28 de setembro de 2013
Palmas para o esquilo. David Soares e Pedro Serpa (Kingpin Books)
É Michel Foucault a referência fundamental sobre a emergência da loucura enquanto discurso da modernidade. Isto é, uma consideração atenta para as especificidades culturais e civilizacionais do processo histórico alertarão de imediato para o facto de que a “loucura” não é, precisamente, um facto em si mesmo, um númeno, uma realidade objectiva. E ela constituirá os próprios sujeitos (os “loucos”). A lição principal de Foucault é demonstrar como ela apenas surge, no seu entendimento moderno, no seio de uma cultura que começa a ser ocupada pelo discurso da racionalidade, uma normatividade que reduz o espaço de realidades mágicas, religiosas, místicas, começam a desaparecer de todo, em que a razão pretende lançar luz sobre todos os recantos da existência humana. Se o “louco” numa determinada sociedade seria considerado como um veículo da voz de Deus ou dos Fados, trazendo mensagens enigmáticas mas às quais era imperativo pagar tributo – repare-se como o companheiro do protagonista articula uma espécie de aforismo com “Acho que a maioria das pessoas que existem têm almas que estão a viver pela primeira vez”, de maneira a que os seus discursos têm de ser lidos à luz de uma outra forma de entender a demência - , nesta nova configuração social da modernidade as mesmas declarações (mas não o mesmo contexto, o mesmo papel, etc.) levaria antes à exclusão da estrutura social (com tudo o que isso implicaria de negativo: fisicamente impuro, moralmente reprovável, sexualmente indesejável, socialmente perigoso, e por aí fora).
Ora a literatura gótica dos séculos XVIII e XIX, cadinho complexo de géneros como o fantástico, o horror, a ficção científica, a que David Soares indubitavelmente se associa (na verdade, deveríamos antes falar com mais rigor sobre o “maravilhoso” ou mesmo a “fantasia”, mas em qualquer dos casos nenhuma destas inscrições reduz o poder de Soares da plasticidade sobre a língua, de liberdade de movimentos de relação com vários factores políticos, de atenção para com várias facetas da condição humana), só pode surgir enquanto movimento correctivo, digamos assim, dessa inexorável conquista da razão. E, conforme esse mesmo projecto literário-artístico, aquilo que ocupa o lugar central do palco iluminado é a negra alegoria que mergulha os punhos no inconsciente indomável, no estranho selvagem que nos habita a nós mesmos, no ingovernável outro que pulsa em nós mesmos. Por outro lado, o confronto do leitor, dito “normal”, com estas outras experiências, mesmo que fictícias, deverão obrigá-lo a olhar um espelho que poderá reescrever a sua própria inscrição. Nesse sentido, é Arno Gruen, com A loucura da normalidade, que nos alerta para a criação dessas mesmas dicotomias. Palmas para o esquilo pretender precisamente caminhar sobre o finíssimo raminho que separa esses territórios, e que tanto poderá balançar-se com o peso, como vergar-se suavemente ou quebrar.
De uma forma resumida, senão redutora, poder-se-á descrever este como sendo um livro sobre a vida de um homem que julga ser um esquilo, e vive num hospital psiquiátrico. A narrativa dar-nos-á acesso ao seu mundo interior (memórias, percepção, imaginação?), assim como a uma faixa externa textual, que complexifica a diegese e até a torna, de certa forma, alegórica, a um nível mais universalizante. O protagonista não tem nome, como soe acontecer. E, como veremos, é até comutável com o seu companheiro principal, como se a “prenda” de uma loucura tão pessoal fosse transmissível como a amizade. Além disso, Pedro Serpa cria um cenário que é mais genérico do que realista (a imagem que ocupa toda a página 16, por exemplo, parece mais marcar uma ideia geral de “cidade” do que querer-se ancorar numa realidade circunscrita e específica). Esse fundo pretende, ainda que com as expectáveis limitações culturais (a nossa sociedade ocidental, europeísta, com redes de segurança social, etc.), universalizar o ambiente de terapia dos alienados, se bem que se evitem os melodramas dos maus tratamentos de outros géneros. Bem pelo contrário, vemos auxiliares atenciosas e tranquilos, um jardim no qual é possível contemplar parte da acalmia necessária, companheiros que, nas suas constrições pessoais, têm sempre um qualquer gesto de cumprimento e aproximação. Desta forma, não há uma criação diabólica de uma “maldade” que emerge de fora: a loucura tem raízes no interior, e brota de dentro para fora, como um fruto.
Se esse espaço parece querer criar aqueles espaços de suspensão das acções (como sucede em títulos lidos há pouco como El arte de volar e Rugas, por exemplo, ou Jimmy Corrigan), faz-nos também regressar a uma outra noção de Foucault, a dos espaços ditos “heterotópicos”. De um modo sucinto, são esses espaços que se constroem de facto (não são imaginários, mas de pedra e cal), para funcionarem como “contra-sítios”, isto é, tendo uma “posição geográfica na realidade”, são diferentes de todos os outros, porque põem em causa esses mesmos outros espaços “normais”, reflectem-nos, discutem-nos. Os espelhos, os cemitérios, e os manicómios, mas também os teatros e os cinemas e até Daath, de A conspiração dos antepassados), cada um a seu modo, constituem-se como heterotopias, um espaço que se cria para “depositar” aspectos indesejáveis ou radicalmente diferentes da corrente social, mas que concentram em si forças que nos obrigam a reconsiderar os nossos próprios espaços, os nossos próprios papéis. Nas palavras do narrador, “fantascópio” ou “eixo do mundo”, paradoxalmente confundindo e servindo de norma. A árvore, umbigo desse pequeno universo fechado (jardin clos), é apenas a heterotopia dentro da heterotopia.
Os autores criam uma estrutura dúplice, em que uma voz de narrador atravessa toda a narrativa, quase sem ligações directas ao nível diegético visual, e esse mesmo nível, onde têm lugar os acontecimentos representados visualmente, com as suas analepses (fragmentos curtos mas que permitem reconstruir uma ideia geral da sua “biografia”), acessos aos mundos internos do protagonista, os diálogos veiculados pelos balões de fala. O primeiro nível, todavia, assemelha-se a uma espécie de ensaio poético, ou de um longo poema em prosa que tenta descrever o arco que, como insiste em perguntar, separa e aproxima a imaginação da loucura. E, de facto, qual é a resposta? O que as separa? Qual é o ponto de passagem ou fronteira? É a árvore do mundo, que faz subir desde a mais baixa matéria (um ânus exposto) ao inalcançável sol? São os espelhos, que permitem que as sombras atravessem ou que os seus estilhaços libertem? São as sucessivas grades e barras que denotam o mundo estratificado (no berço, no portão do manicómio, o quadriculado da folha escolar)? Se bem que a resposta não possa jamais ser irrevogável, uma possível ideia é avançada pela própria estrutura do livro: uma finíssima película, que permite trânsitos constantes, travessias súbitas ou mesmo impossíveis de sentir, ao mesmo tempo mantendo de uma forma ou outra os territórios separados.
