Lenta, mas de modo contundente, e pouco inócua quando o faz,
cá martela a Imprensa Canalha os seus pequenos objectos gráficos, que habitam
aqueles terrenos baldios entre a banda desenhada, a ilustração, o desenho, o
exercício de junção de ideias soltas, apontamentos, rabiscos e fragmentos de
frases. Uma última fornada providencia-nos com dois títulos, um do seu editor,
José Feitor, e outro de Filipe Abranches, de que falaremos em seguida.
Comecemos pelo primeiro, Uma perna maior
que a outra. (Mais)
Este pequeno livrinho lança-nos logo num desequilíbrio, nem fosse
o título dar uma ajuda. Não há simetria absoluta no corpo humano, e até
Lucrécio queria ver numa certa “inclinação” (clinamen) a razão da origem da diversidade do universo. A rasteira
que nos é pregada desde logo é a das categorias. O que é isto? Mera colecção de
desenhos soltos, sem nexo entre si temático nem material, sem sombra de
variação, depois colados a frases que tampouco parecem agregar-se em torno de
uma ideia simples? Ou haverá aqui algum fio vermelho que tudo une, mas nos
escapa a uma primeira abordagem? Ou trata-se antes de um gesto poético, não
apenas a nível verbal, nem apenas a nível da imagem, mas a nível de tudo isso
unido, e que dissolve a própria vontade em criar categorias, balizas de
segurança para conforto do crítico e do leitor?
Um mundo semi-rural, fora das cidades principais do país,
onde apesar dos avanços sociais e económicos do pós-25 de Abril, ainda se
mantém linguajares mais rudes e antigos, empedernidos em tradições rústicas e de
cristãos sem temor, que suportam o poder da igreja mas sem abusos, que
respeitam mais a sachola do que a sacola da escola, que sabem haver mais
sustento no vinho do que em promessas de banqueiro, que preferem saber quais os
papéis predeterminados da mulher e da criança, do chefe de família e do louco
da aldeia, do que discursos complexos da pós-modernidade. José Feitor
apropria-se então das fotografias de Gonçalves Pedro, aparentemente um
retratista de um Portugal menor que não de dissipou por completo aí pelos
vilarejos fora dos grandes centros, para regressar – mesmo que discutivelmente
num exercício ele mesmo pós-moderno (apropriação, experiência categorial, etc.)
– a ele, a uma memória pessoal, e a uma espécie de fundo comum cultural que já
foi alvo de revisitações literárias tantos escritores. “Romantismo de ambiente
rural”? “Neo-realismo”? “Tradicionalismo”? Tudo descritores insuficientes, sem
dúvida, para explicar a força dos pequenos textos, quase epígrafes, a cada
página.
Apesar das imagens não estabelecerem uma sequência
propriamente dita, mas obedecerem à noção da série de retratos, de personagens relacionadas
entre si pelo gesto autoral que as reúne num mesmo espaço e gesto, os textos,
também singulares, criam uma espécie de elo cronológico. Adivinhamos que cada
um corresponde a um hipotético capítulo da história da família: a descrição do
progenitor, uma gravidez acelerando o matrimónio, a obrigatoriedade de instalar
o amor entre pais e filhos, as rivalidades violentas entre irmãos, amigos de
infância e colegas de escola, e episódios passados nas instituições que se
seguem, da escola à igreja, os animais e santos de estimação, e os muitos
rituais que pautam a vida. O último texto, intitulado “ónus”, dá a entender uma
espécie de muro que existe entre esse mundo e mais além, muro que é transporto
por uns, para sempre sem retorno, mas não pelo hipotético protagonista. História
sem final feliz? Destino irreprimível? Obstáculo intransponível? Tudo isto dependeria
do grau com que lêssemos o livro independentemente do seu autor empírico, muro
esse que não ultrapassaremos nós.
As imagens, para além daquela ideia de transposição e
transformação, têm as suas características materiais. O pulso de Feitor encontra
aqui menos momentos daquela segurança de trabalhos anteriores, no sentido de
fechar os contornos com linhas grossas da mesma espessura, procurando uma
espécie de homogeneidade gráfica. Pelo contrário, há uma maior soltura e
urgência no registo das imagens, algumas delas até com rudimentos de esboços,
recordando toda uma escola vetusta, de Saul Steinberg a Ben Shahn. Nalguns
casos temos aguadas trazendo a ideia de volume ou sombra, aqui e ali um gesto
de pincel seco para dar a ideia de uma continuidade que se dissipa, numa imagem
centrada numa figura masculina um trabalho mais denso da negra tinta-da-China
para incutir um ambiente, a um só tempo, tétrico e sólido, fantasmático e monumental.
Por alguma razão um dos textos reza que “Ali os fantasmas eram pessoas reais,
pessoas de facto”. Não é preciso almas penadas descarnadas, estas figuras de
carne e osso e tinta são suficientemente macabras na sua recuperação da memória
para criar essa noção.
Além dos textos e das imagens, há um outro mecanismo também
fantasmático e também de inscrição: um pequeno apontamento de tinta, um ponto,
que se vai alastrando, aumentando na verdade, até ser incómodo, pela sua
presença e repetição. Depois, um fim abrupto. Sem ais histórias, e um acordo de
cavalheiros de nunca mais recordar tais episódios. Está feito o luto, terminada
a catarse, encerrado o passeio.
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