Comecemos
por este último ponto, por ser o mais superficial mas também
paradoxal. Estamos em crer que um determinado selo vai construindo-se
por vias de acumulação das escolhas editoriais que lhe pertencem. A
Devir, sendo uma casa com alguma variedade nos títulos que propõem
ao seu público, tem neste selo ou colecção uma escolha por volumes
que se pretendem de uma maior maturidade literária, emocional e de
relevância cultural na banda desenhada (mesmo que com Habibi
se possa abrir a latas discussões, não se sonegará a sua
importância nessa direcção). Ora parece-nos que Parker
não deixa de ser um estranho elemento nessa linha, já que se
conforma quase na perfeição na literatura
de género,
sem que procure colocá-la num estado de reflexão e/ou reinvenção
particularmente intenso.
Na
verdade, Parker
parece mesmo ser uma confirmação de toda a espécie de elementos
“soltos” que décadas de literatura, cinema e banda desenhada
noir
ou “de crime” nos tem habituado. Ainda com Schaeffer,
compreendemos o que aproxima e ao mesmo tempo dista este novo texto
dos demais com que o poderíamos comparar (de Maigret a Hammett, de
Bogart a Jean-Pierre Melville, de Highsmith a Montalbán, e as séries
de banda desenhada Criminal,
Stray
Bullets,
Hit,
etc., haverá um sem-fim de referências possíveis para criar
constelações): “de uma só vez, encontramo-nos numa relação de
semelhança e dissemelhança entre textos, sem excluir uma relação
de exemplificação entre um texto e uma propriedade comunicacional.”
Tendo em conta a data da sua publicação original, 1962, The
Hunter
parece pertencer às inflexões que a novela policial ou de crime
(inclusive no cinema) tiveram com os ares da contra-cultura do final
dos anos 1950 e princípios dos anos 1960. Uma certa melancolia,
mal-estar e talvez mesmo um elogio ao niilismo parece estar presente
nesta escrita. Não existem propriamente qualidades redentoras nesta
primeira novela, e isso mantém-se, naturalmente, na sua adaptação
à banda desenhada.
A
atenção para com uma personagem não-heróica, e bem pelo contrário
criminosa e sem arrependimentos, não é uma ideia propriamente nova.
De Arsène Lupin a Fantômas, passando pelos assassinos de
Jean-Pierre Melville até às exploitations
de Tarantino, há todo um historial de narrativas em que o mundo é
apresentando menos como um quadro onde os papéis do bem e do mal se
encontram claramente distribuídos, mas onde tudo é negativo, e a
questão da sobrevivência, as mais das vezes pela via da violência,
está assegurada como matéria principal da narrativa.
Estritamente
falando, Parker,
O Caçador
não é um noir,
uma vez que temos de quando em vez episódios focalizados por outras
personagens a que Parker não poderia ter acesso. Porém, como é
forçoso desse género, toda a trama é conduzida pela sua
perspectiva, ao ponto mesmo de termos como fio condutor as suas
próprias palavras ou voz, sob a forma de legendas flutuantes ao
longo das páginas. As primeiras páginas são um tour
de force
dignos de um filme como D.O.A.
(Rudolph Maté, 1950), em que a apresentação da personagem,
inclusive do seu indómito carácter, é feita numa sequência “muda”
e descentrada, para depois lhe revelar o rosto cansado.
