Este
é o terceiro projecto em que falamos, num tão curto período, e de
forma seguida, associado ao nome de António Jorge Gonçalves, mas
isso deve-se à sua produção contínua e à coincidência dos seus
esforços editoriais, trabalhos em colaboração e, agora, a solo,
virem a lume também nesse mesmo intervalo e, cada qual a seu modo,
serem estimulantes à escrita, ao contrário de tantos outros livros
que vão surgindo, por vezes até com mais fortuna e prémio da
recepção pública, mas que de pouco adiantam a novas inflexões da
linguagem ou seu pensamento. (Mais)
Desta
feita, trata-se de um livro a solo, que dificilmente se poderá
descrever com categorias expectáveis - “diário gráfico”,
“memória”, “banda desenhada autobiográfica”, “caderno de
desenhos”, “livro de artista” - ainda que possa participar na
natureza, ou seus elementos, de todas elas. Para mais, a integração
desta obra numa colecção tão particular – a não-ficção
literária da Companhia das Letras, onde o autor ombreia com a
escrita das experiências íntimas e o burilar da língua portuguesa
de uma Djaimilia Pereira de Almeida ou Susana Moreira Marques –
dá-lhe um palco nem sempre disposto ao convívio por igual com a
literatura gráfica, se assim podemos aproveitar a expressão feliz
de Rui Zink.

A
primeira impressão do livro é aquela criada pelo “ritmo” da sua
apresentação, a “fórmula” da sua estruturação. Um primeiro
spread apresenta-nos quatro frases, manuscritas, dispostas de
maneira afastada; um segundo spread revela-nos uma grelha de
quatro desenhos, vinhetas mesmo, já que o texto fala do propósito
de desenhar uma “página de banda desenhada” por dia. Logo a
seguir, a grelha das quatro vinhetas é apagada com uma vinheta
substituída por outra frase e está lançada assim a repetente mas
variável “grelha” de 4 vinhetas por spread, entre
desenhos e frases curtas. Essa estruturação de duas vinhetas por
página, de objectos aparentemente relacionados directamente entre si
– por elos espaciais, temporais, temáticos – recorda-nos um
pouco aqueles exercícios de pares criados, de maneira independente,
por Pascal Matthey e Nadice Redlich, os quais seriam repescados mais
tarde por João Carola. Mas há aqui um propósito mais alinhado,
talvez. Adiante no livro, um dos “pares” mostra-nos dois objectos
basculantes: um pilão de passeio e uma janela (de casa de banho?). É
aí que se nos surgiu uma das perguntas a colocar ao livro: todos os
desenhos conhecem-se na “inclinação”? Isto é, o clínamen
de que Epicuro falava, os desvios na chuva incessante de átomos como
condição de possibilidade da existência do universo, e que Harold
Bloom consideraria uma das “razões da influência” na sua teoria
literária? Isto obrigar-nos-ia a cartografar então todas as
influências possíveis de António Jorge Gonçalves, e depois
compreender em que medida é que elas se “desviavam” no seu
trabalho para a fabricação da sua própria, nova, límpida,
linguagem e prática.
Não
o faremos. Não apenas por esse diálogo, neste autor, ser imenso,
informado e subtil, como cremos que este livrinho é, em si mesmo,
corolário de uma contínua e aturada reflexão sobre o desenho pelo
autor. E não é um “ensaio” que nos apresente uma só solução,
uma certeza ou ilusão de familiaridade com a sua resposta.
Insistimos sobre a “fórmula” da estrutura (4 itens por spread),
mas a verdade é que quando se formam padrões – os tais ritmos
dialogantes entre as imagens, entre estas e os textos, na sua
paginação - a sua quebra torna-se mais significativa ainda. E ela
virá, mais tarde.
Eis
uma outra pergunta que nos surge também: num livro em que se
intercalam desenhos e textos em distribuições espaciais idênticas
(repetimos: dois espaços por página, um sobre o outro), surge outra
pergunta: quando o texto se cala, o desenho fala? “primeiro
desenhas, só depois pensas e escreves”, lemos. Mas não se poderia
dizer que desenhar é pensar, ou até que desenhar é
escrever, de certo modo? Marcas que se delineiam para dizer
alguma coisa que é depois interpretado, lido, pelo
leitor? E não nos queremos referir a estas frases como numa espécie
de misticismo, mas de rigorosa compreensão semiótica desta
actividade de deixar marcas gráficas inscritas no papel, tal como de
uma perspectiva fenomenológica: o desenho enquanto marca de si
mesmo, de ter sido feito, de transmitir um movimento do corpo do
artista, de tradução dos seus pensamentos, íntimos e não-ditos
por palavras, e tremidos em cada linha colocada.

Não
é (nunca) legítimo penetrarmos na vida pessoal do autor, mas tendo
em conta o modo como alguma dessa vida é expressa na sua obra
publicada, ou pelo menos como essa vida é expressa assim, estamos em
crer que podemos ler este livro em conjunto com aqueles em que o
autor mais expôs o seu risco de vida (A minha casa não tem
dentro), e as reflexões associadas à mortalidade, não fosse a
mãe, no lar, não tanto a protagonista, mas o ônfalo do presente
volume. É a ida dela para um lar que desencadeia o desenho de uma
página de banda desenhada por dia, como declarado nas primeiras
frases deste livro. E há uma narrativa, nítida, derradeira,
expectável mas sempre triste, em que o livro termina. O fantasma da
morte insufla-se na vida dos vivos. O tremor desses medos, mesmo que
sendo a mais absoluta certeza da vida humana, vagueiam na linha
debuxada sobre o papel. Desenhar é temer também, então.
Em
algumas frases do livro, e mesmo a própria composição específica
de todas as imagens, faz-nos adivinhar, talvez erroneamente, o
processo do livro. O autor terá tirado fotografias de “objectos de
atenção”, que depois emprega como modelos para os desenhos. Não
serão, portanto, desenhos de campo, in
situ,
modelo ao vivo. Mas poderão, na verdade, sê-lo, uma pausa no
percurso, uns minutos em pé face a um canto do mundo, um pormenor da
vista, um descanso do tremor do dia. Seja como for, desenhos ou
fotos, são todos “objectos” de um percurso. O texto revela parte
da razão dos passeios ou deslocações, a nossa educação espacial
ajuda-nos a adivinhar o processo de observação e concepção
imediata. E por mais longe que nos leve, na interpretação, haverá
sempre um caminho
de volta
para a compreensão de que o autor está, agora, aqui, neste papel.
Nota
final: agradecimentos à editora, pela oferta do volume.
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