Com o seu programa
editorial Marvel Now, uma das maiores forças de produção da banda
desenhada mainstream norte-americana, sobretudo de
super-heróis (mas não só, já que a Disney e a saga de Star
Wars tem entrado aos poucos na sua produção), tentou toda uma
série de direcções novas, sobretudo apostando num grau de
(possível) diversidade autoral, humores e estilos. É possível
lermos títulos bem-humorados e frescos como Ms. Marvel ou
Silver Surfer, espatafúrdios como The Unbeatable Squirrel
Girl, de contornos cosmo-épicos como os vários Avengers
de Hickman et al. Nesta paisagem, portanto, não nos surpreende que
encontremos títulos mais “duros”, em termos de violência, e
referências ao mundo real dos conflitos bélicos, o poderio
industrial-militar, os jogos de poder político entre as potências,
e todos os ditos “danos colaterais”. Ocupando esse território,
destacar-se-iam os títulos escritos por Nathan Edmondson.
Edmondson é responsável
por três títulos que lemos em conjunto: Punisher, que foi
desenhado sobretudo por Mitch Gerards, Black Widow, com Phil
Noto, e Deathlok, com Mike Perkins. Cada um a seu modo, estas
personagens salientam as características existentes no domínio de
fantasia dos super-heróis que mais tocará outros géneros como os
de espionagem, guerra, policial, ficção científica e uma certa
agonia social perante aquelas realidades dos tecidos urbanos
contemporâneos (crime violento, tráfico de droga), as esferas
políticas (corrupção governativa e estatal, gentrificação,
demolição das conquistas sociais, precariedade) e a globalização
dos conflitos (sobretudo o terrorismo urbano e as tensões crescentes
entre as “potências económicas”). O escritor havia criado
séries anteriores daquilo que se tem chamado de “ficção
militar”. Isto é, agregando elementos do policial, da ficção de
guerra e do thriller de contornos políticos, mas com uma
ênfase particular em assuntos militares, seguindo-se os protocolos e
jargão próprios desse domínio para criar, no caso presente,
ficções próximas da realidade em termos de funcionamento (mesmo
que tenha elementos de fantasia). Foi sobretudo na Image, com títulos
como Who is Jake Ellis?, Where is Jake Ellis?, Dancer
e, acima de tudo, The Activity, que Edmondson foi nutrindo
esse conhecimento de referências, capacidade de burilar uma trama
intensa e pesquisar a realidade para depois dela extrair um filtro
cromático que agora emprega no circuito dos super-heróis.
Cada um dos arcos
respectivos centra-se numa dimensão particular das personagens. Em
Punisher, Edmondson transplanta Frank Castle para um novo
palco de acção, a cidade de Los Angeles, para tentar compreender
como é que o seu modus operandi se alteraria de Nova Iorque.
Curiosamente, o primeiro episódio da segunda série de True
Detective é encerrado com uma versão de “All the Gold in
California”, rosnada por Nick Cave: nessa canção, um dos versos
iniciais promete logo que essa cidade é “a brand new game”,
escondendo bastas desgraças. Até certo ponto, parece ser isso o que
se coloca à frente de Castle, em que várias pequenas vitórias
parecem sempre esmagadas pela falência final, ou pelo menos,
vitórias pírricas. É natural que na economia final da série tenha
de haver sempre “um final feliz”, mas o preço é a de fazer
regressar o protagonista ao valor moral pouco dúbio do seu papel
inicial, na década de 1970: a sua heroicização vem com um tremendo
preço que é aceitar o seu grau de violência ou de deturpação dos
valores de uma justiça cívica.
Em relação a Black
Widow, a “cenoura” que vai fazendo o leitor perseguir os
pequenos casos isolados da espia russa, Natasha Romanoff, ao serviço
não apenas da S.H.I.E.L.D. mas de clientes individuais (ela é uma
espia “de aluguer”) é o paulatino desvendamento da sua infância
e educação na Rússia (de forma a criar ligações com o universo
cinematográfico e televisivo, tanto em busca de coerência como de
distanciação ou variação), e numa nem sempre conseguida modelação
da sua personalidade (que se havia tentado nos primeiros filmes
recentes, mas descartada sem cerimónias em Avengers: Age of
Ultron). Ancora-se a personagem a colaboradores e espaços
quotidianos (tal como em relação a Punisher se revela um
amigo-colaborador militar e um coiote adoptado, e em Deathlok
uma filha) para tecer uma camada de “slice of life”, mas
mantém-se a ideia de uma romântica rede internacional de contactos
e palcos de acção, para inscrever todos os tropos necessários ao
género.