Aliado
à sua reemergência do “mundos dos mortos”, compreender-se-á
essa transformação de Parker como tendo tons homéricos. Este é um
ladrão exímio, cru e profissional, o arquetípico
tough guy,
estamos em crer que “justo” no seu comportamento com os demais,
na distribuição da riqueza alheia (o que se verificará de forma
mais clara nos volumes subsequentes) mas que, dada a terrível
traição a que foi sujeito, vê justificada toda a vendetta
violenta que constrói a espinha dorsal da novela. Todo O
Caçador,
na verdade, é uma construção através dos seus actos de violência
desabrida, extrema, apenas retrospectivamente justificada pelo trauma
indizível a que se viu obrigado. E isso coloca o leitor numa posição
desconfortável: por um lado, a simpatia do homem que consegue
vingar, literalmente, a sua justiça; por outro, a abjecção sem
limites a que se entrega nessa senda: matança sem pestanejar,
batendo nas mulheres sem pejo (são poucas as que participam, e não
muito activamente), mutilando-as para despistar os demais,
aproveitando a boa vontade dos outros como pode, sejam estes
“inocentes” ou não. Independentemente do cômputo das mortes, e
da sua justificação, uma das pessoas que mata, apertando-lhes o
pescoço, é particularmente viciosa (se bem que a composição da página, concêntrica em torno da vítima, é justíssima).
Mas
esta questão, todavia, pode ser desviada se regressarmos à questão
do género, sobretudo se recorrermos às negociações permitidas
pelo encontro da ciência literária e da psicanálise. Num artigo
intitulado “Gender, Genre, and Excess”, Linda Williams estuda
aquilo que ela chama de “géneros do corpo” ou “corpóreos”,
a saber, o horror, a pornografia e o melodrama. Até certo ponto,
poderíamos estender parcialmente os elementos de Parker
pelo menos ao primeiro e terceiro, mas a questão a corporalidade,
inclusive mesmo da sua efemeridade e transformabilidade pela
violência, é um tema caro também à literatura policial, de crime,
etc. A autora considera que “quaisquer tentativas em compreender
[estas] formas culturais” se devem fazer num entendimento de que
nelas “a fantasia predomina”. O importante, porém, é que
Williams, citando o trabalho de Laplanche e Pontalis, explicita a
fantasia “não tanto como uma narrativa que encena a demanda por um
objecto de desejo como um ambiente [setting]
do desejo, um lugar em que o consciente e o inconsciente, o eu [self]
e o outro, a parte e o todo, se encontram. A fantasia é o espaço em
que as subjectividades ‘dessubjectificadas’ oscilam entre o eu e
o outro, não ocupando qualquer lugar fixo nesse ambiente”.
Isto
permitiria dizer que Parker,
e para mais a sua versão em banda desenhada (já veremos por qual
razão), dá azo a que se permita a entrega a uma fantasia
socialmente indizível, a qual, alimentando essas pulsões
mortíferas, violentas, hoje vistas como apenas alvo de repúdio,
encena essa possível des-subjectificação. Sobretudo, claro está,
do sujeito masculino, modelar, heteronormativo, etc., é certo, mas
nesse aspecto não entenderíamos a limitação dessa fantasia. O
problema está em que essa mesma fantasia poderá, por sua vez, estar
simplesmente a alimentar uma “visão normativa”, já que a ironia
e a distância crítica desses mesmos actos, atitudes e forma
cultural, não parecem estar acentuadas o suficiente na obra de
Cooke, quase celebratória dessa cultura, ainda que transmutada pela
via da nostalgia e de uma fabricação mítica.
Tendo
dado origem a duas versões cinematográficas (sendo a primeira de
John Boorman com Lee Marvin e outra um negligenciável filme com Mel
Gibson), esta adaptação da novela do escritor norte-americano
Richard Stark (Donald Westlake) é apenas a primeira de, até à
data, quatro, pelo artista canadiano de banda desenhada Darwyn Cooke,
série a qual continua e se supõe que a Devir persiga. Seria
curioso um estudo comparativo entre as adaptações cinematográficas
e esta de banda desenhada. Ao passo que o filme de Boorman se entrega
a pequenos exercícios de estilo que criam uma dimensão mais
profunda e matizada da personalidade da sua personagem – mesmo que
esta seja apresentada como brutal e selvagem, ou melhor, precisamente
por ser assim apresentada em primeiro grau é que ganha essa
sobredimensão cinematográfica -, Cooke parece estar mais
interessado numa superfície lisa.
