Esta
nova série de livros do autor faz já parte de um corpo de trabalho
mais alargado. Trata-se de um projecto de longa duração que entrosa
a autobiografia com interrogações de cariz político sobre a
história da Japão, nomeadamente uma crítica acerba e musculada de
um posicionamento insustentável de uma certa superioridade e
excepcionalidade do povo japonês face às suas relações históricas
com outros povos, desculpando o seu imperalismo e nacionalismo,
violento, e cujas consequências ainda se fazem hoje sentir nas suas
relações bilateriais com as antigas colónias ou países agredidos,
como a Coreia, a China ou a Tailândia. A desresponsabilização do
Japão em relação a esses crimes (até certo ponto, similar à
desculpabilização que Portugal ou os portugueses fazem às suas
antigas colónias), muitas vezes expressas pela sua classe política
e alguns sectores da cultura popular, faz com que a missão de Mizuki
seja urgente. (Mais)
Shigeru
Mizuki, nascido em 1922, é veterano da Guerra no Pacífico, logo
este tipo de relato é fortalecido, em parte, pela sua inscrição
como autobiografia, mesmo que o seu escopo seja de alcance
internacional. Isto é, o autor não se atem somente a relatar o que
ia sucedendo na sua vida pessoal, à escala das suas experiências,
mas vai apresentando-o como parte integrante de todos os conflitos
não apenas no Pacífico mas em todos os palcos do conflito global,
inclusive as frentes da política doméstica e internacional. O livro
utiliza episódios da vida familiar do autor, nas partes mais
“leves”, digamos assim, emprega uma das suas personagens
recorrentes – Nezumi-Otoko, ou “Homem Rato”, da série GeGeGe
no Kitaro [v. última imagem] - para criar diálogos ficcionais mas enquadrando o
contexto histórico, notas explicativas de estratégias militares,
armamento, decisões políticas, situações sociais e ainda
dramatizações de acontecimentos da história pública, criando uma
complexa textura de linhas narrativas. A integração de mapas,
esquemas de avanços e recuos militares, imagens que atravessam as
duas páginas, como um spread, mas ainda assim enquadradas nas
vinhetas (uma forma que remete na verdade à típica encadernação e
emolduramento dos livros de imagem do século XIX no Japão), trazem
níveis de interacção entre as partes mais propriamente narrativas
e aquelas mais expositivas que reforçam a pertinência tanto de
focar a história pela perspectiva individual do autor como informar
essa mesma experiência pelo tecido colectivo.
Tendo
perdido o seu braço esquerdo, sofrido de malária e outros problemas
que se manteriam a vida inteira, Mizuki não pode fazer parte, de
forma alguma, daquele grupo de japoneses (e weeaboos) que olha
para o período da II Guerra Mundial como um momento de “perda” e
“humilhação” face às forças internacionais (seja do
imperalismo ocidental ou do comunismo internacional), mas explora as
razões e responsabilidades dos próprios poderes do Japão. Nesse
sentido, e como tão bem explica Frederik L. Schodt nas suas
introduções a estas edições norte-americanas, Mizuki é um autor
que ombreia Keiji Nakazawa e Osamu Tezuka no sentido de autores que
tiveram a experiência da guerra e não se coíbem de a olhar e
contextualizar com uma grande franqueza, mesmo que isso signifique
criar um j'accuse em relação ao próprio Japão.
Tendo
trabalhado como artista de kamishibai,
o autor está mais do que habituado, e de forma directa, a
compreender o que interessará de forma viva o seu público imediato,
e não é de surpreender que ele seja conhecido por toda uma série
de histórias que rondam o folclore fantástico japonês – aliás,
recuperam mesmo, tendo sido em grande parte Mizuki, antes da
animação, a trazer de volta os
yokai
, ou as figuras de um folclore fantástico local, para as suas
histórias. Ele tem mesmo uma enciclopédia dessas criaturas, mas é
provavelmente GeGeGe
no Kitaro
o título mais famoso, que foi sendo trabalhado ao longo da década
de 1960 (veja-se igualmente NonNonBâ).
Um dos aspectos curiosos é que a divisão entre comercial e
alternativo, para Mizuki, pode fazer sentido em termos de
topicalidade, mas não se abordagens estilísticas nem, claro está,
da própria pessoa. Ao passo que aquela série juvenil daria origem a
todas as adaptações expectáveis, Mizuki estaria envolvido
igualmente com a “vanguarda” do seu círculo, ou pelo menos, numa
atitude preocupada em criar bandas desenhadas com uma inclinação
política mais engajada e contrária aos discursos hegemónicos do
seu tempo, já que produziria alguns trabalhos para a Garo,
onde, de acordo com Paul Gravett, Yoshiharu Tsuge chegaria a ser seu
assistente.
