Serve o presente post para comentar, de forma muito breve, uma pequena publicação que acompanha uma exposição de vários trabalhos de Francisco Sousa Lobo que está a ter lugar na escola Ar.Co, em Xabregas, até 11 de Maio. Esta exposição inclui desenhos originais, xilogravuras e serigrafias, a maior parte dos quais inéditos, alguns associados a projectos de banda desenhada, outros de valência autónoma, e ainda cadernos de trabalho, publicações, matrizes das gravuras, pequeno mural, e outros desdobramentos que merecem a atenção daqueles que desejam conhecer com maior intimidade a lavra deste autor. É, igualmente, uma venda (inclusive prints, posters e tote bags) e, acima de tudo, um pequeno exercício de “retomar ar”. Finalmente, uma pequena publicação, em edição limitada, numerada e assinada, um desdobrável de 8 faces, em serigrafia a duas cores, que contém uma pequena banda desenhada de 4 pranchas, em inglês.
A expressão “retomar ar” parece depreender que haveria, num ponto anterior, a depleção do oxigénio necessário para a continuidade da vida, o que é suspeito, dado que o autor não tem, de forma alguma, dado sinais de abrandamento do seu trabalho, tome este as formas que tomar, publicando ou expondo, curto ou longo, desenhado somente ou colorido e legendado. Mas há algo de balanço, sopesar, organização dos materiais, para regressar a mais passos. Acima de tudo, há uma concentração destes trabalhos na atenção para com toda uma esfera (ou outra configuração mais livre) de referências advindas do “mundo da arte” (especificamente o que o termo Artworld confere). Na costumeira falta de verdadeiro diálogo interdisciplinar do nosso círculo artístico – galerias e museus, feiras de arte e embaixadas artísticas, e inclusive as instituições estatais que deveriam apoiar projectos artísticos, ignoram de forma altiva qualquer produção que aparente ter um “pé na banda desenhada”, entendendo esta última de uma forma primária, primitiva e ignorante – que cria um deserto na recepção da banda desenhada (não obstante gestos absolutamente isolados e sem consequências de criar sistema), o autor opta por lançar uma nuvem na galeria de uma escola artística multidisciplinar, na qual foi discente e mais tarde docente.
Existindo várias referências, exploradas visual, cromática, temática, composicionalmente, etc., acima de todas estará a do artista e performer Bas Jan Ader. Talvez as características que mais se salientariam em comum entre Ader e Lobo serão, em primeiro lugar, e como sua base, a exposição de um complexo compósito do corpo real, tangível, empírico do artista e a personalidade de títere e personagem no interior das narrativas (fotografias, performances, vídeos, banda desenhada, etc.), seguindo-se, mas enquanto resultado dessa exposição, de uma vulnerabilidade, uma propensão para a queda e, nessa mesma queda, a descoberta da gravidade. A gravidade é aquela força sobre a qual Simone Weil discorre em A Gravidade e a Graça que nos alerta da nossa pertença à terra, e uma relação quase neo-platónica com o acto criativo. E este está no coração do novo livro/brochura/manifesto de Sousa Lobo.Como é de esperar, a história Paper Wraps Rock contém vários níveis hipodiegéticos envolvendo um leve, mas quase seguro, “pacto autobiográfico”. A primeira página é um exercício idêntico ao da abertura de Se numa noite de inverno um viajante, de Italo Calvino, dirigindo-se de imediato ao próprio leitor/espectador com um “you”, e abarcando-o ou abarcando-a, no acto de visita à própria exposição e ao consequente acto de leitura da brochura. Moldura 1. depois entramos numa cena breve que implicará o que supomos ser uma memória de infância, em torno de um alienado local, mas que serve somente como pedra de toque para retornar ao próprio autor (avatar, seja auto-fictivo seja autobiográfico). Daqui seguimos para um encontro primitivo com a possibilidade de um percurso de fazer arte, que se vaticina preso ao papel. Molduras 2 (“quem sou”) e 3 (“quem faço”). Finalmente chega-nos a missiva final, a “mensagem”, o “manifesto”, sobre a relação da Arte (aqui, com maiúscula institucional) e a banda desenhada, terminando toda a analogia do jogo pedra-tesura-papel. Moldura 4, que não termina, mas bem pelo contrário determina um recurso efeito Droste, que nos permite navegar e “cair” para trás e diante nestes níveis, aliás o percurso mental obrigatório na visita à exposição e leitura dos materiais, associando uma peça à outra, desligando-as, tecendo outras conexões, em cartografias de movimento variadas e variáveis.
No livro citado de Weil, lemos:
“Ora, ao homem não foi dado criar. É uma péssima tentativa de imitar Deus.
“Não conhecer e aceitar essa impossibilidade de criar é a origem de muitos erros. É-nos necessário imitar o acto de criar, e existem duas imitações possíveis – uma real, outra aparente: conservar e destruir.
“Nenhum vestígio de «eu» na conservação. Mas existe na destruição .«Eu» deixa a sua marca no mundo ao destruí-lo.”
Seria necessária uma análise mais fina e aturada para tentar compreender se Sousa Lobo pende mais para a conservação ou a destruição. Ou, por outras palavras, a que tipo de “auto-apagamento” o autor se dedica através da exposição dos títeres que nos fazem vislumbrar possíveis facetas sociais da sua pessoa. Esperamos tão-somente que o mar pelo qual Lobo navega não seja o de Ader, ao ponto da dissolução absoluta, e que este “ar retomado” insufle as velas do autor português para as praias de cada vez mais leitores atentos.
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