Como em diversos outros projectos de David Soares, a esfera zoomórfica (e suas variações teramórficas) assume um papel central, decisivo. A par de Cerasta, de Fúria de Maio, da Salta-Pocinhas, do Ouriço, o dragão d’O pequeno deus cego, e muitos demónios, junta-se agora um pequeno esquilo, também sem nome e sobretudo, sem voz. No projecto de David Soares, inclusive literário, como já tivemos várias oportunidades de o escrever, a emergência destas criaturas maravilhosas, mais ou menos monstruosas, mais ou menos familiares, acabam sempre por assumir um papel paradoxalmente de reestruturação e recalibração e retorno da “conveniência social”, do equilíbrio desejado por uma qualquer perspectiva da ordem. Não pode ser por acaso, mas por ser tronco comum, que as narrativas de Soares tenham sempre um animal ou monstro totémico assumindo o papel de espelho dialogante com os seus protagonistas (recordemos o monólogo do dragão). Contudo, em Palmas para o esquilo, o animal não fala, não estabelece diálogos com os protagonistas que assombra, auxilia, ou usa.
Podemos ver isso por outro lado, porém, pois seremos nós quem não tem acesso a essa voz, sendo a comunicação feita pelo interior, de formas íntimas e inalcançáveis aos de fora. Ou então, bem pelo contrário, devemos entender a voz narradora externa, o tal “ensaio sobre a loucura”, como a secreta voz que segreda aos ouvidos do protagonista? Nessa faixa fala-se de Hermes e de Ratatöskr, ambas personagens que segredam baixinho e insuflam acções. Para além dessas referências às mitologias nórdica e grega, assim como à bíblica, não há qualquer tipo de instrumentalização, procurando-se antes compreender como que um feixe contínuo entre essas associações e, assim, libertar os sentidos mais profundos da existência humana (com a ressalva que os valores sociais não são constantes, como vimos no início).
A impermanência é uma das poucas constantes da natureza humana, mas no caso do protagonista a grande âncora, o seu fio vermelho que lhe dá um arco na vida é a figura do esquilo, o qual, se numa primeira fase lhe surge como acesso a uma forma de ter sucesso e atenção junto aos seus, rapidamente se torna fruto de uma obsessão que o afasta dos padrões costumeiros (se bem que o episódio da escola tenha um tratamento algo caricato e exagerado, rompendo com a exactidão realista que lhe incutiria maior peso) e, finalmente, seu derradeiro ardil. O modo como essa figura totémica parece ser herdada pelo companheiro, aumenta o grau de mistério do linguajar secreto dessa criatura que é a loucura, encerrando igualmente o enigma das duas mortes. Se ela é “deslaçada da matéria”, como está escrito, porque não permitir esse trânsito? Não há solve, somente coagula.
Num ensaio que escrevemos sobre dois dos seus romances, tecemos algumas considerações sobe o vocabulário de David Soares, que pela primeira vez transita de uma maneira directa da sua prosa para o trabalho em banda desenhada – permitido, precisamente, pela densa “faixa narradora”, algo distante, ou pelo menos distinta, da diegese visual. Perguntamo-nos se o seu convívio com as estruturas dinâmicas e rápidas da banda desenhada (sobretudo a clareza de Serpa) leva a um resultado igualmente dinâmico, mas estamos em crer que a diminuição da velocidade, a obrigatoriedade à atenção mimará de certa forma o modo como a loucura pode atascar os movimentos de um homem ou uma mulher no seu quotidiano “desviado”. E esse vocabulário denso e arcimboldiano, como escrevemos, serve ele próprio de athanor delicado, criando uma outra película de separação, quando, citando Flann O’Brien, “entra em contacto com os intelectos pedestres da laicidade insciente”. Não se trata de forma alguma de sobranceria e distanciação, mas antes da criação de uma prova que pede pela travessia para atingir o ouro. É preciso esforço: “O cérebro sonha melhor com as mãos do que sozinho”, reza-se no livro.
Essa última frase pode ser lida também como se se referindo ao modo do livro, isto é, à aliança intrínseca e inalienável entre a tessitura criada pelas palavras e aqueloutra pelas imagens, apenas destrinçável pela mortificação necessária da tarefa da crítica, como queria Walter Benjamin. Se bem que o estilo narrativo da história remeta para todo um conjunto de histórias do fantástico, no seu sentido mais alargado, afectas a plataformas tais como a Caliber Press (Negative Burn), ou a série Hellraiser da Marvel Epic, já a dimensão visual é radicalmente distinta. Mesmo que tenham atravessado esses outros títulos autores com estilos mais “claros” ou pouco associados aos “dark 90s” (Marc Hempel, James Owens, Scott Roberts, Ted McKeever, e até Kevin O’Neill e Brian Bolland na sua fase cómica), nenhum deles atravessava os domínios de ingenuidade, cores vivas e nitidez limitada de Pedro Serpa. Na verdade, mais rapidamente irmanaríamos Serpa a autores tais como Paul Hornschemeier ou Shaky Kane, cuja expressividade constrita partilham, ainda que os desenhos do artista português titubeiem um pouco mais neste volume do que em O pequeno deus cego. E se nesse outro projecto de ambos os autores o estilo pueril e quase inocente de Serpa se coadunava com a “fábula” orientalista, aqui provoca um desfasamento que nos obriga a pensar a sua razão, ou melhor, o seu resultado. A plasticidade, quase deselegante, destas figuras, não possui a coerência interna que se desejaria (repare-se na página 30 onde se vêem pelo menos 4 registros diferentes - e se poderia argumentar-se essa flutuação por haver momentos diferentes, efeitos de realidade versus imaginação, ou mesmo episódios emotivos, neste e noutras passagens isso não poderia ser dito), e a manipulação digital de cores tem é extremamente desarmadora para tornar mais efectivo os momentos de grande choque (revelatórios, desviantes, violentos, terminais) que a narrativa vai espoletando ritmicamente (a impressão nas primeiras páginas faz com que as linhas dos contornos apareçam algo difusas, mas esse é um problema técnico que será reparado numa segunda edição, seguramente, e em nada implica a prestação estilística). Já a composição - prevista nos conhecidos full scripts de Soares - é altamente regrada, e sempre significativa, como havia sucedido no livro anterior. De sequências à Kurtzman a pontuações de tressage, passando por splash pages e cenas recursivas, há aqui um pequeno catálogo de efeitos, todos eles eficientes e pertinentes.
E tudo isto não é senão um punhado de migalhas acumuladas num gavetão escuro, esperando que sejam provisão suficiente para o voo final da interpretação.
Nota final: agradecimentos a David Soares, pela oferta do seu livro.
Publicada por Pedro Moura à(s) 3:22 da tarde 4 comentários
Etiquetas: Portugal
26 de setembro de 2013
[D]ejected Omnibus. Os Positivos (auto-edição)
O tipo de humor e estruturas genéricas que o autor explora tornam todo o projecto num mecanismo apenas aparentemente simples – pela superfície, é uma novela amorosa densa com personagens desenhadas minimalmente: vogando de trás para diante por entre a banda desenhada, o teatro, o cinema e televisão, atravessando as “quartas paredes”, tecendo níveis metatextuais com os críticos de banda desenhada, os prólogos e notas, é como se estivéssemos perante várias plataformas que se misturassem e combinassem de modos diversos, nunca repetidos, e sem que nos permitissem aperceber uma fórmula original. Tudo está em constante trânsito, obrigando-nos portanto a uma espécie de concentração no tema.