Finalmente, Deathlok,
mais recente, centra-se numa intriga relativamente mais expectável e
formulaica: a máquina controlada libertando-se dos fios
manipuladores e depois a demanda das razões desse controlo, a
vingança sobre esse poder e a busca da própria identidade. E nessa
busca, e mais uma vez um pouco como ocorre nas outras séries, as
inevitáveis mudanças de aliados e inimigos, transformações
internas e até mesmo confronto com o seu próprio reflexo,
instigando crises dos seus propósitos.
Quase todas as histórias
de Edmondson são aquilo que se chamará no jargão especializado de
“slow burners”: em vez de procurar linhas narrativas que tenham
uma resolução imediata, e cujas consequências se subsumam de
imediato na próxima curva e desenvolvimento – se bem que, enquanto
comic book, é natural que tenha de repetir as fórmulas
estruturais que lhe são próprias -, os elementos vão sendo
apresentados lenta, incompleta e até misteriosamente, lançando-nos
em dúvidas quanto à pertinência e razões dessas referências para
apenas mais tarde se começarem a encaixar numa figura mais coesa.
Não se trata tanto de uma surpresa final, espectacular, que
desarrume esses mesmos elementos, mas simplesmente um tranquilo e
paulatino movimento até se consolidar numa estrutura coerente. E, ao
contrário de Garth Ennis, por exemplo, quando trabalhou na série
Max, se bem que haja
necessariamente algumas hipérboles, Edmondson procura alguma
contenção. Talvez seja estranho dizer-se isto numa economia de
representações e acções que são logo à partida “over the
top”, mas há apesar de tudo comedimento. Isto leva a que haja um
crivo entre leitores, levando a uma recepção morna naqueles que
esperam uma maior octanagem em Punisher, por exemplo, mas que
recompensa aqueles outros que preferirão (não há propriamente uma
qualidade “objectiva” e “absoluta”) uma estruturação mais
elegante e fechada a longo prazo.
Todavia, não deixa de ser
notório como, muitas vezes, o autor parece estar a repetir
estruturas e ou modos de escrita nestas séries, o que advém da
gestão do trabalho (está a escrever as séries ao mesmo tempo) e
das características comuns entre as personagens (ainda mais
reforçadas por ser o mesmo escritor), como por exemplo, as suas
solidões relativas, a melancolia das suas vidas, a estranha tensão
entre a necessidade de cumprir a missão “necessária” e
“inevitável” e o preço que isso acarreta (morte e
destruição)...
Estando aqui a
centrarmo-nos na parte responsável do escritor, estamos
conscientemente a secundarizar a dimensão visual das três séries.
Mas quer o trabalho de Perkins quer o de Gerards, ou de outros
colaboradores, é algo convencional e “suficiente”. Existem
pequenas escolhas, no que diz respeito à representação de certas
tecnologias (sobretudo militares), a precisão do desenho do
equipamento militar, mas isso são características também
imputáveis a Edmondson, que já vinham de The Activity (a sua
melhor série, a nosso ver), e que são fruto de aturadas pesquisas e
contactos, os quais o autor repetidamente divulga e explicita em
entrevistas ou notas aos livros. Gerards tem bons aliados para as
artes-finais, inclusive as cores soturnas, mas deixa algo a desejar
em termos de figuração e é pouco inventivo. Perkins é mais
competente, mas pertence àquela alargadíssima família, algo
permutável quase até à indiferença, de artistas “da casa”.
