Corre
a ideia feita de que o género dos super-heróis é o único género
que nasceu em exclusividade no cadinho do meio da banda desenhada.
Não nos compete a nós contestar nem defender essa ideia, que peca,
a nosso ver, por, paradoxalmente, misturar forma e conteúdo mas não
tomar em atenção especificidades formais e expressivas do meio,
cristalizar um conceito apesar das suas constantes reformulações e
todavia estender em demasia a atenção por campos diversos e até
mesmo incomparáveis. Aceitemos, porém, essa ideia. Por mais que
seja um conceito de que se goste, por estar embebido em toda a sua
cultura (os super-heróis são uma “cultura holística”, e não
propriamente um campo alargado no qual depois se possam escolher
intensidades), eles são um modelo de uma fantasia algo estrambólica.
E como sabem os seus leitores, mais até do que os não-leitores, há
variadíssimas gradações de delírio. Este livro pretende encontrar
personagens com um elevado grau desse delírio. (Mais)
Este
é um pequeno livro, mas poderá ser considerado como uma espécie de
coffee table book, no sentido em que é menos um estudo
textual corrido, do que uma pequena enciclopédia visual apresentando
um florilégio de personagens de super-heróis, criadas desde o
início dos comic books (no final da década de 1930) até aos
anos 1990 [mas ainda permitindo que possa ser visto como um contributo "académico", "histórico"], que não medraram nem se mantiveram na memória dos
leitores da melhor forma. Apesar do título empregue pelo leitor, que
se associa à conhecida série de Alan Moore e Kevin O'Neill, a
palavra “regrettable”, traduzível por “desditoso”,
“desventurado”, “infeliz”, etc., surge mais como chamariz do
que juízo de valor sobre todas estas personagens.
O
que torna uma personagem mais ridícula do que a outra? A sua
exposição e manutenção na memória. Estamos hoje tão habituados
ao Homem-Aranha e a Thor, ao Batman e Super-Homem, à Mulher
Maravilha e Hellboy, temos acesso a um tal número de textos “de
qualidade” com essas personagens, que não apenas não as pautamos
pelas piores prestações como olhamos para tudo o que não atinge o
seu grau de fama e proficiência como “falhado”. Por isso, é
relativamente fácil rirmo-nos ao considerar personagens tais como
Dr. Hormone, The Face, Ghost Patrol, Skate Man, Adam-X, the X-Treme,
etc. e não daquelas que preenchem hoje os ecrãs de cinema... apesar
das suas premissas poderem ser tão ridículas como as demais.
Desenganem-se
os leitores que poderiam apontar a razão destes (relativos)
insucessos como sendo da responsabilidade dos seus criadores, pois
encontraremos aqui personagens criadas e mantidas por nomes tais como
os de Will Eisner, Jerry Siegel e Joe Shuster, Joe Simon e Jim
Steranko, Dave Wood, Roy Thomas, Joe Buscema, C.C. Beck, Gil Kane,
Steve Ditko, Jack Kirby, Neal Adams, etc. arvorados cada qual como
grandes “mestres” do género. Tampouco as máquinas editoriais
pujantes são a responsável, que aqui tentariam fórmulas que não
medraram. As razões são variadas, mas Jon Morris, pela forma como
escreve as entradas relativas a cada personagem, parece sublinhá-las
sobretudo em relação às ideias espatafúrdias e ridículas que as
presidem: um homem que se veste de palhaço para se infiltrar no
crime organizado; um olho detective que flutua no ar, um canguru
treinado em artes marciais; um veterano do Vietname que se veste de
pirata com skates para combater o crime; um médico que transforma as
pessoas através de hormonas para conseguir efeitos incríveis; um
homem que, por ter sido exposto à radiação, desenvolve capacidades
extraordinárias (em vez de cancro); e um jogador de futebol
americano que ganha poderes por literalmente mergulhar numa sopa de
químicos e fogo de uma pilha de souvenirs desportivos. A
sério. Este último chama-se, sem grande inventabilidade, NFL
Superpro. Pois.
Um
dos problemas deste livro é que a contextualização histórica e
social nem sempre é feita de uma forma equilibrada. Sendo a premissa
a criação de uma espécie de rápida enciclopédia visual presidida
por conceitos, ou atitudes, contemporâneas face aos super-heróis,
mesmo admitindo alguma diversidade de estilos, posicionamentos e
géneros com esse tropo, é natural que se olhem estas personagens
“falhadas” como... bom, “falhadas”. Mas algumas delas tiveram
algum sucesso comercial (crítico seria difícil de defender,
pela sua ausência discursiva) durante a sua existência, como foi o
caso de The Doll ou Peacemaker (que chegou a surgir em
algumas edições portuguesas, como mostramos aqui). Há casos em que até se poderia
argumentar terem algumas qualidades, como é o caso das
estranhíssimas histórias cósmico-psicadélicas de Hank Fletcher,
ou as óperas siderais alucinadas de Kirby, ou mesmo a melodramática
vida de Rom.