Fruto de pertencer ao universo do primeiro livro (que aparentemente
fora escrito sem a ideia de se vir a tornar uma série), Parker não
é propriamente uma personagem que se preste a grandes introspecções
ou transformações da sua pessoa através de descobertas
psicológicas. Nos livros subsequentes, haverá outras luzes, que o
tornam mais moldável, mas aqui a personagem é feita de um granito
inamovível. Cooke aumenta essa imobilidade graças às suas escolhas
de composição, aqui expositivas, ali empedernidas num curto
intervalo de tempo, aqui pejadas em termos de analepses e blocos
textuais, ali em “silêncio”, e sempre, sempre mostrando a
personagem de sobrolho carregado, em que a fúria lhe treme sob a
pele em permanente tensão.
Cooke,
como se sabe, é um autor extremamente interessado na estilização
nostálgica e retro
dos anos 1960, protégé
de Bruce Timm e, como ele, cultor de um encontro entre a angulosidade
dos estúdios UPA, o streamlining
de Toth e a dinâmica da dita “Silver Age” (dos comic
books
mainstream
de super-heróis norte-americanos). Logo, todo o seu Parker
é um exercício nesse sentido, ao passo que Boorman procurava as
novidades visuais e compositivas que o seu
cinema lhe permitia. Contudo, se estamos em crer que se essa opção
funciona perfeitamente para uma obra “positiva” e celebratória
como DC:
The New Frontier,
já temos algumas dúvidas que funcione da mesma maneira perfeita
aqui. Por vezes, parece-nos mesmo uma maneira de “aligeirar” ou
“desculpar”, com essa forma mais branda e com estas figuras
delineadas gentil e elegantemente, uma matéria demasiado crua.
Contudo,
convenhamos: não se deseja do noir alguma dose maciça de cinismo e
hardboiled?
Nota
final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
4 comentários:
Olá Pedro,
Mais um texto de enorme qualidade, como consegues este ritmo impressionante?
Este é mais um daqueles livros em que o formato pode alterar toda a perspectiva que se tem sobre a obra, dependendo da ordem em que tomamos contacto com os dois tipos de dimensão e papel onde podemos encontrar esta bd. Eu tive a feliz (para mim, claro) opção de arriscar logo à primeira pela magnifica Martini Edition da IDW. Se começasse pela versão em que o Hunter foi originalmente publicado pela IDW, e agora pela Devir, talvez não chegasse a apreciar a plasticidade superior que as aguarelas do Darwyn Cooke apresentam nesta obra face aos restantes trabalhos.
Sou-te sincero, como diriam os espanhóis, "me importa un bledo" o noir e o policial, mais a sua suposta sofisticação cínica suportada por uma dose mais do que razoável de clichés. É bafienta e marcada a traça, pim! Ao tempo de hoje, só será igualmente suportável pela mesma razão - a música - com que se tolera a ingenuidade com que naqueles mesmos tempos se acreditava na vida louca dos rat pack. Não me deixando convencer pela história, interessa-me só a estética e aí sim, confesso-me fã da simplificação e da síntese, do Toth, da geometria boogie-woogie dos cenários da Nova Iorque que o traço nostálgico do Cooke reproduz.
Penso que é bastante judiciosa a tua comparação com as adaptações para cinema. De facto, esta bd pretende seguir mais de perto a visão do escritor que a do argumentista. Assim, este Parker aproxima-se do retrato menos convencional de um jovem Jack Palance e afasta-se do Lee Marvin mais maduro e cheio, tornando a narrativa, por comparação, mais bidimensional, talvez mais próxima do papel escrito e do papel desenhado e afastada de hollywood, do seu orçamento e correspondente ónus. Exactamente o efeito que distingue a bd, o famoso "Equilíbrio Manhattan" ;-))).
