2 de junho de 2025

Borboleta. Madeleine Pereira (Asa)

Poderemos conhecer-nos melhor se ouvirmos o que os outros dizem de nós? Mas não é problemático desde logo estabelecer esta espécie de diferença entre um “nós” e “outros”, quando esses outros são também um pouco de nós, e nós os outros? Apesar da bazófia do costume, a verdade é que a identidade portuguesa é feita também sempre com mal-entendidos, mitos, confusões, ignorâncias, e, no fundo, desde logo de um ponto de partida erróneo em querer criar uma caracterização demasiado estanque e nada porosa a toda uma espécie de trânsitos, influências e flutuações, contínuas, de traços identitários. Tal como todas e quaisquer identidades, nacionais ou mesmo pessoais. Mas ter dúvidas estimula a busca. (mais)

É isso o que alimenta a da presente autora. Tal como ocorrera com As paredes têm ouvidos, de Giorgio Fratini, Portugal de Cyril Pedrosa, um pouco Afirma Pereira de Pierre-Henry Gomont, Os Portugueses de Olivier Afonso, O Som do Fado de Nicolas Barral (e, veremos, o seu livro sobre Pessoa), Edgar de Mathieu Sapin, e a antologia Lisboa é very very very typical, entre alguns outros, o Borboleta, de Madeleine Pereira, de origem portuguesa, vem-nos “devolver” uma imagem de um Portugal a partir de um posicionamento (quase) externo: a de uma jovem francesa, cujo contacto com a cultura portuguesa é privilegiado mas ao mesmo tempo “diluído” pela inserção total na cultura, e presencial, francesa, e os vários preconceitos tecidos nessa mesma sociedade em relação aos portugueses, nutridos durante as “décadas de cartão” dos anos 1960 e 1970 naquela país.

O livro assume-se como uma construção a partir de um ponto de vista autobiográfico. A Madeleine protagonista revela não saber muito sobre a história de Portugal, fora umas coisas que foi aprendendo com a avó, naturalmente uma concierge em Paris (a dado momento, 60% dessa ocupação estava sob a responsabilidade de emigrantes portuguesas), e algumas aulas de português na escola. O pai, apesar de falar português desde que Madeleine e a sua irmã nasceram, parece fechar-se em copas no que diz respeito a visitas mais intensas ao país, contar-lhes o passado, as circunstâncias da saída do país e a chegada a França quando tinha 12 anos, tornando esse silêncio num segredo, segredo o qual impelirá ainda mais a autora nessa sua senda. A autora lança-se a um projecto de banda desenhada – o qual estamos a ler agora mesmo – em que decide vasculhar esse passado e essa vida. Mas o pai pouco diz. Resta-lhe então fazer perguntas a outros portugueses, desde amigos do pai a outros membros da família.

Cada uma dessas ajudas desdobra-se num testemunho que é mostrado logo pela autora, criando um ritmo clássico de uma narrativa-moldura, no presente da história, e as analepses pessoais de cada um. Estas, por sua vez, criam como que um mosaico de visões e experiências das razões que levaram tantos portugueses a “dar o salto”, como se costuma dizer, ora legal ora ilegalmente, ora buscando trabalho ora fugindo às guerras coloniais, ao mesmo tempo que vão contribuindo para um retrato de Portugal nessas décadas a que chamei “de cartão”, para recordar as palavras famosas desse verdadeiro hino dos emigrantes, Um português, de Linda de Suza.

Essas histórias apresentam-se, como é de esperar, com tantas dimensões terríveis – a fome, o mau emprego, a carestia, as imposições de silêncio político, a opressão patriarcal, o medo de morrer na guerra – como aquelas que depois ganham com a distância e patina da nostalgia contornos saudosos – a comida, a paisagem, certos convívios.

A autora recorre por vezes a expedientes em que as personagens expõem informação sobre o estado político do país, a situação das guerras coloniais, percentagens sociais, que diminui por vezes a ficção naturalista dos diálogos e situações, cumprindo antes um papel quase informativo, e de introdução. Estou em crer que muitos dos leitores portugueses, sobretudo aqueles familiarizados com a história, não encontrarão nada de novo, mas também poderá haver sinais de reconhecimento com quem partilhe essa história de tantos nossos familiares. Realidade a qual cumpre recordar, mais ainda, nos nossos dias, a bem de justiças. Mas recordemo-nos de que tudo isto é tecido, em primeiríssimo lugar, para um público francófono, senão mesmo exclusivamente francês, que também com isto poderá negociar a sua própria identidade como tendo dimensões de outras fontes, e no que diz respeito a este livro, a uma costela portuguesa.


Desenhado com linhas sólidas coloridas e suaves, como se se tratassem somente de um fino aparo, brevemente lançado, seguido de preenchimentos a lápis de cor ou cera, a estilização de Pereira é bastante livre, cartoonesca, recordando talvez um William Steig, ou certos autores das tradições fracófonas da imprensa satírica ilustrada, mas bem mais suave, como dizíamos, nos seus pormenores. A composição das páginas é sóbria, ou mesmo clássica, com a típica variedade do storytelling franco-belga, ainda que com a soltura contemporânea.

O mais importante, todavia, é o coração da narrativa, o movimento de aproximação à figura paternal, esquiva, dubitativa. Todos aqueles testemunhos históricos, e a breve descoberta e navegação de Madeleine pela grande Lisboa, mesmo quando afastados da experiência concreta do pai Pedro, rondam em seu torno, delineiam ainda mais a sua ausência e, ao apertarem o cerco, deslocam alguns dos obstáculos desse silêncio. Poderemos não ter acesso directamente à visão de Pedro. Contudo, essa possibilidade acaba por despertar. E isso é felicidade suficiente.

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro. Gostava que recordassem igualmente que houve uma exposição dos originais deste livro, quando do seu lançamento, na Tinta nos Nervos, na Primavera do ano passado.

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