Tendo já escrito parcialmente sobre a surpresa de [D]ejected à luz da leitura de Road Trip, o outro trabalho d’Os Positivos, e a essas considerações remetendo, por ocasião do lançamento de uma edição “absoluta”, com extras e tudo, aproximemo-nos porém de uma razão pela exploração de uma temática complexa da sexualidade humana, que nada tem de universal e constante, mas enquanto força social em permanente negociação com os discursos (morais, religiosos, societais e, acima de tudo, ou tudo mesclado, políticos) vigentes. Apesar de todos os avanços, a sociedade portuguesa ainda é particularmente pautada pela heteronormatividade, onde a exclusão ou a tessitura de um discurso sobre “diferença” (seja esta construída sobre bases fisiológicas, cognitivas, culturais, etc.) ou a “tolerância” (implicando a necessidade de confirmar o “normal” e aceitar – ainda que com um sinal de cidadania à parte – os “diferentes”) está na ordem do dia. Fabrice Neaud, no seu Journal, cria um discurso extremamente bem articulado sobre os problemas inerentes a essa ideia de “tolerância”, os quais acabam por representar a única possibilidade de existirem espaços delimitados para o exercício da diferença. Podem existir publicamente artistas homossexuais, mas não políticos ou médicos, ou podem existir festas e bares gay consabidos, mas não o simples facto de ter dois homens de mãos dadas num restaurante (claro que a ideia de que uma pessoa deve assumir publicamente a sua sexualidade leva a paradoxos e perigos). O corolário “façam o que quiserem entre eles, desde que não à minha frente”, ou variações, é precisamente o tipo de discurso que merece o ataque virulento de Neaud e, à sua maneira, a novela que se desenrola em [D]ejected.
O mundo da banda desenhada é particularmente opaco a essa abertura, bastando pensar no número e modo de “emprego” do lesbianismo contra o da homossexualidade masculina: o primeiro serve de entretenimento, o segundo de tabu. Nas exposições e festivais, por exemplo, poderá haver uma mostra de erotismo e mesmo de pornografia, mas tem de se garantir a sacrossanta heteronormatividade, pois qualquer imagem que aponte a um território gay é vetada ou colocada sob domínios muito exclusivos. Isto é, as obras sob discussão jamais poderão ser “primas” por serem “localizadas” (vejam-se mesmo ver os comentários deixados neste espaço quando abordamos obras tais como as de Tom of Finland). No entanto, é graças a diversidade dos autores que esta realidade surge nas mais variadas formas, de Gaylord Phoenix a Artifice, de Manga Mammoth a The Heart of Thomas, de Fun Home até mesmo a Batgirl, de maneira a que não é um discurso embandeirado, mas uma constatação da existência humana. [D]ejected não está interessado em explorar os eventos em si, formas de choque pela obscenidade ou a representação directa, mas através do melodrama que emerge da discussão verbal entre as personagens. E, como nos projectos anteriores, a inclusão de expressões em inglês, os pequenos jogos de trocadilhos, os jogos mesmo estruturais de atenções diversas entre os grupos internos de personagens, as saídas e entradas que levam a pensar num frenético e cómico xadrez, tornam todas essas discussões extremamente movimentadas, apesar de superficialmente parecer estarmos apenas a observar pessoas numa sala…
A inclusão de “famílias alternativas” na cultura popular não é algo de recente, mas foi necessário atravessar muitas barreiras até chegarmos ao ponto em que as produtoras de sitcoms optam por explorações como Família Moderna e The New Normal. No entanto, essa “normalização” precisa de duas vertentes críticas fundamentais: em primeiro lugar, não esquecer o papel de resistência que materiais anteriores tiveram, abrindo caminho contra o preconceito através de obras que exploravam o quotidiano de um modo inteligente e descontraído, sem mergulhar na comédia banal (na banda desenhada, Bechdel merece um papel de destaque com Dykes to Watch Out For); em segundo lugar, a proeminência destas séries não nos podem fazer esquecer tampouco o trabalho que ainda há a fazer para derrubar a ideia de “normalização” e, sobretudo, a identificar o tipo de ideias feitas que são confirmadas pela própria existência dessas séries. [D]ejected parece tirar um prazer imenso do melodrama, por vezes mesmo com contornos de histeria, para fazer “entrar” – com a subtileza de um pé de cabra? – essas ideias numa perspectiva societal normalizada.
Uma das questões que nos parecem ser colocadas nesta história é até que ponto é que a forma de aceitarmos essas sexualidades levará a um mais equilibrado relacionamento humano? Isto é, aceitando que partimos de uma qualquer posição na qual existe um preconceito quanto a “alternativas” (falamos de uma perspectiva pessoal, que pode ou não ser partilhada por outros, podendo existir posicionamentos mais conservadores, sem dúvida, mas igualmente posicionamentos mais iluminados e menos ignorantes; nada destas realidades permite pensar num espectro matematicamente objectivo e universal, mas permite porém que compreendamos estar mais ou menos perto de papéis políticos descritíveis por adjectivos tais como “conservador”, “tolerante”, “aberto”, “liberal”, “informado”, e outros, com todos os problemas inerentes a cada um deles), o que sucede quando somos confrontados com situações menos habituais na nossa experiência? Como acomodar essa nova experiência? Em que medida a nossa perspectiva social é alterada? De novo, o curioso de [D]ejected é que não há qualquer tipo de apresentação argumentativa, dogmatismo ou exposição programática: há uma narrativa melodramática que nos coloca de chofre num canto e nos obriga a mergulhar nessa mesma realidade, ainda que seja fictícia ou, quem sabe, biográfica transfigurada. E começamos assim a juntar carqueija...
Nota final: agradecimentos ao autor, pela oferta da publicação.
Publicada por Pedro Moura à(s) 10:12 da manhã 2 comentários
24 de setembro de 2013
Epílogo. Topedro (auto-edição)
Como já o repetimos várias vezes, a existência de um projecto autobiográfico não nos permite, de forma alguma, considerarmos ter alguma intimidade com a pessoa real. Mesmo que aceitemos a ideia de que os autores, ao transformarem a matéria das suas experiências, com níveis diversos de efabulação, em textos a ler e ver, logo, num certo intuito comemorativo dessas mesmas experiências, sejam elas impactantes, diferentes, banais, quotidianas, nada dessas “confissões” nos dão acesso à pessoa verdadeira, ao cidadão ou cidadã empíricos, à verdade judicial da coisa. Não obstante, como acontece naqueles autores cujo projecto alargado permite que surja uma “vida contada”, uma “autobiografia” (e suas variações, da auto-ficção à grafia fria), como Baudoin e Topedro, Davodeau ou Pekar, a leitura sucessiva de cada livro permite ainda assim uma navegação de trás para diante, a construção de uma fiada que vai criando uma imagem mais ou menos coesa. Por mais plural que sejam esses gestos individuais, eles coalescem num corpo, eles obrigam a essa intertextualidade “interna”. Um novo elemento que se vem juntar aos anteriores, reescrevendo-os, reposicionando-os e, assim sendo, escrevendo-se a si mesmos para além dos traços que os compõem de modo imediato (porque absorvem os anteriores), posicionando-se a si mesmos (em relação a um conjunto anterior).