Obrigado.
Aquele Abraço,
José
Caro José,
Obrigado pelas palavras. O segredo está em negligenciar a vida familiar e as responsabilidades. ;)
Não entendi essa do "equilíbrio Manhattan": trata-se de alguma referência?Parece-me curioso de aprender, por isso diz-me o que significam essas linhas.
Não conheço a versão Martini, mas deve ser muito interessante como objecto de luxo. Eu conheço as versões normais, em paperback, que não são más, mas acredito que haja uma mais-valia visual noutros formatos maiores, etc.
Eu nunca li os livros do Stark, por isso não posso fazer comparações directas, ou compreender em que medida o Cooke é mais "fiel". No entanto, tendo em conta o projecto alargado do autor de banda desenhada em se criar essa imagem "retro" (que lá está, representa mais uma imagem cristalizada, mítica e ilusória do que propriamente uma verdade histórica) quero acreditar que ele procura ser mais seguidista do que o filme do Boorman, que tinha também um propósito de fazer explorações psicológicas desviantes (não sei porquê, mas vem-me à cabeça comparar com o "The Offence", do Lumet com o Sean Connery: outra história de um "tough guy" com um historial doentio).
Não ei o que dizer do "noir" em geral. Por um lado, entendo o que dizes dos clichés e é totalmente verdade, mas é difícil resistir aos charmes da hipotaxe de Hammett, as pestanas de Bacall e o profundo conhecimento do espírito humano de um Simenon. De resto, tudo isso, sobretudo as técnicas literárias de uma escrita tensa e objectual eram uma consequência de desejar escapar ao floreado das gerações anteriores, e a que alguns críticos dizem criar "des-empatia", o que é muito justo. "Parker" não está nesses píncaros, decerto, mas tem parte desse charme. A questão que não consigo responder - pessoalmente, e se associa em parte à pornografia militar do Edmondson de que falei há pouco - é: será que o prazer emerge "apesar" da violência, misoginia, e niilismo, ou "por causa de"? Isto revelaria muito da fantasia do leitor, e não me inibo de desconfiar de haver algum fachizóide escondido...
Pedro
Tem que haver alguma verdade sobre o teu "segredo", porque a outra possibilidade, igualmente inverosímil, só pode passar por algo do tipo do final do filme "The Prestige".
Quanto ao objecto de luxo, muito longe disso, ficou-me muito mais barato que um segundo relógio de pulso, que me fazia muito menos falta :-). Na verdade quase ao preço da edição da devir. Há bons negócios na net. Um dia que tenhas a oportunidade dá uma espreitadela. Muitas das explicações à abordagem de que te falo do Cooke, vêm lá explicadas ou percebidas.
Quanto ao noir, e o noir nos nossos dias, cada vez tenho menos apreço por histórias em que o final feliz é representado pela vitória de um protagonista face ao seu inimigo, não importando o número de vítimas que se amontoarem pelo caminho. É uma representação do hedonismo irracional "oferecido" pelos vendedores de promessas dos nossos tempos ultra-capitalistas. Daí o tal "fear"...
Já o "Equilíbrio Manhattan", era uma referência à imagem anedótica do Daniel Dreiberg aos poderes do Dr. Manhattan e o seu "Manhattan Transfer". Na versão brasileira a expressão é traduzida para "Sumiço Manhattan". A partir daí eu por vezes tenho a tendência para colar o efeito da expressão a coisas que não consigo explicar bem, mas que tenho que terminar rapidamente. Assim como, algumas pessoas usam a palavra "coisa". Não ligues, só faz sentido na minha cabeça.
Abraço e muito sucesso com a tua exposição. Prometo visitá-la.
José
Houve uma fase em que era cliente assíduo do ebay e muitas outras lojas online, mas infelizmente esse é um vício que tive de abandonar, por razões de logística mais do que expectável.
Mas quem sabe...
Obrigado,
pedro
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