22 de junho de 2016

Altemente # 1. Mosi (Comic Heart)

Este pequeno caderno da jovem autora Joana Simão, que assina como “Mosi”, é, a um só tempo, caderno de viagem, diário de bordo, bloco de desenhos e banda desenhada. Num formato claramente aparentado ao projecto Living Will, de André Oliveira e artistas, promete vir a ter três volumes até à sua completude, mas não se trata de forma alguma de um projecto comparável nem em termos de género nem de ambição. (Mais) 

Altemente parece querer dar conta de uma temporada da autora na aldeia de Alte, com vista à prossecução de um projecto artístico integrado na sua aprendizagem académica, projecto cujo resultado será precisamente esta série de pequenos livros. Assim sendo, a autora tira partido de alguns dos princípios da autobiografia para ir colocando elementos da sua experiência nesse período em Alte numa forma passível de interpretação textual. Não há, portanto, qualquer veleidade em se criar uma ficção ou sequer um novelo narrativo com estes elementos, mas algo de formas mais livres. Todavia, não deixa de ser algo surpreendente que, tendo conta o contexto artístico, não exista propriamente um princípio organizativo mais musculado e decidido a conduzir esses mesmos elementos.   

De acordo com escritores como Frederic Jameson, é característico da pós-modernidade o “fortuitamente heterogéneo, o fragmentário, o aleatório”, e temos bastas vezes visitado autores que transformam essas características numa estrutura, em simultâneo, angustiante e fundadora dos seus gestos artísticos (apenas para citarmos alguns nomes de autores portugueses contemporâneos da banda desenhada, pense-se em Marco Mendes, Jucifer, Miguel Carneiro, André Lemos, entre outros). A falta de linearidade ou coesão narrativa de Altemente, todavia, parecem-nos fazer menos parte de uma pesquisa intrínseca à expansão das possibilidades não-, pós- ou a-narrativas (ou até narrativas mesmo!), do que algo que nasce antes de uma espécie de encontro (descontraído, ocasional, impensado) entre o caderno de viagem e a banda desenhada. Mosi não cria propriamente uma flecha directa e organizada dos vários elementos diegéticos que concorreriam no caso de uma “história”. Daí que a autora empregue o termo “projecto artístico” no texto introdutório, o qual tem uma elasticidade suficiente para compreender os mais diversos gestos.

O que encontramos aqui são 15 pranchas, para além de uma página de título, em que cada qual funciona quase como uma unidade narrativa, uma espécie de mini-anedota (no seu sentido estritamente narrativo, não cómico, se bem que em alguns casos haja esses contornos humorísticos). A composição é simples, ora seguindo grelhas regulares e irregulares, com molduras desenhadas livremente à mão, ora splash pages, conforme o que se pretende representar. Uma vez que não há uma coerência narrativa linear – com a excepção de um ponto nevrálgico ou outro, ler estas pranchas fora da sua ordem não destruiria a sua coerência -, não faria sentido esperar igualmente uma procura por uma associação a usos retóricos, convencionais, tipificados dessas estratégias. No entanto, a sensação é a de alguma desorganização ou dispersão no que se pretende mostrar: a vivência local, a experiência das pessoas na sua cultura específica, a descoberta pessoal da artista, o convívio com os demais, o desfrutar do espaço e da natureza, a aprendizagem de uma nova realidade… poder-se-ia dizer que é pouco de tudo, mas isso não abona a favor da coesão, parece-nos.

O desenho da autora é fresco, juvenil e flutuante, mostrando uma vivacidade e destreza já bastante burilada e que prometerá empregos sólidos. Parte do humor gráfico está presente na mudança momentânea de estilos para propósitos específicos de expressão, como uma página em chibi, ou o uso de algumas estratégias de simplificação, por exemplo. Mas também existem alguns desenhos que parecem nascer de um aturado trabalho de observação directa, como é o caso da chegada ao vale de Alte, a Casa da Galvana onde são recebidos os estudantes, alguns cantos da aldeia louletana, o interior de uma espécie de museu anómico local, e um ou outro retrato dos convivas... Mas a esmagadora maioria da produção tem a qualidade de um rapidamente debuxado retrato, quase esquemático, das personagens, com uma ponta grossa de grafite, que deixa visíveis as marcas da passagem rápida e segura sobre o papel texturado (mas que a autora alterna ou complementa com pincel, e os cinzentos digitais) e que expressa a leveza que descrevemos no início do parágrafo. Os próximos episódios, digamos assim (se se vier a verificar alguma cadeia narrativa), ou partes (se se manter a sucessão autónoma de pequenos acontecimentos), sairão nos próximos meses. No fim, então, verificaremos que tipo de estrutura se ergueu com Altamente.

Nota final: agradecimentos ao editor, pela “troca”. 

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