Poder-se-ia
argumentar que a banda desenhada nasceu (“always already”,
apetece acrescentar) num ambiente meta-textual. Quer creiamos na
teoria da origem num só ponto/autor (Töpffer) ou em múltiplas
origens (cf. Thierry Smolderen), encontraremos em muito dos exemplos
da banda desenhada da modernidade (a partir do século XVIII)
experiências que jogam com a própria forma que se foi cristalizando
no que se conheceria por esse nome. Quer se pense nos comentários
sobre o próprio desenho no interior da narrativa (de novo, Töpffer),
ou na mostra de marcas pseudo-indexicais no próprio trabalho (Doré),
ou ainda por revelar as próprias limitações do uso das imagens
fragmentárias (Christophe, Frost, Caran D'Ache, Verbeck), sempre
existiram artistas que exploram a própria materialidade do meio como
um comentário auto-reflector. Contudo, é também discutível o
facto de que, ao longo da sua história, a banda desenhada se foi
tornando mais ou menos subsumida a formas e convenções “clássicas”,
as quais contribuíram para a noção de que este seria um meio
transparente, aberto de forma simples para um espaço de
mundos imaginários. É graças a essa história (ou melhor, a essa
percepção parcial da história), ou “normalidade”, que certos
autores podem ser vistos como “experimentais”, “vanguardistas”,
“diferentes”, “artísticos”, e por aí fora. (Mais)
Independentemente
das recomposições sociais e culturais que têm ocorrido ao longo do
século XX e XXI, sobretudo as que dizem respeito à recepção
crítica da banda desenhada como um todo (que nunca o é, é sempre
fragmentária), esta é uma arte ainda vista como estipulando-se por
denominadores normativos, contra os quais surgem estas “excepções”,
em vez de serem vistas como pura e simplesmente práticas correntes.
Ainda assim, uma das possíveis revitalizações da banda desenhada,
enquanto prática artística, passa precisamente por um ou outro tipo
de reformulações materiais, um repensar do próprio formato do
livro ou da sua navigabilidade de leitura. Existirão vários graus
dessa prática, mas estamos em crer que Ruppert e Mulot, Zak Sally
(esperamos vir a falar de projectos destes artistas em breve), Pedro
Franz, e uns quantos outros, conseguem ultrapassar as expectivas
do... poderemos dizer?, além-livro.
Marc-Antoine
Mathieu sempre construiu as suas melhores meta-bandas desenhadas
perfeita e profundamente ancoradas na tradição dita franco-belga.
Muitos dos seus livros, sobretudo a série protagonizada por
Julius-Corentin Acquefacques, são álbuns típicos, do tipo 48CC.
Mas mesmo noutros livros, sejam publicados pela L'Association ou pela
Delcourt, ou noutras plataformas, os seus livros jogam com as
expectativas criadas por esses formatos, colecções ou vida social
particulares desses títulos. O mesmo acontece com este livro-livro,
ainda que a sua capacidade de reformulação não seja tão distinta
e forte quanto a dessas outras referências.
O
impronunciável título expressa-se por uma grossa e infográfica
seta, apontando para a direita. Na capa, a personagem parece não
apenas olhar para o horizonte infinito que se estende atrás (à
frente dele), mas a ligeira inclinação do pescoço faz-nos
acreditar que a sua linha de visão repousará no título. Ele olha,
portanto, a direcção pela qual deve partir. O livro inicia-se na
mais completa escuridão, uma porta que se abre para um deserto
iluminado, e a viagem da personagem.
Nunca
lhe vemos o rosto. Mesmo quando está virada para nós, o seu chapéu
tapa-lhe o olhar, ou uma sombra, a ou a posição. Ou, mesmo que um
plano e aproxime dele, a sombra não abandona o rosto. Talvez seja
mesmo parte constituinte do seu rosto, e não estejamos no plano da
representação.
Inexoravelmente,
ele avança, e nós com ele, virando cada página. Sistemática e
repetidamente, instruções surgem sob a forma de setas: ora em pólos
de múltiplas escolhas, ora estruturas escondidas sob a areia, ora
inscrições numa parede, bússolas e papéis impressos, um novelo de
setas. O homem continua a caminhar, penetra edifícios, persegue
sombras, obedece a instruções aleatórias ou de propósitos
ocultos, tomba na inevitável armadilha, percorre labirintos,
deixa-se levar por correntes, imagina, talvez, ser capaz de escapar a
esse movimento. “Imagina” é talvez uma palavra deslocada, neste
contexto, pois não há dimensões psicológicas a explorar em →,
apenas a espessura brevíssima e momentânea da página que
folheamos. Todavia, o tempo é também linear de uma forma final, já
que o homem envelhece, e possivelmente encontra a morte quando se
confunde com a própria sombra, a qual partilha a forma da seta.