Phil Noto, por sua vez, uma vez que vem de um treino de ilustração,
e de um domínio de pintura figurativa, consegue criar momentos
icónicos bem mais interessantes, até em termos de composição e
cromáticos, mas apesar do seu interessante The Infinite Horizon,
escrito por Gerry Dungan, traz dessa mesma série alguma falta de
treino no desenho mais dinâmico de corpos em (alta) acção, talvez
até piorado nesta série, dados os consabidos espartilhos de tempo
para a sua produção (que poderá convidar a algum ghosting
ou colaborações menos conseguidas). Em termos genéricos, digamos
que todas estas séries são servidas com elementos suficientes para
transportar a narrativa, mas em nenhum dos casos estamos perante
grande inventabilidade gráfica.
O autor procura respeitar
as potencialidades de trabalhar no universo referencial da editora,
não apenas fazendo com que cada uma das personagens principais se
cruze com outras da Marvel (Electro em Punisher, o Winter
Soldier em Black Widow, a S.H.I.E.L.D. em todos), como também
criando pequenos nódulos narrativos que são partilhados nas séries,
como é o caso da referência a uma conspiração governativa global,
ou mesmo através de mecanismos mais directos. Por exemplo, nos
números nono quer de Punisher quer de Black Widow # 9
(ambos com data de capa de Fevereiro de 2015), as personagens
cruzam-se entre si no mesmo espaço e acção, e cada um dos comic
books mostra o mesmo episódio, partilhando acções, posições,
diálogos, etc., mas da perspectiva dos respectivos protagonistas. O
leitor não precisa de ler a outra série para se sentir “satisfeito”
em relação à que está a acompanhar, naturalmente, mas a leitura
de ambas cria esta sensação de um tecido mais real, precisamente
uma das vantagens e invenções de grande impacto em termos de
investimento emocional das grandes editoras mainstream de
super-heróis (mas que também outros tentam perseguir, como é o
caso da Dark Horse com o “Mignolaverse” ou a Valiant, por
exemplo).
Tal como Michael Brian
Bendis e Alex Maleev no seu excelente run de Daredevil,
Edmondson consegue criar uma ilusão de realismo e efeitos de
referencialidade ao nosso mundo, “diminuindo”, por assim dizer, o
lado da fantasia, mas sempre compreendido num enquadramento fictício
no qual existem milagres – super-poderes, tecnologia avançada ao
ponto da incredulidade, etc. Quando existem intervenções mesmo de
personagens com poderes mais fantásticos, como é o caso de Elektro
(capaz de controlar a electricidade) ou o Capitão América Sam
Wilson (voo, o escudo inquebrável, etc.), elas são como que
“trazidas à terra”, por vezes através do humor ou de métodos
bastante prosaicos. Isso cria uma ideia de estarmos a seguir
aventuras terra-a-terra, apesar de estarmos afinal mergulhados num
universo de fábula. Edmondson partilha assim com Garth Ennis,
Bendis, Brubaker, metade da produção de Charles Soule, algum Moore,
algumas afinidades de representação de sublinhados realistas, o que
o torna diferente daqueles outros autores que, bem pelo contrário,
acentuam a dimensão de fantasia, como Hickman, Aaron, Gillen, a
outra metade de Soule...
Parte desse efeito de
referência ao mundo real é explorado sobretudo através dos meios
de comunicação: a televisão, a internet, os telemóveis e
as redes sociais existem neste universo e são integradas de uma modo
muito inteligente, se aqui e ali controverso. A questão não é
tanto elencar, por exemplo, qual determinada banda desenhada cita ou
emprega estes outros canais de informação, mas antes em que medida
remedeia e frisa, de preferência problematicamente, esses mesmos
usos (casos prementes destas referências mainstream são
Transmetropolitan, Batgirl, Young Avengers,
etc.). Por exemplo, quando partes interessadas pretendem atacar a
Black Widow, uma das formas mais eficazes é expô-la através desse
tribunal que é a televisão. Os autores usam uma versão fictícia
da CNN com Anderson Cooper numa peça sobre Natasha Romanoff, mas na
verdade as consequências desse programa não são escavadas com
grande profundidade: permite criar umas páginas interessantes com
vários super-heróis nas suas salas de estar (ou a espreitar para
dentro da casa de pessoas alheias!) a ver a peça, mas não temos
jamais uma verdadeira interacção com o público em geral. Em
Punisher, essa relação espraia-se mais ao longo da história,
e há mesmo uma página brutal de uma execução extremamente pública
de Punisher, quase imitativa dos processos sumários e horrendos, e
reais, do ISIS, numa composição bem estruturada com câmaras de
telemóvel, mas mais uma vez parece que não existem verdadeiros
momentos para debater o significado político, social e moral destas
acções.