Morris
mistura personagens nascidas nas páginas de comic books de
editoras com algum peso (Marvel, DC, Harvey, Dell, etc.) como de
plataformas menos musculadas, passando por edições associadas a
brinquedos, excrescências narrativas para acompanhar o lançamento
de um produto qualquer de uma empresa de bonecos. Há até mesmo o
caso de um super-herói que protagonizava história de uma página
que eram anúncios de sapatilhas, cheias de previsíveis trocadilhos
de sapateiro (“there's trouble afoot”, “He really laced into
me!”, etc.), Aau Shuperstar. A sério (esta é uma frase que o
leitor colocará em contínua reprise).
À
partida, isso pareceria garantir que tudo pertenceria à mesma sopa,
mas recordemo-nos de que, para mal ou para bem, algumas dessas
personagens surgidas dessa forma teriam algum sucesso, como é o caso
de M.A.S.K., Transformers ou He-Man (não
incluídos no livro, precisamente), ou o Cavaleiro do Espaço ROM
(esse sim, presente), o qual, desaparecido, deixou saudades em muitos
dos seus leitores, entre os quais criadores de banda desenhada
contemporânea, mesmo do território alternativo e experimental!
Estas consequências também não são estudadas de forma sustentada.
Algumas destas personagens, sendo trademarks prontas a
reutilizar pelas editoras que as detinham, foram carne para canhão a
partir dos anos 1990, na senda do trabalho de Alan Moore de
recuperar-para-descontruir: Kid Eternity por Grant Morrison e
Duncan Fegredo, Prez por Neil Gaiman e Ed Brubaker e
colaboradores, Brother Power the Geek por Rachel Pollack, mais recentemente Dial H for Hero com China Miéville et al., etc.
E há mesmo casos de recuperações contemporâneas pelas duas
grandes casas, como Prez e The Invincible Squirrel Girl.
, ou Captain Victory and the Galactic Rangers, pela Dynamite.
Morris cita, brevemente, estas recuperações (mas sem bibliografias
completas), mas não enceta nenhum diálogo entre as premissas
originais e as suas reutilizações.
Fantomah
e
Stardust,
de Hank Fletcher, por exemplo, foram quase totalmente recuperados
pela Fantagraphics (“quase totalmente” pois perguntamo-nos em que
medida é que foram suficientes para reescrever a visão canónica em
vigor). Há portanto um trabalho paralelo de recuperação ou
transformação, o que incluirá a integração “normalizada” de
muitas destas personagens nos universos diegéticos da Marvel e da
DC, que não é tido em conta aqui para o juízo de valor sobre as
personagens. Fosse esta obrinha complementada por esses materiais, e
poderíamos encontrar aqui outro tipo de questões e interpelações.
Dito
isto, os pequenos textos introdutórios a cada capítulo,
convenientemente seguindo a clássica divisão de “eras” da banda
desenhada norte-americana de super-heróis, que o autor apenas
disputa superficialmente, e as próprias entradas de cada personagem,
vão tecendo comentários sobre os momentos históricos precisos,
abrindo a ideias que têm a ver com a diversidade de personagens e de
representação, as modas das épocas (heróis baseados em
tecnologias, em modas musicais, em danças, em desportos, etc.), e as
políticas editoriais e narrativas das casas respectivas. Questões
de propaganda política, representação racial/étnica, realidades
sociais e económicas, de construção de direcções editoriais,
tornam-se suficientemente claras, e que ajudará a compor uma imagem
bem mais matizada do que os usuais discursos normativos.
Todavia,
são entradas simples, que permitem uma consulta rápida e
suficiente. Nesse sentido, Regrettable Superheroes cumpre o
seu papel na perfeição, e integra-se plenamente em toda uma série
de outros instrumentos a que temos hoje acesso. Não sendo um
discurso totalmente ancorado na discussão académica, e estando mais
próximo de um breve arquivo, é também este um importante gesto na
recuperação e alargamento da memória da banda desenhada, e que
permite, pelo menos neste pequeno território, apercebermo-nos de que
é bem mais largo do que os títulos de sucesso que perfazem os
usuais cânones da atenção.
Nota
final: agradecimentos à editora, pela oferta do volume.
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