Os livros de Topedro parecem ser drasticamente diferentes entre si, em termos de tom e humor. Existem características comuns, claro está, para além daquelas superficiais parecenças formais, advinda do gesto físico da criação. Referimo-nos a um certo estilo de narração exteriorizado das acções, que não procuram uma recriação dramática do tempo pretérito, mas apresentam-no como tal, e onde as imagens, isoladas, fora de uma sequência mais dinamizada e clássica, as tornam ainda mais reificadas, o que não significa que sejam fluidas e passíveis de serem reconduzidas nas suas relações. Elisabeth El Refaie, no seu recente livro sobre autobiografia em banda desenhada, sublinha o modo como este meio permite, ou se permite, de uma forma avivada, a explorar a “narrativa de uma vida” através de “impressões associativas e fragmentos de narrativa”. É necessário ler com atenção cada autor para compreender os vários graus de impressionismo, de vagas de associações mais ou menos livres ou metafóricas, o grau de fragmentação do possível dinamismo e encadeamento. Topedro parece-nos ser um autor que cultiva sobremaneira essa forma rítmica e fragmentada. Criando um auto-retrato complexo e que se nos escapa, por mais próximos que pensemos estar dele.
Para aproveitar uma citação da artista e académica Gen Doy, de Picturing the Self, feita por El Refaie, “até o auto-retrato, apesar de parecer próximo ao sujeito criador, não consegue evitar essa externalização e objectificação do eu [self], no qual o eu se confronta a si mesmo como um outro no próprio processo de fabricação”. E essa externalização, em Topedro, torna-se claríssima neste Epílogo, com a inclusão de imagens do narrador-protagonista na sua própria acção de desenhar: vemos blocos de desenho e de escrita abertos e fechados, sobre os joelhos, a secretária de trabalho com os bonecos anatómicos, as mãos trabalhando. Mas temos também muitas cenas cuja focalização parte da perspectiva do eu: o reflexo no espelho da casa de banho, as mãos, os joelhos, as pernas, vistas dos próprios olhos. O que se contrapõe com as perspectivas “impossíveis”, externas ao corpo, algumas delas possíveis de serem vistas por uma outra personagem – conduzindo, enrolado na cama, jogando snooker – e outras apenas pertencentes a “deus” – as perspectivas picadas. E a “faixa textual”, numa primeira parte, parece referir-se a um outro que não o protagonista, mas muitas pistas levam-nos a considerar que esse é um exercício de desdobramento, em que esse outro não é senão o eu que conta, ou um seu avatar.
Há uma outra “metade”, porém, neste livro: o da “cura” da toxicodependência. O isolamento numa pensão, um chuto, uma cura, metáforas visuais que poderão querer dar conta de um processo doloroso de descida de uma sujeição: vogamos por essas imagens em busca de uma saída, que num primeiro passo se lança ao infinito do mundo, aos conflitos mais externos possíveis, e depois um regresso seco, como uma queda em baque, na mais baixa materialidade do corpo, na máquina cheia de órgãos, no saco de vento. Porém, tal como a imagem que mostra o chuto torna claro, não há, em nenhum momento deste livro, a presença da carne. Não é sangue o que vemos, é tinta, uma mancha de tinta disforme, que apenas promete vir a ganhar uma forma significativa no acto da sua leitura.
Que relação tem este episódio desta “personagem” em relação àqueles anteriores, desde uma memória de uma semana na praia àquelas relacionadas com a família? Por que razão eleger este momento, estes intervalos, numa fiada ininterrupta de uma vida? Uma possível imagem é-nos dada por um outro trabalho do autor.
Nota: agradecimentos ao autor, como sempre, pelo envio do seu livro (e as imagens).
Publicada por Pedro Moura à(s) 9:22 da manhã 0 comentários
Etiquetas: Autobiografia, Portugal
22 de setembro de 2013
Sueños ilustrados. Roger Omar et al (el monstruo de colores no tiene boca)
Alguns leitores conhecerão aquele
dispositivo conhecido como dreamcatcher,
um objecto de artesanato associado a algumas das culturas dos nativos
norte-americanos (lakotas e ojibwes, para ser mais preciso), que se parece com
um disco com uma teia no interior e penas em torno. O conhecimento do seu uso
histórico é algo fragmentário, e as formas de cruzamento intercultural - numa
primeira fase entre os vários povos autóctones e depois através do contacto com
a cultura ocidental e as sucessivas transculturações – torna difícil
compreender a exactidão do seu funcionamento, mas a ideia fundamental é de que
esse objecto (a Wikipédia diz que um dos termos originais significa “aranha”)
filtra os sonhos bons dos maus e, assim sendo, ajudará o sonhador a ter
melhores sonhos. Poderíamos imaginar que também os livros seriam como que
possíveis teias que os captassem e redistribuíssem. Este conjunto de livros
vindos de Espanha constituem uma longa aranha que cumpre esse fito.
A transcrição de sonhos e a sua
consequente transformação em textos (literários, cinematográficos, teatrais)
não é algo de imprevisto, e mesmo no campo da banda desenhada e ilustração
existem bastantes casos. Estamos aqui perante um caso clássico de encadeamentos
de transformações: os sonhos em si
mesmos partem do núcleo da relação entre o subjectivo e o mundo exterior, e
depois segue-se uma elaboração verbal que lhe impõem uma qualquer forma
fechada, e finalmente temos uma nova elaboração, desta feita pelas imagens e
estruturas da banda desenhada e da ilustração. Para além da mera
criação de imaginários oníricos (de Nemo
a Sandman), existem casos de diários
(Crumb, Zograf, Veitch, Bechdel) e até mesmo de recepção de sonhos alheios para
a criação de textos em banda desenhada, sendo o caso de Jesse Reklaw talvez o
mais conseguido. O projecto de Roger Omar inscreve-se portanto nesse campo
relativamente restrito. Sueños ilustrados
é um projecto em que Omar “colecciona” sonhos de crianças, sendo elas mesmas
quem os escrevem, de idades compreendidas entre os 8 e os 12 anos, de várias
cidades e vilas espanholas, mas também de Cuba, do México, Alemanha, e, num
caso, de “niños cirqueros”, isto é, que vivem a vida nómada do circo. Há também
um caso de uma só
sonhadora, Luli, com um livro, e o tratamento reflecte isso
mesmo. Recolhidos por Omar, os sonhos são depois tratados e traduzidos
graficamente, por toda uma troupe de ilustradores, que compreende artistas
espanhóis (Max é um deles), ingleses, japoneses, israelitas, e de outras
paragens. Rui Tenreiro e Pedro Lourenço são os dois artistas portugueses
envolvidos no projecto. A esmagadora das publicações estão nas mãos de um só
artista. Os livrinhos mais pequenos, todos em acordeão, intitulam-se “6 sueños”
e já ultrapassaram a vintena. Existem também outros formatos, maiores acordeões,
e mesmo um livro que serviu de antologia de ilustradores israelitas e de
catálogo de uma exposição em Telavive. Cada um dos livros tem um título individual,
que se refere a um dos sonhos. Além do mais, os livros estão sempre escritos em
espanhol, e duas traduções, abarcando línguas como o inglês e o português, o
alemão e o hebraico, o hindi e o francês, o vietnamita e o russo, o mixteco e o
japonês, o chinês e o nahuatl…
Publicada por Pedro Moura à(s) 10:10 da manhã 0 comentários
Etiquetas: Espanha, Ilustração, Infantil, Outros países
20 de setembro de 2013
a esperança como um fósforo inda aceso. Humberto Pinto (auto-edição)
A história do livro enquanto objecto, e para mais associado à narrativa e à ilustração, é de uma complexidade extrema. Mesmo que abdiquemos de considerar todo e qualquer livro e até “pré-livro”, no seu sentido histórico, como um objecto passível de estudo em termos materiais - dadas as flutuações de suportes, formatos, materiais riscadores, e por aí fora - e nos concentremos numa “história” simplificada do advento do codex ocidental na Alta Idade Média, ainda assim teríamos de olhar toda uma série de experiências havidas
nesses mesmos objectos que tentavam ultrapassar a lisura das páginas
para aceder a outras dimensões. Por vezes teria a ver com a composição
de página e a disposição dos elementos textuais, ou as imagens ou os
ornamentos, supostamente secundários, ou o arranjo e disposição entre
elementos de página para página, ou entre cadernos, etc. fosse a
micrografia hebraica, o Liber figurarum de Joaquim de Fiore, as lamelas e círculos de Raimúndio Lúlio, o Hypnerotomachia poliphili, etc., muitas foram as tentativas de transformar os livros em objectos não-inertes (um livro nunca o é, na verdade, mas simplifiquemos). Nessa perspectiva, ainda que redutora, é preciso esperar pela consolidação sobretudo no século XX do livro enquanto livro de reprodução maciça, popular e industrial, para encontrar experiências que pretendem incutir-lhe, de novo, uma dimensão artesanal, de algum grau de singularidade, de diferença, de desvio das expectativas mais formatadas. No campo da banda desenhada e ilustração, mesmo no Portugal contemporâneo, temos encontrado várias abordagens, que podem encontrar vários graus - passíveis de análise - de entrosamento com o “sentido”, de materialidade objectual que pretende insuflar novos ou diferentes sentidos: garrafas de cerveja, um frasco, pequenos blocos de papel colocados num envelope, caixas com o formato de singles no interior dos quais se descobrem vários fascículos (este último sendo precisamente a descrição de um outro projecto do mesmo autor).
