12 de setembro de 2013

The Walking Dead. Robert Kirkman, Moore e Adlard (Devir) (Comic Books, parte 7)

Comecemos por confessar que não acompanhámos de forma  alguma esta série desde o seu início. Nem a procurámos quando foi iniciada a sua edição portuguesa pela Devir, nem quando houve acesso à sua adaptação televisiva, que jamais assistimos, nem sequer houve alguma tentativa em ler para além do material publicado em português até à data. A razão é simples, ainda que extremamente limitada e abusivamente pessoal: não temos quaisquer interesse pelo conceito de zombies. Isto terá implicações exploradas mais adiante. Sabendo que a série já atingiu mais de 110 números de comic books, e quase vinte volumes em colecções (trade paperbacks), a versão portuguesa vai no seu sexto volume, numa edição muito cuidada a todos os níveis, e materialmente idêntica à da Image/Skybound. Se estas semanas têm sido dedicadas aos comic books, que como temos repetido levam a uma determinada fruição rítmica e a prazeres muito próprios, a verdade é que há uma preferência por “doses” mais substanciais, sob esta forma de volumes. É uma leitura mais decidida, temos acesso a um mundo diegético mais construído, personagens mais facetadas, contributos para decidir a continuação ou não da leitura. Além do mais, é curioso notar que, mesmo lendo apenas as colecções, se nota perfeitamente no ritmo mensal, em mini-arcos terminados por cliffhangers ao fim de umas vinte páginas, mas que cada volume provoca ainda uma outra unidade maior, mas não menos fragmentada em termos de expectativa e desenvolvimento, de resolução e promessa. Isso é sobretudo notório em séries deste tipo, a um só tempo planeadas e capazes de se adaptarem às circunstâncias, no caso presente, o seu sucesso comercial e adaptação a uma série televisiva de grande sucesso (já para não falar de outros produtos conexos).
The Walking Dead não tenta, de forma alguma, criar uma “ideia nova”. As forças de Kirkman, já verificadas em Invincible, e noutros títulos menores do seu trabalho, não se encontram no “high concept”, mas antes no seu tratamento, digamos, a nível das pessoas, ou personagens, envolvidas. Se estão presentes toda uma série de temas muito caros à América contemporânea - a obsessão com a sobrevivência, o isolamento e provincianismo nacional (senão local), as tensões raciais, os abismos sócio-económicos, o desencanto com a vida moderna e as  fantasias em relação a uma “vida mais simples e frugal”, e, claro está, os vários matizes de um certo moralismo (mas também as armadilhas que o diluem) -, Kirkman quer concentrar-se nas pequenas, ou por vezes grandes, redes que se criam entre os seres humanos, ora de aliança ora de rivalidade, mas por vezes também de tensões que se poderão revelar mais ambíguas mas também mais duradouras (como a “amizade tensa” entre o protagonista, Rick Grimes, e outro “líder” da colónia de sobreviventes, Tyreese). Muitos dos eventos pelos quais as personagens passam são como que tropos repetidos em toda uma série de ficções - o protagonista que acorda de um coma para uma nova realidade, um triângulo amoroso (que acaba por não ser desenvolvido de maneira interessante nem se torna uma verdadeira crise para a mulher de Rick), desconfianças de uma personagem que se torna depois o melhor amigo, confiança noutra que se revela ser má, e por aí fora. Mas onde em Invincible esses clichés eram tão claros que eram mesmo propositados para que nos apercebêssemos deles e os tratássemos nas suas diferenças nessa outra série, aqui eles tentam ser disfarçados, mas menos bem. Ainda assim, há uma tentativa de colocar o foco ao nível do dia-a-dia.
Afinal de contas, estando na equação a possibilidade da total extinção da espécie humana, e portanto a destruição não apenas das civilizações como da sua própria condição de possibilidade, a única forma de recriar a esperança da sua sobrevivência é olhando para o manancial que cada pessoa tem. Porém, eis a raiz do problema, que já Pratchett e Gaiman haviam discutido em Good Omens. Parafraseamos: “o problema não é que os seres humanos sejam boas ou más pessoas, mas que sejam humanos”. Àparte a falta da originalidade, outro aspecto titubeante é que não se pode dizer que Kirkman seja um moldador perfeito de personagens. Existem boas ideias, com um grande efeito expressivo na sua preparação ou apresentação - o jovem Glenn, que se aventura sozinho pela cidade cheia de zombies para recolher o que conseguir, o lacónico mecânico Jim, o promissor médico de Woodbury, etc. -, todavia, a forma como o autor “despacha” estas personagens, e esse verbo deve mesmo ser até entendido no seu sentido figurado de “matar”, em relação a Jim e ao médico, exaurem a potencialidades das mesmas. É possível que, por exemplo, em relação ao primeiro volume, Kirkman não estivesse seguro se conseguiria conquistar público ou não, e quisesse acelerar os acontecimentos, mas o reencontro de Rick e a sua família, no interior de um mesmo trade paperback, ou “arco”, leva à ideia de uma certa incapacidade de gerir e estender a tensão narrativa que isso poderia construir, através do imaginado desespero, angústia, solidão, etc. De uma página em que ele chora a separação e a seguinte em que se surpreende com o reencontro, é demasiado rápido para criar camadas emotivas mais significativas. E o mesmo se pode dizer de outros episódios ao longo da série.
