Apesar deste não ser um espaço de novidades, gostamos, dentro da
medida do possível, de ir seguindo o ritmo das publicações mais recentes,
alimentando uma atenção particular para com as novas tendências das linguagens
que nos interessam. Este livro foi publicado em 2014, mas tendo-nos escapado
entretanto, e graças à chamada de atenção de Domingos Isabelinho, esta é uma
daquelas oportunidades em que o “atraso” se justifica mais que o silêncio. Até
porque a importância e valor deste livro vem contribuir para os temas e
questões que mais têm alimentado o nosso trabalho pessoal, pesquisas académicas
e preocupações docentes: a linha diáfana entre os ditos “mundo da arte” e a
“banda desenhada”, e a maneira como as respirações de um a outra são bem mais
complexas do que usualmente se retrata e, mesmo ao contrário da vontade e
opinião dos guardiões das fronteiras estéticas, a transmissão e influência é
bem mais dual e completa do que se costuma mostrar. (Mais)
Gerard Richter é um
dos mais significativos artistas contemporâneos da tradição ocidental, e um dos
mais profícuos e interpelantes proponentes da disciplina da pintura, com uma
carreira alimentada por uma diversidade temática e disciplinar assombrosa.
Tendo saído da Alemanha de Leste, começou por interrogar as formas de
circulação das imagens no Ocidente capitalista em conjunto com Sigmar Polke e
Konrad Lueg com o “movimento” ironicamente chamado de Realismo Capitalista,
numa forma de continuidade com a Pop Art (sobretudo inglesa mas também a
prática de Konrad Klapheck). Todavia, Richter procurou desde logo uma
fabricação de imagens que tem menos a ver com a objectualidade, a cultura
industrial e/ou mediática, do que com uma perspectiva de um quotidiano,
vivências diárias, tanto de uma memória pessoal como cultural, que se expressa
na construção do seu Atlas pessoal (uma colecção de fotografias e
recortes de jornal que se tem articulado cada vez mais como um objecto estético
pelo seu próprio pé, associando-se às práticas históricas de Warburg ou às
artísticas de outros criadores, como Boltanski). Foi graças aos
esforços de sistematização do Arquivo Richter no Museu de Dresden que levou à
descoberta de um caderno de desenhos, datado de 1962, que agora se apresenta ao
público sob a forma de um livro.
O “livro”, portanto, data de um momento em que Richter está ainda no
início da sua carreira de artista e quase que poderia ter servido de cartão de
apresentação para procurar trabalhos com fins comerciais de ilustração. Aparentemente,
existem algumas indicações a este trabalho, como se se tratasse de facto de um
pré-projecto para um livro de artista passível de ser editado, na esteira de um
Frans Masereel ou Otto Dix, por exemplo (e não uma mera colecção de trabalhos
pré-publicados). Essas referências utilizam um título que não compreendemos se
previsto para ser empregue ou se somente fazendo parte da linguagem mágica de
Richter: tratar-se-ia do livro ou caderno de “os homens de negro” ou “homens
negros”. E com efeito, opte-se por considerar as personagens recorrentes destes
desenhos como indiferenciadas entre si ou num sistema diegético-actancial
complexo, elas são homogéneas em termos físicos: figuras masculinas reduzidas a
formas minimais, sem braços, uma cabeça perfeitamente redonda e o que parecem
ser chapéus de abas largas.
Apesar da data, alguns dos desenhos poderão ser anteriores a isso, e
uma rápida consulta da série de monotipias ou linogravuras de 1957, intituladas
Elbe (pelo menos a primeira imagem),
parece demonstrar a partilha do protagonista e, em parte, alguma das
características de fabricação das paisagens, semi-abstractas e com laivos de
desolação feérica.
Outro
crítico, melhor munido de instrumentos e conhecimentos sobre a obra particular
de Richter, poderia integrar melhor este livro na produção do artista no que
diz respeito aos diálogos entre texto e imagem, já que existem algumas obras em
que ele o experimenta, e não sendo Richter, apesar de tudo, alheio à
discursividade teórica sobre a própria obra. Os diálogos entre o artista alemão
e outros dos seus compatriotas ou da cena internacional da época será melhor
perscrutada por críticos de arte, como tem sido feito. Mas são poucos aqueles –
mas há – que apontam para a grande figura tutelar deste livro: Saul Steinberg.
Existem
toda uma série de práticas de fabricação das imagens e de modelação dos
elementos de significado nas imagens de Richter que ecoam nas do artista
romeno-americano. A utilização de aparentes marcas de autoridade
textual-simbólica como assinaturas, escrita, carimbos e objectos “oficiais”
para criar uma ficção de autenticidade documental, a própria ilegibilidade da
escrita que acompanha o hipotético récit, a marcação de manchas com os
dedos ou as mãos para criar texturas espaciais, a simplificação da figura
humana isolada numa paisagem imensa, algumas perseguições temáticas sob a forma
de breves sequências, mesmo que os temas em si sejam distintos dos de
Steinberg.