Desta feita, o que temos aqui é uma edição limitada (a 100) de uma caixa de fósforos em cuja face está agarrada uma pequena publicação, de algumas páginas, as quais ilustram com desenhos ocupando a página inteira o poema de Fernando Pessoa. A sua fabricação é relativamente simples, as ilustrações são coloridas, coladas em páginas de uma cartolina preta, criando alguma elegância com a caixa (os fósforos estão intactos, e podem ser usados). Os desenhos de Pinto são relativamente simplificados, também, nos quais a figura humana, a qual, fora duas mãos, aparece apenas uma vez, sob uma forma longilínea, como um boneco de borracha, apontando para uma dimensão fluida, plástica, que todos os corpos têm ou podem ter nesta transfiguração. Humberto Pinto faz distribuir cada verso ou cada dois versos por página, quebrando-os ou não no interior de uma linha desenhada ou mesmo de um balão de fala, não procurando porém que haja uma continuidade narrativa/representativa (já que o poema parte de uma só voz central). O emprego de letras mecânicas, e não “da mesma mão” que o desenho (ou assim o aparente), retira alguma da fluidez que poderia estar presente, mas ao mesmo tempo obriga-nos a ler a distribuição que o autor tenta (as fontes são diferentes se flutuam no campo de composição ou se estão no interior de um balão) e procurar pelo ritmo que traz, visual, àquele já existente no texto.
Se o poema fala de uma vida que é toda ela composta de um esperar por algo que jamais chega, mas nessa mesma espera inglória essa vida se constitui, e portanto uma maior concentração nessa mesma sensação de esperar poderá revelar alguma fonte de prazer, a constituição de um suporte feito de fósforos por acender - não sendo fisicamente possível que fossem “inda acesos”, eles encerram porém essa mesma potencialidade, essa promessa, essa esperança, mesmo que jamais seja cumprida, pois ao cumpri-la, eliminar-se-ia igualmente a sua potencialidade. O ilustradorr opta ainda pela criação de novas metáforas visuais, transformando os fósforos em barras de uma prisão, oferecendo-lhes asas, mostrando pontas de cigarros acumulando-se no chão mas como se se tratassem de suicidas ou mortos por meios violentos (quedas), ou optando pela representação literal do “dado” do verso (que terá dois sentidos distintos) de maneira a permitir-se um jogo de contagem decrescente. Todos estes jogos sublinharão sobretudo uma interpretação “negativa”, ou pelo menos melancólica, tristonha, abandonada, dos versos de Pessoa, mas também permite, mais uma vez, uma paradoxal construção “positiva”, vendo por exemplo o fósforo “inda aceso” queimando um isqueiro - o gesto de “vingança contra o fado” é afinal a resposta da vida verdadeiramente vivida, e não apenas esgotada na espera, contra a mecanicidade dos destinos - como representação da resistência possível.
Nota final: agradecimentos a Humberto Pinto, pela oferta da sua publicação. Através do blog do autor poderão conhecer outras experiências, consumos, desvios e modos de adquirir este objecto.
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13 de setembro de 2013
Super-heróis DC Comics. AAVV (Levoir) (Comic Books, parte 8)
Tendo em conta aquilo que se disse sobre os prazeres inerentes ao seguimento das revistas mensais, e ainda para mais ao tipo de construção retroactiva e paulatina que os leitores fazem para se aproximarem da “continuidade” destes universos, o confronto com este tipo de projectos pode ser desequilibrado. Não se trata de um juízo de valor sobre o trabalho de edição, trata-se das conveniências e circunstâncias do confronto com leitores diferentes. Afinal, se se tratam de leitores assíduos e conhecedores, a maior parte destes títulos são conhecidos, familiares e apontam para vários momentos das suas histórias pessoais de relacionamento com estas personagens. Se se trata de novos leitores, será um tratamento de chofre entrar em contacto com tantas peças tão desirmanadas. No entanto, arriscamo-nos a dizer que é precisamente aí que residirá grande parte do prazer a ir descobrindo o fio à meada. Ainda regressando à edição, porém, seguramente que são vários os factores que ditam as escolhas, as coordenações e até o que já havia sido publicado. Se A Killing Joke/A piada mortal poderia ser coordenada com The Man Who Laughs/O homem que ri, escrito por Brubaker, este último título saíra na colecção do Correio da Manhã, e Joker de Azzarello e Bermejo é um forte candidato da produção contemporânea para o corpus associado directamente àquela personagem. Além do mais, houve uma preocupação em tornar acessíveis alguns dos gestos mais significativos para o “universo” da DC, ou os seus “clássicos”, desde o Crise nas terras infinitas, ao run de Morrison no Batman, ou a fase do Arqueiro Verde e Lanterna Verde de O’Neil e Adams, coligido nesta colecção com o título Inocência Perdida. Seja como for, todo este material é anterior ao tal reboot New 52, de que faláramos antes. Tal como havíamos indicado em alguns dos posts anteriores, é Batman talvez a personagem mais paradigmática para introduzir, complexificar e discutir e expor a questão dessa continuidade. Reparem-se nos dois volumes já saídos, Herança Maldita e Saga de Ra’s Al Ghul. O primeiro volume que saiu na colecção (no. 2) reúne, por um lado, uma parte do run de Grant Morrison, no qual se introduz Damian, o filho de Bruce Wayne e Talia Al Ghul, que assumirá o papel de um novo e especial Robin, e que encontra duas mortes (a falsa, que encerra a primeira parte do volume; e mais tarde a definitiva, que o elimina do universo). Por outro lado, o volume tem ainda uma espécie de coda do arco “A morte de Batman”, também de Morrison, sendo essa história em duas partes uma espécie de homenagem a toda a existência de Batman, seguindo o modelo de Alan Moore e Curt Swan para o Super-Homem em “Whatever Happened to the Man of Tomorrow”, mas introduzindo muitos dos elementos fantasiosos típicos dessoutro escritor britânico. Para todos os efeitos, tratam-se de dois troços de uma narrativa mais ou menos contínua e coesa, apesar da de Gaiman “eclipsar-se” para um reino fantasioso, ou um desvio. Mas com a leitura de Saga, que tem material de 1971-72 e depois de 1987, vemos uma fase anterior onde se encontrarão algumas das “sementes” das ideias mais tarde empregues por