Na verdade, se bem que não
podemos imputar aos autores em si, e ao escritor em particular,
nenhuma intencionalidade e muito menos caracterizar a sua
personalidade, não deixa de ser algo claro que a escrita de
Edmondson – nestas séries e nas anteriores citadas – apresentam
as mais das vezes, não tanto um maniqueísmo primário, mas um
significativo desequilíbrio na representação dos protagonistas,
vistos como empregando uma violência “necessária”, e os
“vilões”, sejam eles representantes de poderes domésticos
económicos, militares ou políticos obscuros, redes internacionais
ou comuns criminosos, como crápulas sem perdão ou
cunrcunstancialidade. Existem mesmo pequenos episódios, algum
vocabulário, políticas de representação e distribuição de
papéis que permitiriam colocar questões sobre racismo, xenofobia,
militarismo, enfim, posições da direita conservadora
norte-americana. Não há dúvida, por exemplo, que Edmondson tem uma
enorme admiração pelo exército americano. Mas se os soldados em si
merecem respeito (como qualquer profissão, de resto, sem hierarquias
morais), isso não significa que não se devam colocar as perguntas
difíceis sobre a sua responsabilização política e a sua obrigação
de prestar contas (a dita “accountability”). À luz dos
relatórios que têm sido publicados em relação a Guantanamo, por
exemplo, ou os abusos verificados em todo o lado onde existe um
contingente norte-americano (da Coreia do Sul à Alemanha, passando
pelos palcos de guerra, evidentemente), a ausência dessas dimensões
torna estas ficções num encómio algo desequilibrado a essas
forças. Além do mais, sendo ficção militar, é mais do que
expectável existir um contínuo fascínio, senão mesmo um
fetichismo, por equipamento militar específico, a linguagem de
código, as siglas e a exactidão da máquina militar, etc.; todavia,
tendo em conta o género, isto não pode ser visto como uma crítica,
pois seria o mesmo que nos queixarmos da chuva ser húmida: essas
referências são a própria matéria constituinte destas “ficções
militares”, disfarçadas, entrosadas ou mescladas com a de
super-heróis.
Uma vez que a Marvel se
encontra numa recta final para encerrar e reformular todo(s) o(s)
seu(s) universo(s) ficcional(is), haverá uma claríssima intervenção
editorial que obrigará os autores a fechar a série (já este mês,
com os 20º números de Punisher e Black Widow, e o 10º
de Deathlok), fazendo-a desembocar no “evento” Secret
Wars. Desconhecendo se Edmondson e os colaboradores continuarão
ou não ao leme destas séries e personagens, só se pode esperar que
sejam capazes de, a um só tempo, fechar todas as linhas que vinham
desenvolvendo até agora, sem que seja dramática a perda das
hipotéticas continuidades que desejariam caso não existisse esse
obstáculo editorial, e que consigam igualmente integrar essas mesmas
linhas no mecanismo narrativo do evento de uma forma elegante, que
não obrigue os leitores selectivos (isto é, que não
acompanham toda a produção da Marvel, mas apenas cada título de
modo individual) a se perderem nas referências intertextuais.
Seja como for, para
leitores interessados em ficções de grande acção, fascinados pelo
cruzamento de episódios de guerra e estas personagens de maior
violência, estas três séries, sobretudo The Punisher,
é bem gerida e eficaz no interior do seu contorno.
Nota final: agradecimentos
a André Azevedo, por nos colocar na senda deste autor, e a C.S.,
pelo empréstimo das séries.