Recordemo-nos
que um dos livros mais icónicos e definidores de Steinberg seria The Passport, cuja primeira edição data
de 1954. Mas esse livro reuniria trabalhos que haviam sido publicados e
circulado muito antes. Datam do início da década de 1950 as paisagens criadas
com as pontas dos dedos tintadas (há mesmo uma peça intitulada Fingerprint Landscape), assim como
alguns desenhos que aproveitam imagens pré-existentes, ou a materialidade do
papel empregue, e, acima de tudo, a criação dos “documentos” cheios de
carimbos, selos, assinaturas, cabeçalhos oficiais, e a tal escrita ilegível (se
bem que uma peça, In the Manner of
Matisse, de 1946, contenha já essa escrita, e outra de 1947 integre selos e
cabeçalhos). São sobretudo estes aspectos de pseudo-oficialidades que são
herdadas por Richter para adensar a “verdade” dos relatos aqui apresentados. Seria
talvez possível criar outras redes de filiação, já que a figuração e algumas
estratégias de preencher a área da composição com linhas múltiplas é também
análoga ao trabalho do primeiro Edward Gorey (sobretudo The Listing Attic,
de 1954, e de The Object-Lesson, de 1958), mas não poderá haver dúvida
de que é Steinberg a grande referência especular.
No seguimento dessa associação, é curioso como alguns leitores deste
livro de Richter, sobretudo aqueles advindos do mundo da arte, sejam algo tímidos
a empregar a palavra “narrativa”, como se fosse anátema na esfera das artes
visuais. Se bem que de facto não possamos falar de uma diegese organizada de
acordo com as regras clássicas da narratologia, é por demais evidente que se
criam vários momentos não apenas seriais
mas sequenciais, em que a ideia de um
eixo espácio-temporal é respeitada, a atenção é mantida sobre um grupo de
personagens com papéis actanciais claros e há mesmo óbvias relações de
causalidade.
Um
primeiro spread apresenta “A origem
do homem em 10 fases”, apesar da frase estar riscada por cima. Na margem
inferior, e numerados, ainda que também riscados, estão os dez “desenhos” que
vão formando um homem, desde a total ausência de marcas a um paulatino
adensamento e escurecimento de uma nuvem pontilhista até se formar uma
personagem “inteira”. Aliás, é esta pequena sequência que nos faz imaginar que
há menos um trabalho de desenho aqui do que de carimbos. Isto é, que as
personagens em si são inscritas no papel não através do desenho mas da
manipulação de matrizes pré-feitas.
Poderíamos
identificar cada “capítulo” pelas escolhas, claramente organizadas por elos
icónicos, elementos narrativos ou até modos de composição. Um primeiro longo
momento tem a ver com a emergência do protagonista, o surgimento de outras
análogas à primeira, e depois uma espécie de coreia da relação entre o
protagonista e os demais, sempre marcado por uma ideia de isolamento,
afastamento ou mesmo confronto com a mole colectiva, até ao paroxismo de uma
“morte”. Essa morte traduz-se pela sua elevação mutado num anjo, aqui com asas
níveas, aqui descendo com asas de riscos-chamas/fumo negro. Pelo meio, talvez,
uma certidão de óbito. Segue-se depois uma parte aparentemente dedicada a actos
de violência, utilizando-se canhões, voos bélicos em formação e uma pilha
infinda de cadáveres. Depois há uma sessão de equilibrismo e acrobacias,
inclusive com objectos. Mas talvez não seja mais que um interlúdio, já que o
que se segue é a ascensão da figura isolada à de líder (ganha uma capa e a sua
efígie decora um estandarte desfraldado sobre a turbamulta) e, mais uma vez, um
acto de violência extrema, sublinhado pelo poder oficial.
Neste
pequeno gesto, apesar de não ser de forma directa ou referencial, é como se
Richter estivesse a servir de testemunha gráfica face à violência exercida
pelas várias máquinas de Estado, seja os regimes socialistas aos extremos
nacionalistas, irmanando-o a autores tão distintos e espalhados pela História
como Callot, Goya, Picasso, Dix, assim como Ronald Searle e Sue Coe ou Marshall
Arisman.
A
partir daqui, sem jamais abandonar os temas do “um vs. todos” (o que não se
expressa somente em conflito, mas também pela liderança e manipulação,
enfatizando sempre, portanto, a diferença de natureza, mais do que de grau,
entre o “protagonista” e os “demais”) e dos contornos bélicos, entramos numa
fase mais fantástica. O protagonista atravessa uma série de experiências
violentas que lhe alteram o corpo até surgir, miraculoso, sobre o sol.
Depois
disso, segue-se um episódio de normalidade doméstica, com documentos, o
surgimento de filhos, uma criança das quais destrói o pai, para ser ela própria
entronizada (em dois desenhos que lembram também um pouco Sempé, que já nesta
altura tinha trabalhado para a New Yorker).
Mais um interlúdio circense se segue.
A
sessão seguinte é particularmente “palavrosa” e vai experimentando mais
metamorfoses do protagonista, entre devires-animais e devires-máquina,
terminando numa exploração cósmica, entre caminhos de estrelas negras, a
relação com a Lua, e uma brutal sequência de experiências de lançamento no
espaço, finalmente com uma viagem com sucesso (numa espécie de mistura das
aventuras do Barão Munchausen), seguido de explorações cósmicas e, desta vez,
uma multiplicação do si (e é difícil não ver as possíveis comparações com, sim, O Principezinho, de Saint-Exupéry).
