30 de junho de 2014

O lixo da história. Angeli (Companhia das Letras)

Entre os leitores portugueses, Angeli é sobretudo recordado pelos seus trabalhos dos anos 1980 com a Chiclete Com Banana, que marcou, pelo menos na óptica do que chegava por aqui (e tornada cega pela presença quase monolítica dos gibis da Abril), a viragem de uma nova banda desenhada brasileira, mais adulta, iconoclasta e mais sensível aos tempos de uma globalização crescente, sobretudo num sentido de referências comuns entre vários países. Se a expressão “tribos urbanas” é hoje vista como algo caricata e desusada, não o seria naquela época, e Angeli era, talvez de entre os seus companheiros mais próximos (Glauco e Laerte, com quem estremava os “Três Amigos”), aquele que melhor criou uma galeria dos seus representantes mais marcantes: de Rê Bordosa a Walter Ego, de Wood & Stock aos Skrotinhos, de Bibelô a Bob Cuspe. No Brasil, porém, a associação do seu nome aos cartoons políticos, ou como é dito no Brasil, charges, é algo consolidado há longa data, uma vez que o autor trabalha para a Folha de São Paulo desde 1973. (Mais) 
Se o autor terá produzido um corpo de trabalho para esse jornal que preencheria facilmente não um livro mas uma estante inteira, este volume procura ser mais concentrado, em termos tópicos mas possivelmente conceptuais também. Reunindo trabalhos precisamente de charges produzidas para a Folha desde 2001, dedicadas a temas internacionais mais ou menos advindos do conflito entre a potência militar norte-americana e a Al Quaeda, e todas as metástases (a palavra não é inocente) associadas, o foco é específico. Encontraremos aqui toda essa lista de compras dos temas internacionais que têm marcado esse “lado” do mundo: o 11 de Setembro de 2001, a invasão (final?) do Iraque, a consequente guerra incansável, assim como os conflitos mais tardios no Afeganistão, a captura e morte de Saddam Hussein, depois a de Bin Laden, os governos e gestos de George W. Bush e depois de Barack Obama, as controvérsias em torno deste último pelas camadas mais racistas dos Estados Unidos, as ditas (e curtas?) Primaveras Árabes no Egipto e Líbia, precisamente a breve e fútil resistência de Kaddafi, e finalmente a guerra protelada na Síria. Como se imagina, o conflito israelo-palestiniano encontra-se como uma espécie de baixo contínuo por entre todos estes temas “pontuais”, assim como questões sobre a segurança interna nos Estados Unidos, o Estado de Direito, Guantánamo e todas as humilhações dos prisioneiros de guerra, discussões em torno de armamento, inclusive o nuclear, os tratados e encontros que levariam à Coligação da Vontade, que tivera lugar nos Açores, enfim, a fundação do “Eixo do Bem”…  Angeli não se esquece de outros temas, como o Zimbabwe e o escândalo do futebol, mas essas presenças são reduzidas apenas a um toque-e-foge, e não à continuidade dos temas referidos.

Apenas esta listagem é demonstrativa desde logo de uma escolha, naturalmente. O volume não reúne toda a produção do autor. Além destes temas internacionais, Angeli abordava, como é evidente, os acontecimentos da República do Brasil, as suas controvérsias domésticas, os celerados episódios políticos, etc. No entanto, tem de ser significativo que este volume, com este título, reúna estes materiais. O título do livro nasce de uma expressão aparentemente cunhada por Trostky, que a declarava como premonitória admoestação, e a qual tem sido repetidamente empregue, não tanto enquanto um termo que pretenda ter um valor conceptual fortemente estipulado, mas antes uma espécie de fórmula heurística do próprio desejo de quem a declara. Isto é, aquele que a pronuncia deseja que o objecto do seu desprezo venha a ser votado no “lixo da história”: esquecido, irrelevante, passível de ser omitido do cômputo final.

O seu uso por Angeli, todavia, é bem diverso. E não é totalmente clara a forma como deve ser entendida. É por demais evidente que nos recorda a imagem famosa de Walter Benjamin, da história como uma montanha de detritos que se vão acumulando, a que o Anjo da História tenta retornar para poder redimi-los, mas sendo empurrado inexoravelmente pelo vento que sopra do Paraíso e que tem por nome Progresso. Se é o Progresso, portanto, que impede que se redimam as coisas, e apenas nos resta esperar que o lixo se acumule, então Angeli demonstra aqui alguns dos eventos que mais contribuem para esse empilhamento incessante. É recorrente a imagem que ele emprega de um globo terrestre largando resquícios de pele ou pedaços podres, associando-o a doenças ou sujidade. Se por um lado isso pode ser associado com uma famosíssima tira de Quino, em que Mafalda coloca o globo numa cama, como se se tratasse de um doente, depois de ouvir as notícias radiofónicas, Angeli leva essa metáfora um ou dois passos à frente, e com a sua abordagem visual sofisticada, a organicidade e repugnância da imagem aumenta.

Mas com mais de 300 páginas, não deixa de ser curioso que os temas gravitem sempre em torno mais ou menos dos mesmos eventos, personagens, forças. Por isso é que podemos falar de temas contínuos, centrais e de outros pontuais. Não que a vida no Zimbabwe ou na Síria, na Coreia do Norte ou na Tailândia fique suspensa entre os “eventos” que permitem dar-lhes atenção. Mas é precisamente essa economia de importâncias que desenha de forma quase definitiva a ordem mundial. E o autor desenha bastos mapas tentando metaforizar essas mesmas redistribuições.