9 comentários:
Não li nada do que referes acima e não li The Sculptor de Scott McCloud, ou seja, não li nada de nada e não devia estar a comentar coisa nenhuma. Se o faço é porque li a tua (justamente, certamente) crítica demolidora ao livro de McCloud e encontro aqui uma certa "leniency" (vá lá que no final tocas no ponto: o fascismo militarista mal disfarçado de tudo isto). Sempre me pareceu que havia dois pesos e duas medidas para julgar o alternativo e o mainstream. Compreendo que o pecado de McCloud é o maior que um autor Norte-Americano pode cometer: o pretenciosismo (na minha teoria só é pretencioso quem almeja alto e falha). Compreendo que isso seja bem mais irritante do que "mainstreamisses" rotineiras. Mas as perguntas que me coloco (e insisto, não li nada disto) são: são as personagens de Edmondson mais complexas do que as personagens de McCloud? Edmondson explora melhor o universo referencial diegético que pretende explorar (a situação político-militar dos E.U.A.) do que McCloud (o mundo da arte contemporânea)? O maníqueismo de McCloud é mais grave (esta é que me custa muito a acreditar)? Depois de ler os teus dois textos suponho que numa coisa Edmondson será bem melhor do que McCloud e, por isso, não pergunto; refiro-me à componente textual.
Olá, Domingos. Apesar dessa pergunta ser extremamente pertinente, não sei muito bem como começar a responder. Posso estar a ver mal as coisas, naturalmente, mas penso que o problema aqui está em confundir a criação de discursos singulares e heurísticos de leitura analítica e crítica, que procuram trabalhar no interior das regras criadas pela própria obra - mas evidentemente buscando depois todas as aproximações possíveis que nas cirscunstâncias são permitidas para comparações, travessias genéricas, históricas e estilísticas, - e, por haver uma concentração na mesma pessoa e até num tão curto intervalo de tempo, uma hipotética construção de princípios absolutos de juízo de valor (estético, político, etc.). Noutros termos, eu tento fazer o primeiro esforço, ler cada livro como se fosse único e tentando compreender como é que respeita as regras que ele próprio institui (se bem que, como os homens, nenhum livro é uma ilha). E raramente me pauto por um qualquer regrário idêntico para os ler a todos, fazendo distinções que, sendo artificiais ("alternativos", "infanto-juvenil", "experimental", etc.), permitem essa flexibilidade.
A construção de sentido não é alheia ao contexto, e se podemos dizer que "autores norte-americanos" poderão partilhar logo à partida toda uma série de factores, tal como a sua recepção parece ter um ponto e convergência ("leitor português", com todos os adjectivos que se lhe possam acrescentar), nenhum desses factores comunais podem ser arvorados como suficientes para atingir um princípio de valorização coeso e unitário. Não posso, por isso, comparar directamente McCloud e Edmondson.
Poderia partir dos argumentos esgrimidos, por exemplo, por um Noël Carroll, que admito em muitos outros aspectos, e defender a teoria, ou a posição, da especificidade do meio, em que (socorre-me de um esquema simplificado de Henry Jonh Pratt: "o meio associado com uma dada forma de arte (quer os seus componentes materiais quer os processos através dos quais estes são explorados) 1) implica possibilidades específicas para, e limitações sobre, a representação e expressão, e 2) isto providencia um enquadramento normativo que os artistas que trabalham nessa forma de arte tentam atingir." Bom, uma vez que sabemos que Carroll subscreve não uma definição (fechada) de qualquer forma de arte mas antes uma "descrição histórica" (à la J. Levinson), isto não deve ser entendido como um princípio fechado, mas essas palavras dariam a depreender que existiria então de facto esse "enquadramento normativo" contra o qual todas e quaisquer experiências que pudessem ser chamadas de "banda desenhada" de pautariam. Analogamente, também todos e quaisquer "filmes", "músicas" e "literaturas" se corresponderiam no interior de um só campo coerente e fechado de critérios e formas que permitissem um juízo de valor (absoluto). (Continua)
(continuando) Regressando aos dois objectos: mais uma vez, não os saberia comparar. Cada um trabalha territórios tão distintos, propósitos e tradições tão drasticamente afastadas se seguirmos as (artificiais) fronteiras a que se poderiam dar o nome de "mainstream/alternativo", "comercial/artístico", "lowbrown/highbrow", "pulp/autoral", que criar qualquer hierarquia teria de ser muito bem explicada, mas, dependendo da forma como fosse construída, poderia levar a qualquer posicionamento contrário, em que uma ou outra seria visto como superior. Dito isto, sim, o grande pecado de McCloud seria a de se deixar conduzir por um pretensiosismo juvenil que a impede de sequer almejar a uma posição próxima à dos seus supostos pares (spiegelman, Bechdel, Clowes?), ao passo que Edmondson et al., abandonando-se aos princípios regulatórios do "same old", consegue criar - sobretudo com "Punisher", mesmo nos momentos mais abjectos, ou até talvez por causa dele (gostava de sublinhar isto) - uma narrativa mais sólida e interpelante no interior dos seus limites.