Morrison, sobretudo a de que Wayne e Talia haviam tido um filho (nunca visto na história mais antiga [ver correcção nos comentários]). Para além de todas as excelentes informações disponibilizadas nos prefácios, há uma perspectiva que poderia ser acrescentada. Repetidamente se vê o trabalho de O’Neil e Adams (em Batman e Arqueiro Verde/Lanterna Verde) como um momento em que se introduz um factor de maior seriedade e envolvimento político-social com a realidade da parte do género dos super-heróis. Isso não é, de forma alguma falso, e medraria de maneira a englobar o trabalho de Mark Gruenwald (Squadron Supreme), Frank Miller (Daredevil, primeiro, e depois o seu The Dark Knight Returns), e Alan Moore (Miracleman, Watchmen, etc..) e tudo o que se seguiria. Em The Superhero Reader, porém, a leitura do ensaio “Batman, Deviance and Camp”, de Andy Medhurst, torna muito clara a política de ultra-heterossexualização pela qual Batman passou na década de 1970, precisamente para evitar as leituras camp que haviam sobrevivido desde a análise (algo desequilibrada nos seus contornos, mas acertadas em alguns outros aspectos) de Fredrik Wertham, e se haviam exacerbado no seu famoso programa de televisão. A saída de Robin do espaço doméstico de Wayne, a mudança para um apartamento na cidade do herói, o seu envolvimento e cenas românticas com mulheres, e até a sua representação de tronco nu peludo eram factores que tentavam apagar toda essa história, real, de uma personagem que se veste de morcego à noite [ver comentário de José de Freitas abaixo, e, quando disponível, ao texto de introdução ao volume da Batwoman]. O que é curioso é que Morrison, se incluiu uma triste cena homofóbica em Arkham Asylum, parece querer re-integrar toda a campiness no seu run, de formas bem diversas. Em suma, a leitura de ambos os volumes fará coordenar várias estratégias e momentos de representação, mas que ganham coerência interna.
Independentemente dos seus lugares na construção social, sexual e política das personagem, estão aqui reunidos vários materiais narrativamente de qualidade - “Filho do demónio”, que havia surgido em português na colecção Graphic Novel da Abril (vejam-se as composições de página, que tentam abordagens mais edgy), é ainda hoje uma história interpelante e curiosa, e como se entende (e o prefácio sublinha) o seu impacto nas mais recentes versões cinematográficas é claríssimo. Já em termos visuais, com a excepção de Neal Adams com Giordano, as prestações são algo chãs, mas as cores digitais contemporâneas nos trabalhos mais antigos, com as suas opções cromáticas, de ênfases, não só apaga algumas das tramas e charme do original, como o empastela. O mesmo poderia ser dito em relação a The Killing Joke/A piada mortal, que ainda hoje nos parece ser um incontornável, se cínico e horrendo mergulho na psique do Joker, de Moore e Bolland (já antes publicado pela Devir). Mas aqui as opções novas são feitas pelo próprio Bolland, para uma edição comemorativa, e portanto caberá a cada leitor a “escolha” da abordagem preferida (tudo isto está explicado nos prefácios). Este é, talvez, o melhor dos títulos, digamos o mais “sobrevivente”, de toda a colecção, ainda que muitas das opções de Moore na sua construção tenham sido entretanto ou mal exploradas ou apagadas (como o caso da protagonista feminina Barbara Gordon que no New 52 voltou a andar; não muito diferente do que sucedera a Batman/Wayne depois de Knightfall). Uma vez que já havíamos escrito sobre Joker, não nos estenderemos, e tratando-se de uma excelente adição ao “cânone” em português, perguntamo-nos se consegue ombrear, a longo prazo, a importância do primeiro título. O seu impacto é interessante, mas no cômputo geral, talvez possa ser diluído por outros projectos. Ambos, porém, são aquilo que se poderia chamar de formato “Prestige” (melhor miolo e cores do livro, melhores capas, um projecto mais coerente e “fechado” das parte dos autores envolvidos, melhores valores de produção, enfim), logo as afinidades construtivas (e aquilo que Azzarello pode ser devedor a Moore) são várias.
É óbvio que cada volume, a seu modo, teria facetas e dimensões a serem analisadas com cuidado, desde a estrutura de cristal cambiante que a Crise obriga para navegar entre tantos desenvolvimentos (e eleger a figura de Pária como ponto nevrálgico dessa navegação) e a maior concentração num grupo menor de personagens nos volumes do Super-Homem, a oscilação entre a escalas cósmicas (Crise, Terra Dois) e a escala urbana (O último a rir), assim como a multiplicação de trabalhos de desenho, artes-finais, cores, composição, etc., que aqui se apresentam. No entanto, isso não apenas nos obrigaria a um texto mais alongado (que sabemos não ser inédito, é verdade, neste espaço), como apenas se justificaria numa fase mais tardia, na conclusão de toda a série de volumes. Não faremos close readings, portanto. O mais importante é sublinhar que estarão aqui alguns gestos merecedores de atenção na economia deste género em particular. Outra questão tem a ver com a definição destas mesmas personagens. Se já falámos do arco “realista” do Arqueiro Verde e do Lanterna Verde, o volume dedicado à Mulher-Maravilha, Quem é a Mulher-Maravilha?, também levanta questões da sua reinvenção, até permanente. Todas estas personagens sofrem reinvenções ou desvios, necessários para o ritmo de transformação e empolgamento regular das séries, mas se existem momentos altos - o Super-Homem pós-Crise de Byrne, as personagens com O’Neil, etc. -, há outros momentos mais banais. A Wonder Woman é esse caso, por exemplo. A sua definição, como escreve Filipe Faria, é uma “situação complicada” com tantas reescritas e refundações, mas o resultado nestas histórias presentes no volume é algo convencional (e longe até do trabalho de George Pérez, que também trabalhou sobre ela, mas aqui sabe a pouco). Se toda a dimensão da emancipação das figuras feministas da sua hiper-sexualização (e consequente subordinação) é uma constante neste género, esta personagem havia surgido na tentativa de curvar essa distribuição de papéis (a indicação de uma "culpa" na reinvenção da personagem por parte da segunda vaga do feminismo parece-nos algo desinformado), e o trabalho de Heinberg e Dodson é coberto por cenas de "fan service" fetichismos algo primários.