Aliás, esse tipo de recorrência nota-se mesmo no trabalho de Angeli, já que são várias as imagens que, mesmo com um intervalo de alguns anos – aqui sofrem por o intervalo ser de algumas folhas somente -, repetem estratégias figurativas, metáforas visuais ou até mesmo matéria (um ou outro desenho reaproveitado, reenquadrado, etc.). Tendo em consideração que o autor tem de criar uma imagem todas as semanas, esse tipo de tema e variação não pode surpreender-nos. Afinal de contas, a verdadeira leitura de uma charge, sobretudo política, associada intrinsecamente à espuma dos dias, tem de ser lida no seu contexto físico e hodierno. É verdade que podemos hoje olhar para trás e deliciar-nos com os desenhos de um Daumier, um Bordalo ou um Bofa mesmo que não compreendamos totalmente o seu contexto histórico, a sua referência específica ou não reconheçamos as personagens em questão. Todavia, as suas linhas de força só atingem toda a sua potência se for um “texto no contexto”, para citar uma investigadora da ilustração, Catherine Delafield: o cartoon é lido não isoladamente, mas no seio de um objecto, neste caso um jornal, em que todas as outras informações concorrem para a sua tessitura final, desde as notícias ao lado, as escolhas editoriais das matérias principais e parangonas, até mesmo o estilo e tom do jornal em si, a paginação, e outras circunstancialidades. Neste caso, não temos acesso a esse outro material (salvo uma ou outra referência), ainda que haja textos nos extremos do livro que procuram criar esse mesmo contexto. A longo prazo, porém, poder-se-ão revelar algo desnecessários, ou pela sua irrelevância total ou mais realisticamente pela sua incompletude inevitável.
Os desenhos de Angeli encontram-se aqui num estado de solidez máxima. A forma como ele delineia os pormenores dos corpos e texturas, tornados ainda mais consistentes através do trabalho paciente da cor, torna toda esta matéria visual quase palpável, pesada, com uma forte presença, ainda que reconheçamos a estilização do autor das suas personagens clássicas, há uma certa perda de ligeireza, de suavidade, até mesmo de elegância nestas trabalhos, tombando muitas vezes em abordagens mesmo grosseiras. Estamos em crer que essa é uma escolha decisiva para a criação destes gestos, que afinal têm de criar calos e protecções próprias para remexer em pilhas de imundícies. E se nalguns momentos nos parece que o autor se entrega a algumas imagens feitas – a ideia dos líderes com mãos cheias de sangue, a bestialização dos amantes da guerra, a banalização da violência, etc. – mais uma vez isso de deverá a uma assinatura necessária a um ritmo semanal.

Nestes trabalhos em particular, Angeli tem também a característica de não usar somente a trilha visual. O uso de legendas, explicativas ou narrativas, e até mesmo balões de fala, inscreve-o num domínio mais limitado do cartoonismo político, aproximando-o do cartoon editorial, da tira editorial. Isto é, e mesmo que precisássemos de mais instrumentos e argumentação para sustentar esta afirmação, diríamos que Angeli procura menos construir imagens icónicas e concentradas sobre si mesmas do que actuar um processo de comentário em relação ao que sucede nesses dias. Tal qual uma coluna, um artigo de opinião, etc., ele agrilhoa-se ao momento precisamente para ter maior contundência. O facto de que os actores passam e se esquecem, retirando algum do poder aos cartoons, não é imputável ao artista nem à sua obra. Aliás, seria mesmo óptimo que todos estes eventos e personagens abjectas, valesse a ingenuidade, fossem mesmo esquecidas…

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.

3 comentários:

José Sá disse...

Olá Pedro,
Tenho que defender o Quino :-). Bem sei que é comum entre os espanhóis achar os argentinos pouco sofisticados, muitas das vezes só pela sua pronúncia castelhana parecer derivada de dislalia funcional. Na Bd de metáfora política, não atendendo aqui a quem o desenhe, o Eternauta é na sua simplicidade aparente uma obra sofisticada para o seu tempo. E o Quino, para além de ter deitado o globo terrestre doente numa cama, encontrou soluções ainda mais subtis (que o Laerte), entre muitas outras, ao murchar uma planta pela mera convivência numa mesa com o globo, ou, ainda mais próximo da imagem do Angeli, ao oferecer a sua Mafalda para coçar o globo onde este tivesse mais comichão, com o efeito inevitável dela acabar numa viagem de "circumichão". Roubando uma "tira" ao "tudo sobre a minha mãe", uma BD é tão mais sofisticada quanto mais autêntica for na abordagem do que pretendia transmitir por si mesma. E isso o Laerte, parece-me, conseguiu fazê-lo melhor através doutro lixo de histórias que nos curaram via administração de supositórios de doses maciças de fel, ou de forma mais inrudita, pela dialética skrotática.
Tudo bem, você pode xingar meu comentário de rebordoso.

Obrigado e Abraços
José

Pedro Moura disse...

Não vou xingar de "rebordoso", mas talvez de excessivo, uma vez que a menção ao Quino não visava diminuir nem a sua força política nem a sua capacidade inventiva, que prezo. Não era preciso "defesa". Apenas me referia à abordagem plástica, que é necessariamente mais "naturalista" em Angeli do que Quino. Ou seja, nenhuma das tuas interpretações, com as quais concordo nas linhas gerais, pode ser imputada ao que escrevi, que se poderia talvez apenas de acusar, a esse respeito, de ter sido elíptica demais.
Pedro

José Sá disse...

Era tudo de brincadeirinha, é claro que eu estava sendo só rebordoso contigo :-) pelo espírito do Laerte. Tentava juntar mais ligações às semelhanças (inspiração?) que podemos encontrar entre a evolução do trabalho do Laerte e a do Quino, com ambos a sentirem precocemente a necessidade de se libertaram das suas personagens primas.
Abraço,
José