13 de abril de 2025

O caminho de volta. António Jorge Gonçalves (Companhia das Letras)

Este é o terceiro projecto em que falamos, num tão curto período, e de forma seguida, associado ao nome de António Jorge Gonçalves, mas isso deve-se à sua produção contínua e à coincidência dos seus esforços editoriais, trabalhos em colaboração e, agora, a solo, virem a lume também nesse mesmo intervalo e, cada qual a seu modo, serem estimulantes à escrita, ao contrário de tantos outros livros que vão surgindo, por vezes até com mais fortuna e prémio da recepção pública, mas que de pouco adiantam a novas inflexões da linguagem ou seu pensamento. (Mais)

Desta feita, trata-se de um livro a solo, que dificilmente se poderá descrever com categorias expectáveis - “diário gráfico”, “memória”, “banda desenhada autobiográfica”, “caderno de desenhos”, “livro de artista” - ainda que possa participar na natureza, ou seus elementos, de todas elas. Para mais, a integração desta obra numa colecção tão particular – a não-ficção literária da Companhia das Letras, onde o autor ombreia com a escrita das experiências íntimas e o burilar da língua portuguesa de uma Djaimilia Pereira de Almeida ou Susana Moreira Marques – dá-lhe um palco nem sempre disposto ao convívio por igual com a literatura gráfica, se assim podemos aproveitar a expressão feliz de Rui Zink.


A primeira impressão do livro é aquela criada pelo “ritmo” da sua apresentação, a “fórmula” da sua estruturação. Um primeiro spread apresenta-nos quatro frases, manuscritas, dispostas de maneira afastada; um segundo spread revela-nos uma grelha de quatro desenhos, vinhetas mesmo, já que o texto fala do propósito de desenhar uma “página de banda desenhada” por dia. Logo a seguir, a grelha das quatro vinhetas é apagada com uma vinheta substituída por outra frase e está lançada assim a repetente mas variável “grelha” de 4 vinhetas por spread, entre desenhos e frases curtas. Essa estruturação de duas vinhetas por página, de objectos aparentemente relacionados directamente entre si – por elos espaciais, temporais, temáticos – recorda-nos um pouco aqueles exercícios de pares criados, de maneira independente, por Pascal Matthey e Nadice Redlich, os quais seriam repescados mais tarde por João Carola. Mas há aqui um propósito mais alinhado, talvez. Adiante no livro, um dos “pares” mostra-nos dois objectos basculantes: um pilão de passeio e uma janela (de casa de banho?). É aí que se nos surgiu uma das perguntas a colocar ao livro: todos os desenhos conhecem-se na “inclinação”? Isto é, o clínamen de que Epicuro falava, os desvios na chuva incessante de átomos como condição de possibilidade da existência do universo, e que Harold Bloom consideraria uma das “razões da influência” na sua teoria literária? Isto obrigar-nos-ia a cartografar então todas as influências possíveis de António Jorge Gonçalves, e depois compreender em que medida é que elas se “desviavam” no seu trabalho para a fabricação da sua própria, nova, límpida, linguagem e prática.


Não o faremos. Não apenas por esse diálogo, neste autor, ser imenso, informado e subtil, como cremos que este livrinho é, em si mesmo, corolário de uma contínua e aturada reflexão sobre o desenho pelo autor. E não é um “ensaio” que nos apresente uma só solução, uma certeza ou ilusão de familiaridade com a sua resposta. Insistimos sobre a “fórmula” da estrutura (4 itens por spread), mas a verdade é que quando se formam padrões – os tais ritmos dialogantes entre as imagens, entre estas e os textos, na sua paginação - a sua quebra torna-se mais significativa ainda. E ela virá, mais tarde.

Eis uma outra pergunta que nos surge também: num livro em que se intercalam desenhos e textos em distribuições espaciais idênticas (repetimos: dois espaços por página, um sobre o outro), surge outra pergunta: quando o texto se cala, o desenho fala? “primeiro desenhas, só depois pensas e escreves”, lemos. Mas não se poderia dizer que desenhar é pensar, ou até que desenhar é escrever, de certo modo? Marcas que se delineiam para dizer alguma coisa que é depois interpretado, lido, pelo leitor? E não nos queremos referir a estas frases como numa espécie de misticismo, mas de rigorosa compreensão semiótica desta actividade de deixar marcas gráficas inscritas no papel, tal como de uma perspectiva fenomenológica: o desenho enquanto marca de si mesmo, de ter sido feito, de transmitir um movimento do corpo do artista, de tradução dos seus pensamentos, íntimos e não-ditos por palavras, e tremidos em cada linha colocada.


Não é (nunca) legítimo penetrarmos na vida pessoal do autor, mas tendo em conta o modo como alguma dessa vida é expressa na sua obra publicada, ou pelo menos como essa vida é expressa assim, estamos em crer que podemos ler este livro em conjunto com aqueles em que o autor mais expôs o seu risco de vida (
A minha casa não tem dentro), e as reflexões associadas à mortalidade, não fosse a mãe, no lar, não tanto a protagonista, mas o ônfalo do presente volume. É a ida dela para um lar que desencadeia o desenho de uma página de banda desenhada por dia, como declarado nas primeiras frases deste livro. E há uma narrativa, nítida, derradeira, expectável mas sempre triste, em que o livro termina. O fantasma da morte insufla-se na vida dos vivos. O tremor desses medos, mesmo que sendo a mais absoluta certeza da vida humana, vagueiam na linha debuxada sobre o papel. Desenhar é temer também, então.

Em algumas frases do livro, e mesmo a própria composição específica de todas as imagens, faz-nos adivinhar, talvez erroneamente, o processo do livro. O autor terá tirado fotografias de “objectos de atenção”, que depois emprega como modelos para os desenhos. Não serão, portanto, desenhos de campo, in situ, modelo ao vivo. Mas poderão, na verdade, sê-lo, uma pausa no percurso, uns minutos em pé face a um canto do mundo, um pormenor da vista, um descanso do tremor do dia. Seja como for, desenhos ou fotos, são todos “objectos” de um percurso. O texto revela parte da razão dos passeios ou deslocações, a nossa educação espacial ajuda-nos a adivinhar o processo de observação e concepção imediata. E por mais longe que nos leve, na interpretação, haverá sempre um caminho de volta para a compreensão de que o autor está, agora, aqui, neste papel.

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do volume.

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