Poderei dizer que, por haver alguma representação multicultural que tenta ser "respeitadora" em McCloud, ele é mais "feliz" do que Edmondson, que segue linhas um pouco mais clássicas? Será que a apologia da violência em Edmondson o torna necessariamente mais fascista do que, se ao mesmo tempo é temperado por alguma distância em relação aos modos de decisão político-militar dos Estados Unidos? Será pertinente fazer crítica a esses poderes através de uma ficção onde a fantasia está presente? Será a fantasia de McCloud mais desculpável sob a ideia de "alegoria"?
Talvez não tenha respondido, mas como disse um amigo meu epicurista, "são os prazeres diversos que dão saúde".
Abraços,
pedro
Por outras palavas e, claro, simplificando: McCloud falha em toda a linha quando pretende atingir um objectivo maior e Edmondson tem sucesso quando atinge objectivos menores. Compreendo isso e não está fora do alcance do meu primeiro comentário. Enquadra-se até bastante bem, parece-me, porque também referi os contextos do alternativo e do mainstream. Contextualizar e historicizar nunca fez mal a ninguém...
Agora, quanto ao seguinte: "Será que a apologia da violência em Edmondson o torna necessariamente mais fascista do que, se ao mesmo tempo é temperado por alguma distância em relação aos modos de decisão político-militar dos Estados Unidos?" falta o enquadramento no American Monomyth (digo, mas não li nada disto, claro). Espera-se de Dirty Harry que esteja contra "os modos de decisão político-militar dos Estados Unidos". Chama-se a isso vigilantismo e é precisamente aí que há desrespeito pelas instituições democráticas, concorde-se ou não com as ditas cujas (e sabemos o abjecto que é o American Excepcionalism). A esta pergunta: "Será pertinente fazer crítica a esses poderes através de uma ficção onde a fantasia está presente?" a resposta é um rotundo, sim. Alguém disse da literatura de evasão algo assim como: é preciso ver para onde é que nos estamos a evadir. A verdade é que deste mundo é que não se sai. Quanto a juízos de valor absolutos é preciso lembrar que obras de pouca ambição podem ser polissémicas e ter pelo menos uma leitura simplista e uma leitura complexa. Carl Barks é um bon exemplo, mas, francamente, não me lembro de muito mais. Oesterheld não serve porque enquanto foi patrão de si próprio não se impôs a si mesmo grandes restrições e aí sim que dicotomias do género "alternativo / mainstream" se tornam irrisórias.