Daquilo que temos acesso nestes volumes disponíveis (mas pelos vistos, em toda a série original até à data), não há qualquer ideia definitiva ou nítida sobre qual a causa deste cataclismo, apesar de alguns esforços pontuais, sempre gorados. Na verdade, as “razões” poderão levar a um paradoxo ou uma discussão inglória. E regressa ao ponto pessoal indicado acima. Se aceitamos que em toda a ficção existe um “salto de fé”, a conhecida “suspensão da incredulidade”, e para mais em géneros associadas a fantasias, muitas vezes aceitamos as explicações mágicas, conhecidas por “techno babble”, nesses mesmos géneros. Por isso aceitamos a existência de “espadas de plasma”, “hyper-drives”, “mutantes”, “vibranium”, “pó de espada”, etc. Porém, no nosso esquema cognitivo, o conceito de zombies não faz sentido nenhum, não há espaço para a suspensão necessária. Claro que o problema, o paradoxo, está em que essa discussão é inútil, já que uma mesma classe de falta de aceitação desse conceito também não deveria aceitar milionários vestidos de morcegos de cabedal, canadianos capazes de terem garras cobertas de um metal ultra-denso, demónios que ajudam os humanos, ou romances entre homens alados com cornos por mulheres guerreiras da nação inimiga…
Passada essa resistência inicial, ou de contexto, chega-se porém à descoberta da tal força de Kirkman que é a exploração de todos os dilemas éticos que se colocam a cada passo dos sobreviventes, com destaque natural para o protagonista da série, o xerife Rick Grimes, e a sua família, neste mundo. Por vezes, parece-nos que a angariação de zombies como maus da fita é relativamente idêntica à dos nazis, sobre os quais qualquer acto de violência extrema é visto como “inevitável”, “justificado”, se não “necessário” (então se forem “nazis zombies”, pior ainda). Isto permite aos autores uma exploração quase obscena de actos de violência, uma espécie de liberdade moral e ética total face à destruição de corpos - pois estes “já estão destruídos”. Não se trata de forma alguma aqui de uma espécie de fraqueza ou de sensibilidade comezinha da nossa parte, mas de que essa exploração - por exemplo, todas as técnicas pensadas para destruir os zombies, discutidas como quem troca receitas de pudim, e depois a aplicação descontraída das técnicas - abre espaço precisamente para uma espécie de desresponsabilização e fantasia da violência. O episódio com Hershel Greene, que tenta “guardar” os zombies no seu celeiro e esperar que uma cura seja possível, apontaria para um momento em que essa tensão poderia ser explorada, complexificada, em que se pusesse em causa a “solução simples” da destruição, mas mais uma vez Kirkman foge em frente, e cria uma situação em que se prova a “inevitabilidade” e “necessidade” da destruição total dos zombies. Ou seja, é raro que haja espaço para pôr em causa o discurso expectável. Já nos volumes disponibilizados em português vemos a mudança do artista original, Tony Moore, e co-criador da série, para Charlie Adlard. Apesar das diferenças nítidas entre os dois autores, pensamos não ser incorrecto irmaná-los num sentido de os chamarmos de “legíveis” e “simples”. Não estamos aqui a falar de grandes artistas, mesmo no que diz respeito à economia dos talentos no mainstream, como por exemplo se poderia falar de um espectro alargado, de Bryan Hitch a Jae Lee, um mais dinâmico e convencional e o outro mais ilustrativo. Moore era mais “abonecado”, com as personagens desenhadas a partir de um espectro algo limitado de elementos ou módulos que depois variava conforme as necessidades (como um retrato-robot), e a expressividade era muito reduzida, ou melodramática a um ponto de incredulidade. Adlard, por seu lado, apresenta um desenho mais desenvolto, algo aparentado a Risso, por exemplo, com maiores áreas a negro-sombra, e modulações angulares, etc., sempre tudo apoiado pelos tons cinzentos digitais de Cliff Rathburn, que está no projecto desde o início. Um olhar rápido pelas composições também distinguirá as abordagens mais convencionais de Moore, e uma maior diversidade de Adlard, que incute mais dinamismo, mais solidez, se bem que revele também muitos momentos cheios de “atalhos”. Ou seja, Adlard foi uma mais-valia, sem dúvida. Regra geral, Moore e Adlard são autores plenamente capazes de desenhar tudo aquilo que será necessário para a visibilidade e tradução dos elementos do mundo diegético, mas sem com isso romper uma barreira que os tornasse “criadores visuais”. Aliás, o mesmo ocorria em The Exterminators, de Moore. Tratam-se, portanto, e sempre, de “textos visuais” para ler, não para contemplar. Estamos cientes, todavia, que estas distinções são relativamente perigosas, pois levantam mais dúvidas e questões do que certezas, e abriria a discussão sobre a relação entre “eficiência” da linguagem visual típica da banda desenhada e as suas capacidades em mergulharem em práticas poiéticas, criativas, artísticas e desviantes. Enquanto representante “médio” da cultura do comic book, The Walking Dead (desconhecemos as razões pela sua não-tradução em português) providencia uma leitura rápida, descomplicada e que, apesar da sua matéria narrativa, é de digestão rápida, senão instantânea.
Nota final: agradecimentos à Devir, pela oferta dos volumes da série.