Seguem-se o que poderíamos chamar de relatórios e notas de observação dessas
experiências, as quais, mais uma vez, passam pela ideia de reflexo,
multiplicação, transformação, mutação. Mas rapidamente as ideias de conflito,
territorialismo, colonialismo, regressam, terminando numa última imagem
apoteótica e de ascensão do protagonista: desta feita, não sobre o sol, mas no
seu seio.
A questão não é, portanto, assegurar de uma forma declarativa se há ou não uma narrativa, mas tentar descortinar se os elementos que são passíveis de a constituir se adensam de forma suficiente ou se são atomizados irreversivelmente. Se se interpretar a sua relação que todo o novelo de Comic Strip estabelece com o tempo, poderemos ver nas várias estratégias visuais da fabricação de “pseudo-documentos” uma pista. Estes tornam a hipotética narrativa “arquivística”, quer dizer, não uma história que está a decorrer no momento da sua leitura – como costuma ser a regra na banda desenhada, onde a acção visual está sempre no presente - mas antes como algo que é visto desde logo como pretérito. Esta obsessão com uma dinâmica e faceta documental tornar-se-á, como é sabido, numa das espinhas dorsais da obra pictórica de Richter, inclusive o seu emprego numa derrota de si mesmo (as imagens não estão ali como documentos “da verdade”), uma vez que o que advém desse uso é ou uma ficção, ou imagens em puras descontextualizações formais ou ainda em ambivalências que as impedem de cumprir o seu suposto papel original.
Acede-se
assim a uma outra qualidade de desenho. Se é o desenho a linha e pontos,
provavelmente a aparo, que vai sendo burilado ao longo das páginas, existem
intervenções de outros modos de riscar, como os carimbos, ou as dedadas e
aplicações de tinta com a palma da mão “suja”, deixando apenas pequenas sombras
esborratadas. Dessa forma, há como que uma garantia de uma inscrição indicial
do artista, uma marcação directamente afecta ao corpo e passagem tangível dele
na obra que temos nas mãos. Walter Benjamin usa uma metáfora que admiramos
profundamente, quando explica como o “contador de histórias”, em oposição ao
romancista, insiste numa “forma artesanal de comunicação. Não pretende transmitir
o que há de puro 'em si' nas coisas, como o fazem a informação ou o relato. A
narrativa mergulhas as coisas na vida do narrador para depois as ir aí buscar
de novo. Por isso a narrativa tem gravadas as marcas do narrador, tal como o
vaso de barro traz as marcas da mão do oleiro que o modelou”.
Assim,
e até porque há uma certa resistência da parte destes desenhos para que não se
percam jamais as percepções da sua materialidade, da sua bidimensionalidade,
eles mantém-se como tal. Quer dizer, eles não estão aqui somente ou sequer em
“representação” das personagens e suas acções, não se trata de uma “janela para
um mundo ficcional”, mas os seus riscados, rabiscados, borrados, etc., mantêm a
sua qualidade de marcas no papel.
Em
parte, é para isso igualmente que contribui a parte “escrita”, ainda que seja
difícil descortinar se a letra que Richter caligrafa se vai atomizando do
alemão a uma algaraviada, se se trata tão-somente de uma escrita ininteligível,
“à médico”, ou se há algum tipo de exercício de assemia ou de pseudografia, lá
está, à la Steinberg. Um outro crítico associa este livro a Parade, de Si Lewen, de que tivemos
oportunidade de falar, associando ambas as obras pelas abstracções dos espaços,
e pelo relativo ou comparável “silêncio” das narrativas. Mas esse “silêncio” é
discutível em Comic Strip. Não se tratam de um livro “mudo”
como os de Masereel, dado que a escrita, aqui, apesar de tudo, ganha apenas um
valor fictício e objectual de documentação, uma espécie de “verdade fictícia”,
ou até apenas um valor plástico, não de discurso vivo, testemunhal, que era o
fito de Lewen, Masereel, Dix, etc.
Richter
considerou, algures na sua correspondência, esta pequena obrinha como estando
na “orla” da arte, confirmando de certa forma todos esses preconceitos que
apenas hoje começa a ser delido e, mesmo assim, sem passos seguros. Tratar-se-á
esta publicação de um desses passos, até mesmo contra essa ideia de
Richter? Publicado num livro esguio e alto, com folhas em dobra francesa, e uma
capa num tecido texturado e com um reflexo brilhante, há uma certa dissociação
entre a sua delicadeza e beleza, e o seu conteúdo, e que terá sido ditado
certamente mais por imperativos económicos e comerciais do que por uma justeza
do projecto. No entanto, não deixa se ser um privilégio e uma fortuna (ecoada
até pelo preço do livro) podermos “recuperar” este texto – ou constituí-lo como
tal – de G. Richter.
Nota final: agradecimentos a D. Isabelinho, por ter alertado da existência do livro.
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