Coloquei muito mal a pergunta, pois como bem sabes, concordo totalmente com esse rotundo "sim" em relação às leituras críticas que se podem fazer, ou melhor, devem fazer a todo e qualquer texto. Todas e quaisquer histórias que usualmente envolvam heróis violentos colocam em suspensão as regras de funcionamento dos estados de direito, e uma personagem como o Punisher é, desde logo à partida, muito difícil de trabalhar sem ser no interior da apologia de uma certa psicopatia disfarçada de "justiça que funciona para além dos limites da burocracia da justiça". Nasce daquele mecanismo relativamente básica que ouvimos todos os dias, inclusive em Portugal, ou especialmente?, quando não compreendemos porque tarda ou não funciona a justiça: a resposta é então essa fantasia para onde escapamos, com vendettas à lei da bala e C-4. Edmondson tenta aqui e ali mostrar como a criação desta personagem é endémica ao próprio sistema, mas parece ser daqueles mecanismos que também deram origem ao Dirty Harry ou outras personagens e aos momentos em que tentam defender-se. Nem todo o mainstream é assim: um autor como Ales Kot, por exemplo ("Zero", entre outros), tenta escavar precisamente a posição contrária no interior destas ficções, ao passo que Edmondson parece estar demasiado perto da admiração pelo poder militar dos Estados Unidos - o excepcionalismo e o heroísmo americano, alimentado sem parar desde os anos Reagan - para ter alguma distância crítica, e assim, alimentar a fantasia de direita que o Punisher pode constituir. Quando Garth Ennis o trabalhou, roçava a comédia - desbragada, negra, violentíssima, mas ainda assim, absolutamente risível -; aqui, os laivos de fantasia bélica são aumentados, mas mesmo assim o papel dele é como que concentrado nessa negatividade precisamente para a eliminar de outros círculos da sociedade, os quais, de novo no interior desta ficção/fantasia, se mantêm. Uma análise mais cuidada coloca a personagem do lado de todo um discurso da direita norte-americana, dos "direitos pelas armas", a consideração que a emigração (sobretudo mexicana) tem de ser necessariamente associada às classes criminosas, e que o papel da justiça se pode confundir com a "vingança". A série "Deathlok" está tão embebida na fantasia de robots e ciborgues que não permite ao leitor sequer fazer grandes associações a "temas reais"; "Black Widow" vive no seu mundo fechado, também, algo romântico, até, típico das "spy novels"; mas "Punisher" toca de facto em demasiados pontos do mundo real, tornando essa série quase em momentos em que a personagem (e poderíamos dizer, o autor?, os autores?) comenta factos reais da política. E aí as coisas complicam-se, pois a fantasia não é suficiente para disfarçar o posicionamento psicopata. Melhores leitores da série do que eu comparam a personagem a Chris Kyle, o "sniper americano", e alertam precisamente para a forma como Edmondson a tem feito inclinar para um lado " herói a celebrar", e não enquanto personagem que espelha os perigos dessa ideia, conduzindo a uma banalização da violência enquanto resposta. Talvez não tenha sido nada claro, concentrando-me nas questões narrativas e de estruturas,mas espero que aquela imagem do Punisher a executar um homem sob a atenção dos telemóveis espelhe, na perfeição?, as estratégias dos ditos "inimigos".
Obrigado pelos teus esclarecimentoe e, sobretudo, pelo teu tempo, Pedro! Como não leio estas coisas fico-me por ideias estereotipadas do que é suposto elas serem (suponho que raramente me engano, copmo diria o nosso querido presidente). Essa sempre foi a crítica mais legítima que me fizeram no Comics Journal Messboard. A minha resposta sempre foi que a vida é curta e não me apetece perder tempo "engaging with the material". O que nunca me impediu de discutir o mainstream em fóruns e agora aqui. Foi por isso que quis pôr logo de entrada os meus "pés de barro" à vista (sem gigante) e deixar bem claro que não li nada disto. Por outro lado ninguém me apanhou nunca a criticar por escrito algo que não tivesse lido.
Já reparaste que acabamos na personagem principal destas coisas: o "sniper americano" e, por conseguinte, Clint Eastwood? O Dirty Harry himself...
O meu tempo é teu, Isabelinho, sem problemas. É assim que aprendo também a pensar e a argumentar, tendo sido uma das pessoas que mais me tem obrigado a fazê-lo. E, sim, voltamos sempre aos mesmos suspeitos. Eu não li o livro do Kyle, a não ser bocados, que alguém que leu me deu a ver, comparando ao filme... Parece que o Eastwood fez uma acção de cosmética face ao que o próprio sniper escreveu nas suas memórias, comprovadamente racistas, violentas ou, mas não digo isto de modo simplista, doentias. Pode-se argumentar que o filme não é a verdade histórica, mas contribui para a sua construção enquanto "herói". É possível que "Punisher" esteja também nesse edifício, não fosse porque o seu símbolo é um dos mais imitados por "tropas especiais" (não sei o termo específico para os ramos mais preparados para... enfim... matar...). A constelação é apertada, e Eichmann está sempre à espreita, pelos vistos.
Pedro
Olá, meus caros.