4 comentários:

José Sá disse...

Partilho em menos linhas ;-) o sentimento pelos zombies e por esta série, nunca a li e não me atrai minimamente. Conheço pessoas que dizem maravilhas dos livros, com quem partilho os mesmos gostos, mas não consigo aderir à causa e, ao de leve, sinto um sentimento(redondo) de não pertença que não me deixa orgulhoso, confesso. Cheguei uma vez a tentar acompanhar a série de televisão para tentar perceber o hype à volta da coisa, mas desliguei a meio. Já não consigo acompanhar filmes em que ao longo da história se eliminam figurantes, coadjuvantes e secundários de forma a que os protagonistas sobrevivam por um final feliz, ou "pelo regresso ao status quo". Não são tragédias humanas reais, bem sei, mas será, nestas matérias, uma tolice intelectual guardar alguma reserva relativamente à minha leitura em suspensão de incredulidade? Por outro lado, reconfesso-me um preconceituoso relativamente aos zombies, quando no passado delirava com as odisseias espaciais do Dreadstar do Jim Starlin que era capaz de destruir um universo inteiro para justificar a cruzada de um só herói.

Obrigado e um abraço.

Pedro Moura disse...

Como disse, essa desconfiança pode levar a problemas das razões pelas quais aceitamos outras fórmulas de fantasia. E, seja como for, não há problema nenhum em por vezes deixarmo-nos ir pelo prazer de ler, ver, ou fruir txtos populares, que falam, por exemplo, à nossa infância mesmo que suspendamos a inteligência e cultura adulta (o caso de ver um filme como os "Vingadores" ou os "Batman", e apreciá-los pela espectacularidade, se politicamente são quase abjectos).
Agora irmos atrás do hype só porque sim, ou porque ganhamos dividendos junto às hordas de fãs ou as editoras, não.
Pedro Moura

SAM disse...

Esta é uma série que sempre acompanhei de forma relativamente leve, quase como se afaz com um folhetim.

Ultimamente, por "overdose" em consequência de exposição em mais que uma Arte (leiam-se, a série), estou um pouco cansado e quase crente que Kirkman deveria colocar um ponto final naquilo que ele classificou, e parafraseio, "o que ocorre depois dos crédtios finais dos filmes zombie". Estendo, dos de Romero.

De qq modo, como diz, é uma leitura que se faz e esquece-se rapidamente. O que, a bem ver, nem sempre é displicente.

Pedro Moura disse...

No meu caso pessoal, foi tudo lido de atacado, levando a alguma sobreexposição.
Nada tem de displicente as leituras "distraídas" e "inconsequentes", mas o que mais me surpreende são os elogios a Kirkman enquanto autor, construtor de personagens e de diálogos, etc., quando as falhas estruturais são por demais visíveis. Penso que um certo fascínio automático pelas ideias e pelo ambiente contribuem sempre para não ver os detalhes que compõem uma obra.
A associação a Romero é justíssima, mas aí está. Faço parte daquelas pessas a quem chamam "pedantes e "snobs" que, quando penso em cinema, em obras que constroem a linguagem do cinema, não pensarão em Romero... O mundo é grande e variado demais para gostarmos todos das mesmas sopas.
Obrigado,
Pedro Moura