Mas a maior contribuição para essa definição de género e, ao mesmo tempo, de gestão das marcas registadas ou propriedades intelectuais das empresas está em Crise nas terras infinitas.
Os pormenores de produção, segredos de criação, contextualização histórica e impacto desta série estão perfeitamente patentes nos textos de Filipe Faria e de José Freitas nos dois volumes. E a sinopse ou narrativa tem de ser lida para ser compreendida, já que qualquer tentativa de resumo sairia gorada. Ao mesmo tempo é necessário temperar o entusiasmo, uma vez que este título (ao contrário de Joker ou Saga de Ra’s Al Gul, por exemplo, que podem ser lidos individualmente como histórias autónomas e devedoras de outros géneros, sobretudo o do crime e espionagem) será algo “opaco” na ignorância das sua história interna. Os “outsiders” ficarão totalmente perdidos. O que importa reter é a “racionalização” (palavra de um dos prefaciadores [ver na caixa de comentários o de José de Freitas]) pretendida pela companhia DC nesta reestruturação do seu universo diegético e personagens, mas que acabaria por se tornar em mais um mecanismo de criação de “eventos” movidos tão-somente pela necessidade comercial. Depois desta “crise”, seguir-se-iam, em avalanches regulares - “e nunca mais nada será como antes!”, hiperbolizava-se; mas se tudo se transforma sempre radicalmente e várias vezes, que fazer com as ondas de impacto sucessivas, elas diluem-se… -, Zero Hour, Identity Crisis, Infinite Crisis, Final Crisis… Se bem que esta última, projecto estrambótico de Morrison et al, tenha qualidades de densidade que o tornam um dos mais interessantes exercícios de meta-linguagem e cristalização do género dos mais recentes anos: parece ser um shot condensado de tudo num pequeno número de páginas (quem sabe, poderá vir a ser publicado entre nós?). E que pode ser visto como uma recalibração e re-electrificação da possibilidade dos multiversos, tema central deste arco narrativo. New 52 encaixar-se-á nessa economia?
Se em termos comparativos o número de personagens criados no universo Marvel e no da DC é idêntica e aterradoramente imenso, estamos em crer que no primeiro caso a sua popularidade, mesmo fora dos circuitos mais confinados dos leitores, é maior (quiçá pela história da adaptação a outros meios, a um certo rejuvenescimento do género a partir dos anos 1960, de uma forma muito específica de comunicar e aproximar os leitores, etc.). As colecções da Levoir parecem espelhar isso. Os quinze volumes da Marvel contavam com 7 títulos para personagens individuais (o Homem-Aranha repete-se), 5 para grupos (sendo dois deles dos X-Men e o outro do Quarteto Fantástico, que deveriam contar de forma diversa) e dois que os envolve a todos - não sendo um “reboot”, Guerras secretas é um projecto equivalente a Crise. Já os da DC contam com vinte volumes, com três dedicados à Liga da Justiça (um colectivo cambiante), dois ao Universo na sua totalidade (Crise), três ao Super-Homem e outros três ao Batman, dois a ambas as personagens (se bem que o último se centre noutra personagem), ainda um volume com duas outras personagens (os “Verdes”), e finalmente seis volumes dedicados a seis personagens individuais, sendo uma delas um vilão (Joker, regressando portanto a Batman), outra uma variação de um personagem principal (Batwoman, e estamos em crer que seja um excelente volume), e mais quatro super-heróis (Mulher-Maravilha, Flash, Arqueiro Verde e Lanterna Verde). Discutivelmente, Wolverine, o Homem-Aranha, o Thor, o Hulk, serão mais famosos que aqueles últimos. Daí que haja, apesar de mais volumes, uma clara concentração das duas personagens mais famosas, mais antigas e mais icónicas da companhia: Batman e Super-Homem.
Nota final: agradecimentos à Levoir e ao jornal Público pela oferta de alguns dos volumes da colecção.
Publicada por Pedro Moura à(s) 12:14 da tarde 6 comentários
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12 de setembro de 2013
The Walking Dead. Robert Kirkman, Moore e Adlard (Devir) (Comic Books, parte 7)
Comecemos por confessar que não acompanhámos de forma alguma esta série desde o seu início. Nem a procurámos quando foi iniciada a sua edição portuguesa pela Devir, nem quando houve acesso à sua adaptação televisiva, que jamais assistimos, nem sequer houve alguma tentativa em ler para além do material publicado em português até à data. A razão é simples, ainda que extremamente limitada e abusivamente pessoal: não temos quaisquer interesse pelo conceito de zombies. Isto terá implicações exploradas mais adiante. Sabendo que a série já atingiu mais de 110 números de comic books, e quase vinte volumes em colecções (trade paperbacks), a versão portuguesa vai no seu sexto volume, numa edição muito cuidada a todos os níveis, e materialmente idêntica à da Image/Skybound. Se estas semanas têm sido dedicadas aos comic books, que como temos repetido levam a uma determinada fruição rítmica e a prazeres muito próprios, a verdade é que há uma preferência por “doses” mais substanciais, sob esta forma de volumes. É uma leitura mais decidida, temos acesso a um mundo diegético mais construído, personagens mais facetadas, contributos para decidir a continuação ou não da leitura. Além do mais, é curioso notar que, mesmo lendo apenas as colecções, se nota perfeitamente no ritmo mensal, em mini-arcos terminados por cliffhangers ao fim de umas vinte páginas, mas que cada volume provoca ainda uma outra unidade maior, mas não menos fragmentada em termos de expectativa e desenvolvimento, de resolução e promessa. Isso é sobretudo notório em séries deste tipo, a um só tempo planeadas e capazes de se adaptarem às circunstâncias, no caso presente, o seu sucesso comercial e adaptação a uma série televisiva de grande sucesso (já para não falar de outros produtos conexos).