Poderemos então ler →,
quem sabe, como o contrário da lenda de Peter Schlemihl: apesar do
protagonista deste livro ter uma sombra sua, ele parte em busca de
outra, e ao encontrá-la, chega ao fim do movimento.
Tal
como noutros casos da obra de Mathieu, o autor deseja que a leitura
do livro seja igualmente um exercício de pensamento sobre a própria
leitura, e o objecto que percorremos. Em termos da primeira, a
imitação absoluta do movimento e da linearidade do percurso com a
unidireccionalidade do livro torna-se tão patente que se torna um
reflexo quase cómico, irónico, mas também dramático. Não podemos
escapar a ele sem que paguemos o preço de não
ler. Quanto à
materialidade, o livro é interrompido a três quartos, quando o
protagonista se depara com uma mesa no meio do deserto cheia de
objectos: uma moldura com um retrato, um embrulho, uma colecção de
pesa-papéis de vários tamanhos, um molho de chaves, uma caixa de
fósforos, um relógio despertador, caixas embutidas, um pião e um
livro. Esta descrição é também pobre, pois é apenas por
aproximação: todos esses objectos têm a forma das setas. O livro é
aberto e lido pelo protagonista: tem as páginas totalmente em
branco, com excepção dos cantos exteriores onde está impressa a
seta, repetida. A meio desse livro, o protagonista depara-se com um
desdobrável integrado. Nós também. A partir dessa página, não
apenas a focalização do narrador visual está encaixada com a do
leitor em escalas diferentes (algo que ocorre de Tintin
a vários exemplos da literatura), como o nosso próprio movimento,
desdobrar, leitura, se confunde ou imita a do protagonista. Se todo o
livro poderá ser um convite à ilusão de que o protagonista e o
leitor são a mesma pessoa, aqui a ilusão é total, ou se nos for
permitido o paradoxo, diríamos que a imersão transborda.
O
desdobrável revela uma mensagem, encriptada, tal como a contra-capa
do livro lido pelo protagonista, levado por ele na continuação do
percurso, mas desaparecendo no bolso do casaco (bolso que desaparece
também). A mensagem é legível, ou decifrável, na medida em que
essas “letras” são apresentadas também como o nome do autor e
da editora no interior, o que ajuda a criar uma chave interpretativa.
A mensagem não é particularmente obscura, mas tampouco
recompensadora, do acto de a decifrar: é tão-somente uma camada
adicional à estranheza procurada pelo autor, mas sem que se crie um
total absurdo, como ocorreria noutros dos seus trabalhos. Por vezes
sentimos que este movimento, deste livro, é apenas um breve truque,
um efeito, e não propriamente uma pesquisa profunda sobre o acto de
desfrutar e abandonarmo-nos à leitura de um livro.
Louis
Lüthi, no seu pequeno ensaio de On
the Self-Reflexive Page,
(Roma Publication; 2010)aponta Tristam
Shandy como “o
inventor da página – a página não enquanto recto
ou verso
de uma das folhas de papel que são juntas para fazer um livro, mas
como o espaço
determinado num ponto específico da narrativa”
(minha ênfase). Mathieu, com →,
transforma toda e qualquer página num espaço determinado do
percurso do protagonista. A comercialização do livro tem obrigado à
referência ao seu título “traduzido” em palavras como Sens,
“Sentido” [que usamos para os ficheiros das imagens],
em ambas as acepções, de direcção espacial e significado. Em
ambos os casos, parece-nos haver aqui alguma contrição. Tememos
mesmo que nos ficamos por um scherzo,
interessante até ao ponto do seu desvendamento, que é rápido e
curto, e cuja sobrevivência na multiplicação de sentidos não fica
de forma alguma assegurada pela sua inflexível unidireccionalidade.
Isto é, seria falso contemplá-la como uma obra metaléptica. Bem
pelo contrário, a sua implacável decisão e afirmação acaba por
esgotar a sua abertura, fechando a viagem antes de a encetar.
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