Como havíamos indicado já na leitura da adaptação de The Dream-Quest of Unknown Kadath, de
Lovecraft por Culbard, este artista britânico estava a trabalhar uma outra
adaptação da literatura do horror fantástico, ou mais especificamente, da
literatura weird. Aliás, estava mesmo
a dedicar-se a um dos autores que é apontado como um dos seus progenitores: Robert
W. Chambers. Apesar da alargada produção literária deste escritor
norte-americano da passagem do século XIX, sobretudo numa veia romântica, é The Yellow Sign, de 1825, um volume de
contos, a sua obra mais famosa. Por duas razões, estamos em crer. Em primeiro
lugar, por ser uma enorme influência sobre H. P. Lovecraft, Derleth, e outros
escritores que dariam continuidade à “mitologia” de Cthulhu, de Carcosa (o
reino referido em Chambers), e as mesclas destes universos, iniciadas pelo
próprio Lovecraft; em segundo, e mais recentemente, por ser uma das referências
recorrentes, mas oblíquas, da primeira série de True Detective, de Nic Pizzolatto. Ei-la. (Mais)
O livro de Culbard exerce uma escolha editorial sobre o volume
de contos de Chambers. Ao passo que a obra original contém dez relatos, Culbard
utiliza apenas os quatro primeiros, que são precisamente aqueles que estão
ligados intertextualmente pelas referências à peça teatral proibida The Yellow King, a essa mesma personagem
misteriosa e o sigilo que o simboliza. Além disso, Culbard inverte a ordem dos
contos e constrói ligações entre as personagens onde elas não existiam, criando
portanto um tecido de maior coerência diegética transversal em relação ao
trabalho de Chambers. Mais, tendo em conta ainda que o propósito, estilo e até
mesmo a força literária de Chambers, e aquilo que se constituiria como a sua
maior influência, se encontra na natureza ambivalente, estranha, Unheimlich e inquietante dos ambientes,
mais do que a construção sólida e psicologizante das suas personagens, ou mesmo
até o burilar preciso de uma intriga unívoca, torna-se evidente que o esforço
de Culbard se encontra menos na tradução dessa mesma ambivalência – algo que,
por exemplo, e ainda como máxima conquista, Breccia havia feito em relação a
Lovecraft, com o seu Los mitos de Cthulhu
-, do que na re-mediação e re-formulação dos mesmos elementos numa história
mais coesa.
Isto significa que, tal como ocorrera nas outras adaptações de
Lovecraft – e julgamos não ser um erro tremendo nem deletério considerar que a
abordagem ao livro de Chambers se faz sob o signo daquele escritor, mais tardio,
de weird fiction -, Culbard impõe um
grau de maior clareza, legibilidade e direcção. O que é corroborado mesmo pelo
seu estilo de desenho, composição, cor, e até mesmo da gestão dos textos em si,
da forma como coloca as citações da peça maldita, os diálogos, e a total
ausência de uma voz de um narrador externo. Quando existem legendas, são apenas
diálogos deslocados do espaço de enunciação, criando continuidades temporais e
espaciais, logo reforçando a sua unidade diegética.
Cada
um dos contos de Chambers foca uma personagem que, de uma maneira ou outra, se
depara com um misterioso e proibido livro intitulado The Yellow King. Trata-se, aparentemente, de uma peça teatral,
curta, de dois actos, que se refere a um estranho reinado num outro planeta, da
Dinastia de em Carcosa, oculto algures no universo, mas que exerce uma estranhe
a satânica influência na Terra. E a figura central desse estranho poder é o “Rei
de Amarelo”. Os quatro contos unidos nessa referência mostram fragmentos de
alguns dos diálogos, ou pormenores da sua história, mas nunca é apresentada na
sua completude. O que se sabe é que a leitura do segundo acto, que revela os
abissais segredos do mais profundo desassossego e terror existencial, leva os
seus leitores a uma loucura, em vários graus de força. Algumas das personagens
dos contos ficam loucas ao lê-lo, outras parece terem já escapado, mas vivem
sob a sua terrífica influência.
Artistas,
artesãos, casais apaixonados ou mergulhados em triângulos fatídicos, estranhas
personagens que atravessam os medos e noites dos protagonistas (muitas vezes
assumindo características físicas de “estrangeiros” mais ou menos genéricos que
apontam a uma constante algo xenófoba presente em Chambers e Lovecraft) pululam
nestes escritos, mas Culbard tece uma linha que os torna uma pequena família. O
protagonista de “The Yellow Sign”, o mais onírico e maravilhoso dos contos,
torna-se o mesmo que encontra o seu fim, uma morte transcendente nas mãos do
Rei de Amarelo, em “In the Court of the Dragon”, tornando portanto este conto
na continuação e corolário do anterior. Além disso, essa personagem é amiga
pessoal dos protagonistas de “The Repairer of Reputations”, uma espécie de
ficção política-conspirativa com laivos de fantasia, e dos de “The Mask”, que
parece ser o único (se isto é possível dizer) “conto feliz” do volume, ainda
que se revista de contornos trágicos, horrendos, e de uma abominável ciência
artística. Portanto, Culbard, ao instituir este simples mecanismo de união
entre as personagens, traz um nível acrescido de agregação dos contos numa
espécie de universo diegético unido, algo que poderá ter aprendido,
naturalmente, no próprio meio da banda desenhada.
Em
relação aos livros anteriores, as adaptações de Lovecraft, não há grandes
alterações em termos de metodologia. Temos um livro cuidado, competente, numa
variação actual e convencional da linha clara. A legibilidade está acima de
tudo. Parece que o autor opta particularmente por representar aqui as
personagens com olhos muito grandes, e apenas compostos pelas íris coloridas,
sem pupilas, o que lhes incute um ar alucinado, maravilhado, assustador e
tétrico, à vez, conforme os contextos e ou os outros traços de expressividade.
Uma
adição à pequena “biblioteca” de adaptações da literatura estranha, que poderá
mesmo ser visto como um projecto coeso em si mesmo, mas que merece igualmente
ser pensado em contraste com outros projectos comparáveis, como já havíamos
indicado.
Nota
final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro. Imagens colhidas da internet.
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