The Walking Dead não tenta, de forma alguma, criar uma “ideia nova”. As forças de Kirkman, já verificadas em Invincible, e noutros títulos menores do seu trabalho, não se encontram no “high concept”, mas antes no seu tratamento, digamos, a nível das pessoas, ou personagens, envolvidas. Se estão presentes toda uma série de temas muito caros à América contemporânea - a obsessão com a sobrevivência, o isolamento e provincianismo nacional (senão local), as tensões raciais, os abismos sócio-económicos, o desencanto com a vida moderna e as fantasias em relação a uma “vida mais simples e frugal”, e, claro está, os vários matizes de um certo moralismo (mas também as armadilhas que o diluem) -, Kirkman quer concentrar-se nas pequenas, ou por vezes grandes, redes que se criam entre os seres humanos, ora de aliança ora de rivalidade, mas por vezes também de tensões que se poderão revelar mais ambíguas mas também mais duradouras (como a “amizade tensa” entre o protagonista, Rick Grimes, e outro “líder” da colónia de sobreviventes, Tyreese). Muitos dos eventos pelos quais as personagens passam são como que tropos repetidos em toda uma série de ficções - o protagonista que acorda de um coma para uma nova realidade, um triângulo amoroso (que acaba por não ser desenvolvido de maneira interessante nem se torna uma verdadeira crise para a mulher de Rick), desconfianças de uma personagem que se torna depois o melhor amigo, confiança noutra que se revela ser má, e por aí fora. Mas onde em Invincible esses clichés eram tão claros que eram mesmo propositados para que nos apercebêssemos deles e os tratássemos nas suas diferenças nessa outra série, aqui eles tentam ser disfarçados, mas menos bem. Ainda assim, há uma tentativa de colocar o foco ao nível do dia-a-dia. Afinal de contas, estando na equação a possibilidade da total extinção da espécie humana, e portanto a destruição não apenas das civilizações como da sua própria condição de possibilidade, a única forma de recriar a esperança da sua sobrevivência é olhando para o manancial que cada pessoa tem. Porém, eis a raiz do problema, que já Pratchett e Gaiman haviam discutido em Good Omens. Parafraseamos: “o problema não é que os seres humanos sejam boas ou más pessoas, mas que sejam humanos”. Àparte a falta da originalidade, outro aspecto titubeante é que não se pode dizer que Kirkman seja um moldador perfeito de personagens. Existem boas ideias, com um grande efeito expressivo na sua preparação ou apresentação - o jovem Glenn, que se aventura sozinho pela cidade cheia de zombies para recolher o que conseguir, o lacónico mecânico Jim, o promissor médico de Woodbury, etc. -, todavia, a forma como o autor “despacha” estas personagens, e esse verbo deve mesmo ser até entendido no seu sentido figurado de “matar”, em relação a Jim e ao médico, exaurem a potencialidades das mesmas. É possível que, por exemplo, em relação ao primeiro volume, Kirkman não estivesse seguro se conseguiria conquistar público ou não, e quisesse acelerar os acontecimentos, mas o reencontro de Rick e a sua família, no interior de um mesmo trade paperback, ou “arco”, leva à ideia de uma certa incapacidade de gerir e estender a tensão narrativa que isso poderia construir, através do imaginado desespero, angústia, solidão, etc. De uma página em que ele chora a separação e a seguinte em que se surpreende com o reencontro, é demasiado rápido para criar camadas emotivas mais significativas. E o mesmo se pode dizer de outros episódios ao longo da série.
Daquilo que temos acesso nestes volumes disponíveis (mas pelos vistos, em toda a série original até à data), não há qualquer ideia definitiva ou nítida sobre qual a causa deste cataclismo, apesar de alguns esforços pontuais, sempre gorados. Na verdade, as “razões” poderão levar a um paradoxo ou uma discussão inglória. E regressa ao ponto pessoal indicado acima. Se aceitamos que em toda a ficção existe um “salto de fé”, a conhecida “suspensão da incredulidade”, e para mais em géneros associadas a fantasias, muitas vezes aceitamos as explicações mágicas, conhecidas por “techno babble”, nesses mesmos géneros. Por isso aceitamos a existência de “espadas de plasma”, “hyper-drives”, “mutantes”, “vibranium”, “pó de espada”, etc. Porém, no nosso esquema cognitivo, o conceito de zombies não faz sentido nenhum, não há espaço para a suspensão necessária. Claro que o problema, o paradoxo, está em que essa discussão é inútil, já que uma mesma classe de falta de aceitação desse conceito também não deveria aceitar milionários vestidos de morcegos de cabedal, canadianos capazes de terem garras cobertas de um metal ultra-denso, demónios que ajudam os humanos, ou romances entre homens alados com cornos por mulheres guerreiras da nação inimiga… Passada essa resistência inicial, ou de contexto, chega-se porém à descoberta da tal força de Kirkman que é a exploração de todos os dilemas éticos que se colocam a cada passo dos sobreviventes, com destaque natural para o protagonista da série, o xerife Rick Grimes, e a sua família, neste mundo. Por vezes, parece-nos que a angariação de zombies como maus da fita é relativamente idêntica à dos nazis, sobre os quais qualquer acto de violência extrema é visto como “inevitável”, “justificado”, se não “necessário” (então se forem “nazis zombies”, pior ainda). Isto permite aos autores uma exploração quase obscena de actos de violência, uma espécie de liberdade moral e ética total face à destruição de corpos - pois estes “já estão destruídos”. Não se trata de forma alguma aqui de uma espécie de fraqueza ou de sensibilidade comezinha da nossa parte, mas de que essa exploração - por exemplo, todas as técnicas pensadas para destruir os zombies, discutidas como quem troca receitas de pudim, e depois a aplicação descontraída das técnicas - abre espaço precisamente para uma espécie de desresponsabilização e fantasia da violência. O episódio com Hershel Greene, que tenta “guardar” os zombies no seu celeiro e esperar que uma cura seja possível, apontaria para um momento em que essa tensão poderia ser explorada, complexificada, em que se pusesse em causa a “solução simples” da destruição, mas mais uma vez Kirkman foge em frente, e cria uma situação em que se prova a “inevitabilidade” e “necessidade” da destruição total dos zombies. Ou seja, é raro que haja espaço para pôr em causa o discurso expectável. Já nos volumes disponibilizados em português vemos a mudança do artista original, Tony Moore, e co-criador da série, para Charlie Adlard. Apesar das diferenças nítidas entre os dois autores, pensamos não ser incorrecto irmaná-los num sentido de os chamarmos de “legíveis” e “simples”. Não estamos aqui a falar de grandes artistas, mesmo no que diz respeito à economia dos talentos no mainstream, como por exemplo se poderia falar de um espectro alargado, de Bryan Hitch a Jae Lee, um mais dinâmico e convencional e o outro mais ilustrativo. Moore era mais “abonecado”, com as personagens desenhadas a partir de um espectro algo limitado de elementos ou módulos que depois variava conforme as necessidades (como um retrato-robot), e a expressividade era muito reduzida, ou melodramática a um ponto de incredulidade. Adlard, por seu lado, apresenta um desenho mais desenvolto, algo aparentado a Risso, por exemplo, com maiores áreas a negro-sombra, e modulações angulares, etc., sempre tudo apoiado pelos tons cinzentos digitais de Cliff Rathburn, que está no projecto desde o início. Um olhar rápido pelas composições também distinguirá as abordagens mais convencionais de Moore, e uma maior diversidade de Adlard, que incute mais dinamismo, mais solidez, se bem que revele também muitos momentos cheios de “atalhos”. Ou seja, Adlard foi uma mais-valia, sem dúvida. Regra geral, Moore e Adlard são autores plenamente capazes de desenhar tudo aquilo que será necessário para a visibilidade e tradução dos elementos do mundo diegético, mas sem com isso romper uma barreira que os tornasse “criadores visuais”. Aliás, o mesmo ocorria em The Exterminators, de Moore. Tratam-se, portanto, e sempre, de “textos visuais” para ler, não para contemplar. Estamos cientes, todavia, que estas distinções são relativamente perigosas, pois levantam mais dúvidas e questões do que certezas, e abriria a discussão sobre a relação entre “eficiência” da linguagem visual típica da banda desenhada e as suas capacidades em mergulharem em práticas poiéticas, criativas, artísticas e desviantes. Enquanto representante “médio” da cultura do comic book, The Walking Dead (desconhecemos as razões pela sua não-tradução em português) providencia uma leitura rápida, descomplicada e que, apesar da sua matéria narrativa, é de digestão rápida, senão instantânea.
Nota final: agradecimentos à Devir, pela oferta dos volumes da série.
Publicada por Pedro Moura à(s) 10:55 da manhã 4 comentários
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