Ora,
na senda dessas transformações ou desdobramentos internos, na
década de 1970, Mizuki começou a trabalhar em outras frentes que
não o fantástico, e aproximando-se do seu interesse pela 2º Grande
Guerra, a não-ficção e até mesmo a autobiografia. O seu primeiro
projecto deste grupo de trabalhos seria aquele livro traduzido em
inglês como Onwards Towards Our Noble Deaths, seguido da
biografia de Hitler e finalmente chegando a esta longa História do
Japão, originalmente produzida entre 1988 e 1989. Seguir-se-ia Life
of Mizuki, também recentemente publicada em língua inglesa
pela D&Q.
Se bem que por vezes nos deparemos com algumas leituras
da obra de Mizuki como pertencendo ao campo do “entretenimento
educativo” ou edutainment,
estamos em crer que Mizuki atinge outro nível de complexidade, não
apenas por esta urgência política a que os seus livros obrigam mas
também pelas questões criadas pela forma do seu trabalho. Se
podemos dizer que existem momentos mais “leves”, eles passam pelo
facto de Mizuki se mostrar a si mesmo – será genuíno, verdade,
exagero? - como um verdadeiro borra-botas simplório, incapaz de
seguir algumas regras básicas de obediência militar, sendo o
palhaço do grupo, estando sistematicamente a ser mal-tratado pelos
oficiais (com menor ou maior razão, “militar”)... Mas ao mesmo
tempo é isso que aumenta a simpatia da personagem, o foco humanizado
da obra e, ao mesmo tempo, que reforça a ideia retórica de que
depois qualquer das suas acções heróicas, como o acto de sobrevivência, a relação humana e calorosa com os pobres habitantes
da ilha, etc., seja vista sob uma luz benfazeja e significativa.
O
jovem investigador holandês Rik Spanjers tem feito vários trabalhos
em torno da representação história pela banda desenhada, estudando
o modo como a escolha de sistemas estilísticos, como o naturalismo
ou realismo, ou abordagens mais estilizadas, desde logo informam
certas atitudes ou valorizações políticas em relação aos
tópicos. Numa apresentação recente em Amsterdão, Spanjers
discutiu a mistura de estilos na superfície de um mesmo trabalho, ao
abordar a obra de Shigeru Mizuki. Seguiremos aqui algumas das suas
lições.
Como
explica Spanjers, apesar de alguns desses livros poderem ser
irmanados por temas recorrentes, ou melhor, por se tecerem em torno
da experiência autobiográfica de guerra de Mizuki (ele foi colocado
pelo exército japonês em 1941 em Rabaul, hoje Papua Nova Guiné,
durante os períodos mais dramáticos dos conflitos entre os Estados
Unidos e o Japão, numa intensa guerra envolvendo forças navais,
aéreas e terrestres, envolvendo em grande parte a população local,
apanhada a meio), eles podem ser vistos como pertencentes a géneros
distintos. Onwards poderá ser considerado “um relatar
ficcionalizado”, Life of Mizuki uma “autobiografia” mais
concentrada e Showa uma “história do Japão”. Spanjers
cita o realizador de documentários John
Shearman, que em 1946 cunhou o termo de “casamento em tempo de
guerra” [wartime wedding]
para se referir a uma aliança entre dois estilos aparentemente
contrários de fazer cinema na época, ou então bastante distintos
para se pensar que não seria possível uma aproximação e muito
menos uma junção: os documentaristas utilizando algumas das
técnicas acessíveis apenas em estúdio, e os realizadores de ficção
procurando na realidade elementos que pudessem trabalhar. Spanjers
“traduz” esta ideia para a banda desenhada, e encontrando em
Mizuki um exemplo paradigmático, para falar de uma permanente
negociação entre o fotorealismo e o esquematismo. O que é
surpreendente, porém, é que o autor japonês não procura destilar
ambos os estilos, ou criar um casamento alquímico e transcendente;
por isso é que falamos em negociação. Esses estilos podem ser
distribuídos ao longo das páginas dos livros ou, por vezes, serem
partilhados numa mesma imagem, seja spread,
prancha ou apenas vinheta.
