6 de março de 2016

Trash Market. Tadao Tsuge (Drawn & Quarterly)

Trash Market reúne 6 histórias médias do autor, publicadas entre o final dos anos 1960 e início da década seguinte, sobretudo na mítica Garo (uma mais tardia é da Yagyô). Tadao é o irmão mais novo de Yoshiharu Tsuge mas não possui a mesma fama que o autor do sublime O homem sem talentos, tal como a não partilha a mesma circulação internacional que outros autores da mesma geração, sejam os mais dramáticos Yoshihiro Tatsumi ou Sanpei Shirato ou os mais poéticos e melancólicos como Seiichi Hayashi ou Oji Suzuki. É desta maneira que este volume publicado pela Drawn & Quarterly, com tradução e edição de Ryan Holmberg, possivelmente o mais significativo contribuidor neste momento para a passagem de “uma outra mangá” para o Ocidente, é um importante marco. É que não é apenas uma adição de um autor e de umas quantas obras, mas de um pedaço que recoloca toda uma série de questões e da história (acessível aos ocidentais) da banda desenhada japonesa do pós-guerra. (Mais) 

Estas histórias encontram-se, pelo que entendemos, a meio-caminho da carreira do autor. Não se tratam dos seus primeiríssimos trabalhos, que parcialmente se reduzia a assistente para cenários e pormenores do trabalho, também “de alimentação”, de Yoshiharu (que criava material genérico de samurais e de crime para as revistas do mercado de aluguer), mas também de Shigeru Mizuki, mas não seriam as obras que cumpriria mais tarde. É importante a distinção, que Holmberg torna clara, entre Tadao Tsuge e muitos dos seus outros colegas, os quais, quase todos eles, acabaram por ser capazes de viver da sua produção artística. Tsuge, por seu lado, sempre se desdobrou em vários trabalhos meneais e empregos triviais, tendo sido grande parte da sua vida profissional sido assegurada por tarefas na indústria farmacêutica e num negócio familiar de roupa. A banda desenhada, assim, é uma “tarefa paralela” para o autor. Estas seis histórias têm assim como característica comum não apenas as suas circunstâncias de produção, mas a própria matéria ontológica: uma vida muito ao rés-do-chão, sem grandes paixões, de personagens algo à deriva entre os infortúnios da vida e o desconsolo permanente. E um contributo decisivo a uma atenção particular para com o que se poderia ver, a uma primeira instância, como “desinteressante”, essa mesma vida pobre e sem eventos num Japão em recuperação económica lenta e ainda sem se saber reinventar após décadas de glorioso imperialismo. Aliás, é muito curioso entender que a “veia autobiográfica” (ver mais abaixo) de Tadao é que influenciaria Yoshiharu, e não o contrário.

A primeira história tem como protagonista um jovem operário com aspirações artísticas e com um vivo interesse pela obra e vida de Van Gogh. À volta dele desenrolam-se manobras de luta política, pela melhoria das condições de trabalho na fábrica, mas o jovem prefere mergulhar na vida turbulenta do pintor holandês do que nessas crises imediatas da sua vida profissional. Em “Manhunt”, um grupo de jornalistas consegue contactar um homem que esteve desaparecido durante meses, e tentam compreender o que o levou a abandonar subitamente a sua vida confortável de assalariado. Porém, nem eles, nem o próprio homem nem o leitor terão alguma vez acesso a “uma razão”. Em “Song of Showa” (a mais autobiográfica das histórias, sobre uma pobre e atormentada infância no pós-guerra), “Gently goes the night” (em que um trabalhador administrativo burguês se desvia da sua vida “normal” com uma jovem mulher na tentativa de descobrir, talvez, algum tipo de felicidade) e “Trash Market” (em torno dos homens que vendem o sangue para terem uns trocos para a bebida ou outros prazeres fátuos), temos acesso a uma galeria de personagens quase miseráveis, mas que não cumprem os requisitos das figuras trágico-heróicas de alguma gekiga, nem tombam de forma clara numa derisória comédia de costumes.