Gostei destas reflexões. Não li nenhumas das obras analisadas, porque há muito tempo que deixei de ler ficção, tanto em prosa como em bd, e somente vou prestando atenção a títulos muito pontuais de autores que me interessam mesmo muito. O tempo é curtíssimo, de facto.
No entanto, tenho vontade de contribuir com uma ideia que poderá ser útil (e vou fazê-lo do modo mais sintético possível, para não vos roubar muito tempo):
- a personagem Punisher, pelo menos desde a sua encarnação plasmada em «The Punisher» (de 1986), composta por cinco títulos («Circle of Blood», «Back to the War», «Slaughterday», «Final Solution» e «Final Solution: Part 2»), escrita por Steven Grant e desenhada por Mike Zeck e Mike Vosburg, afasta-se totalmente da configuração inicial, surgida nos comics do Homem-Aranha, na qual ela era uma espécie de vilão obcecado com a lei.
Ora, é aqui que reside a chave para entender a personagem: enquanto vilão, nessa configuração inicial, o Punisher era obcecado com a lei (matando indiscriminadamente bandidos e civis, desde que desrespeitassem a lei - traficar droga, deitar lixo ao chão, etc.). No entanto, a partir da mini-série escrita por Steven Grant, ele torna-se um anti-herói já não obcecado com a lei, mas com a justiça.
É por essa via que o Punisher se ergue contra os sistemas da sociedade: estes estão montados para promover, conservar e aplicar a lei -- e a lei é um fim em si mesmo, segundo os alfarrábios de filosofia de direito. A lei não está, verdadeiramente, preocupada com a justiça (como vos dirão qualquer bom jurista): a lei está preocupada em manter a ordem e em punir os crimes que, segundo a sua óptica, mais danosos são para essa mesma ordem (daí que crimes de outrora, hoje sejam observados pelo direito como sendo, apenas, desvios de ordem ética ou até moral, ao arrepio das penas criminais.
Assim, o Punisher não é, no fundo, anti-establishment - ele é, sim, anti-lei, que considera injusta, fria, ineficaz e incapaz de consolar os indivíduos. Transferindo a sua experiência militar para o campo da justiça por ele aplicada, ele produz justiça através de métodos de guerrilha, que vão ao encontro dos métodos dos próprios indivíduos criminosos; eles próprios já muito longe da imagem do criminoso comum e fortalecidos em cartéis, gangues paramilitares e pequenos exércitos de mercenários. Ou seja, não existirá, ao fim e ao cabo, uma disparidade de métodos muito grande entre justiceiro (e aqui a tradução brasileira do nome da personagem está correctíssima -- embora acidentalmente, é certo, pois certamente quem a fez não terá pensado nestas matérias) e os criminosos que ele elimina.
O Punisher elimina os criminosos porque não acredita na reabilitação. Aliás, nem sequer a lei, a que ele se opõe, acredita na reabilitação, usando as cadeias como meros depósitos de criminosos, algumas tornando-se autênticas escolas do crime ou pequenos centros de comando para operações externas. O seu pendor para a eliminação do inimigo corresponde-se, directamente, com a sua descrença na lei. O Punisher é anti-lei e pró-justiça.
Abraços,
David Soares
Olá, David.
Como sempre, o teu olhar é na mosca, desasada mas mantendo-se viva. Todavia, não poderíamos estender essa noção de ser anti-lei, mas mantendo todos os outros equilíbrios normativos da sociedade (ou establishment), como informando as fantasias da esmagadora maioria da ficção em torno de "heróis", sejam estes mais ou menos violentos? E a ideia das prisões como "escolas de crime" é muito justa (sem ironia), sobretudo nos Estados Unidos. Não estou a desculpar o sistema judicial ou prisional português, que está pejado de problemas gravíssimos, mas nos EUA a privatização das prisões levou mesmo a uma nova indústria e a uma das maiores conquistas (abjectas) do capitalismo sobre o labor prisional.
Enfim, mas como o "Parker" de que escrevi há pouco, também o "Punisher", e o "Batman" e tanta outra coisa, são fantasias que alimentam algumas das sombras mais negras dos nossos desejos. Importa que o alimentemos mais saibamos quando estar acordados.
Pedro
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