparativismo visual-estrutural tentado em relação a Fritz Kahn, que os editores chamam de “homólogo distante”. Os textos de Alexandre Estrela, Mário Moura, Filipa Cordeiro, Robin Fior, Olga Pombo, Inácio Steinhardt e do próprio editor principal, António Silveira Gomes, demonstra logo a panóplia e diversidade de perspectivas disciplinares, passando pelo design e pela arte (e por todos os territórios em que se misturam ou se diferenciam), pela filosofia da ciência, oscilando entre textos mais impressionistas e outros mais factuais, e outros que revelam um pensamento mais elaborado, crítico, filosoficamente aberto. Todos e cada um destes gestos é muito correcto para com as facetas de Paulo De Cantos. A “carreira pública” de Cantos já se adivinhava há muito, desde a circulação dos seus livros, redescobertos no antigo café Geronte a meado dos anos 1990 (e, pessoalmente, recordamo-nos perfeitamente da momentânea “febre” que atravessou aqueles que se cruzaram com a venda dos livros), mas foram precisos estes gestos sucessivos – encontros semi-académicos, exposição, livro, apresentações em conferências, trabalhos de investigação em curso – para colocar De Cantos no seu lugar merecido.
O objecto físico em si é uma homenagem pormenorizadamente pensada. Se bem que o adjectivo “retro” pudesse ser de imediato trazido à baila, as mais das vezes ele é utilizado num contexto que pretende apontar a uma espécie de síntese instrumental para efeitos contemporâneos de modas fugazes. Aqui, o “retrospectivo” ou “referente ao pretérito” tem mesmo a ver com um respeito para com a acuidade, paciência e, repitamos, brio com que certos cultores do objecto-livro os procuravam fazer, sendo Paulo de Cantos uma dessas pessoas. Digamos, num laivo fantasioso, que este seria um livro-súmula que o próprio Cantos poderia ter feito. É como se fosse dar uma nova voz a uma voz momentaneamente esquecida, mas pela sua própria voz.
Nota final: estivemos envolvidos obliquamente na produção deste livro, quer numa tradução quer por um elo entre os Barbara Says… e a Oficina do Cego. Ainda assim, amizade aos editores.

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