Com efeito, no texto final de Ryan Holmberg, este declara o “…claro desinteresse nas representações heróicas do trabalho e das políticas pelas lutas de classe” pela parte de Tadao, como estariam patentes, consabidamente, na Lenda de Kamui (a espinha dorsal do sucesso comercial da Garo). Por outro lado, Holmberg também alerta para a diferença substancial entre “os símbolos hiperbólicos de alienação e castração” da obra de Tatsumi e a do Tsuge mais novo, cuja apatia, posicionamento apolítico (isto é, um claro afastamento de uma relação directa nos esforços concertados pelas forças políticas oficiais), estaria mais próxima do conhecimento real – porque vivido e nunca abandonado – da realidade proletária. Não há, portanto, nenhum tipo de romantismo nestas páginas de Tadao. Tudo é anti-climático. A vida passa como as ervas dobram sob o vento. Não há propósitos, razões e fins ulteriores. Daí que a mais “revolucionária” história aqui incluída, a qual segue um grupo de jovens homens a rebelarem-se contra a polícia e a estrutura política que chega mesmo à figura intocável do Imperador, descamba num banho de sangue sem quaisquer qualidades e redenção. O título é explícito: “A tale of absolute and utter nonsense”.

Apesar de todos os perigos inerentes à leitura biografista de uma qualquer obra artística, os complementos autobiográficos textuais e a nota de Holmberg no fim do volume são adendas, digamos assim, que nos possibilitam uma leitura mais ancorada das histórias aqui reunidas. Poderá haver o perigo, sem dúvida, de lermos as informações dadas pelo autor e o tradutor-editor e depois procurá-las nas histórias, identificando assim como que “partes autobiográficas”: a infância pobre de Tadao, a sua existência entre as várias fúrias dos adultos da sua vida e a protecção garantida pelos irmãos mais velhos, as profissões “baixas” na escala social que ele de facto cumpriu e aquelas das personagens (empregado de um banco de sangue, dador nesses mesmos bancos, proletário não-especializado numa fábrica, etc.), e até mesmo questões de representação do espaço urbano e social, a “fauna” humana que o rodeava, e assim sucessivamente. De novo: isso poderá tornar-se um exercício perigoso, e deveremos evitar cair na armadilha de considerar as histórias de Trash Market como autobiográficas, o qual é um descritivo de género, para o qual têm de concorrer outros elementos narratológicos que não somente a possibilidade de alianças na nossa mente graças a informações extratextuais. Tendo em conta, porém, que poderá ainda haver um grande grau de afastamento e compreensão da realidade social do Japão do pós-guerra, essa mesma contextualização “adensa” a tal leitura ligeiramente mais completa.

Mesmo se estas histórias criam um arco relativamente contido de tempo, é possível ver uma curva de transformação do seu trabalho. A primeira história aqui reunida, “Up on the hilltop, Vincent Van Gogh”, de 1968, apresenta figuras desenhadas numa linha nervosa, deselegante, sumária e abonecada, ao passo que a última, “Trash Market”, de 1972, encontra outro tipo de equilíbrio entre as figuras altamentes estilizadas e por vezes isoladas completamente nas vinhetas, de resto vazias, e outras composições pejadas de pormenores ou construções por tramas que revelam as suas fontes fotográficas. Holmberg discute de modo directo este uso da fotografia, que é notável em vários momentos. E se esse uso nos alerta para os problemas imediatamente relacionados à sua transição pelo desenho, poderemos considerar que a falta de beleza da esmagadora maioria do trabalho de Tsuge é recompensada pelo ritmo e atenção que ele dedica a uma questão de ambientes. Vinhetas sem texto que retratam “cenas” algo deslocadas da narrativa aumentam o grão da textura social em que ela se desenvolve. Um ou outro rosto, de fonte fotográfica, traz um peso e urgência real ao resto da matéria visual mesmo quando esta é minimal.

Uma vista de olhos superficial poderia levar-nos a pensar estarmos perante um artista menor, sobretudo se nos atermos a questões de prestação gráfica e ilustrativa. Mas se formos sensíveis à construção humana genuína e até dolorosa destas páginas, talvez possamos aprender, de uma forma cuidada, o que significa maturidade. 

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