Existem
passagens em que se separam vinhetas grandes, de cenas de batalhas,
desenhadas com texturas obsessivas, detalhes quase barrocos, e outras
onde surgem as personagens debuxadas com meia dúzia de linhas. Mas
há muitos outros momentos onde, numa mesma imagem, se criam
travessias entre esses estilos. E se as imagens mais realistas podem
fazer recordar alguma daquela banda desenhada de guerra que seria
cultuada ao longo dos anos 1940 a 1960, sobretudo no mundo ocidental,
os personagens-diagrama são totalmente devedores das abordagens
simplificadas da mangá moderna para cuja “gramática” o próprio
Mizuki seria um contribuidor de peso.
O
uso de personagens desenhadas de modo quase diagramático levam a que
se tornem em cifras de absoluta legibilidade, assim como de um
dinamismo, identidade veloz, e funcionabilidade inegáveis. Nada
disto tem a ver com a suposta “teoria da identificação”,
proposta por Scott McCloud e outros dos seus seguidores, na ideia de
que uma personagem desenhada de forma simplificada funcionaria melhor
para atrair a identificação do leitor. A nosso ver, essa teoria não
é mais do que uma espécie de desculpa facilitista em abordar a
potencial análise artística de um trabalho, e por mais “mágica”
que essa noção se pareça, ela não tem qualquer poder explicativo.
Mais, essa noção falha mesmo na compreensão do sucesso de muitos
exemplos de banda desenhada que não respeitam esse princípio
gráfico, assim como o insucesso ou parcial felicidade de outros que
aparentemente o fazem. Poder-se-ia pensar que esse uso seguiria uma
distribuição clara entre personagens representando os japoneses,
por um lado, e, por outro, os “outros”, sejam os soldados
inimigos, principalmente norte-americanos, e os habitantes das ilhas
ocupadas. Mas isso não corresponderia à verdade. Ainda que não
possamos passar por cima de uma certa representação das personagens
negras como obedecendo a toda uma série de esquemas
pré-determinados, estereótipos problemáticos, que complica uma (impossível) leitura neutra, no
interior da economia de Mizuki tenta-se uma humanização de todas as
personagens através da atribuição de voz a todas elas, à criação
de situações em que os seus desejos e e medos são expostos, ou à
oportunidade em as colocar em diálogo directo entre si, matizando
essas mesmas relações e representações. A desumanização
completa do outro, em vigor no Japão belicista, é estudada ao longo
da obra: criada por sistemas extremamente efectivos de propaganda,
dispensados pelos meios de comunicação social, a escola, e mesmo a
cultura popular ou o discurso diário, quotidiano, na rua, que faz
com que a pressão dos cidadãos convertidos por essas ideias os leve
a olhar, de imediato, aqueles que estavam menos convencidos como
cobardes ou, na pior das hipóteses, traidores.
A
criação dos fundos realistas, detalhados, quase texturados em
termos de representação naturalista, todavia, não surgem aqui para
criar um qualquer efeito de referencialidade. Não estamos aqui a
falar das estratégias sobejamente conhecidas dos cultores da “linha
clara” tão fomentada na banda desenhada franco-belga clássica.
Bem pelo contrário, pela economia de representação e gestão
narrativa da própria obra, essas representações acabam por servir
como disruptoras, como desestabilizadoras, desmitisficadoras dessa
mesma realidade. Em vez de se aproximarem da suposta “objectividade”
ou “transparência” do meio fotográfico, uma forma de
representação mecânica e automática, ela serve um processo de
distanciamento e des-naturalização, até mesmo de criação de
momentos icónicos arrancados à urgência do tempo – isto é, da
sua duração, que é como quem diz, da experiência à escala
humana.
Afinal,
se o projecto de Mizuki é precisamente desmistificar a guerra, não
querendo apresentá-la de forma alguma como uma oportunidade para
glórias, sejam elas individuais ou colectivas, mas sim demonstrar a
desumanização perpetrada pela “máquina da guerra”, começando
pela sede de poder das cúpulas militares e terminando na
desresponsabilização da soldadesca, esse programa encontra uma
forma sublinhada neste seu paradoxal emprego de estilos
contraditórios. Na verdade, e ainda influenciados pela brilhante
leitura de Onwards Towards Our Noble Deaths por Rik Spanjers,
o realismo pseudo-fotográfico em Mizuki está mesmo do lado da
morte, na natureza morta, da destruição. Como escreve o
investigador, “a impossibilidade da representação [é] fornecida
através de uma representação falhada [failing].”
Não
podemos fazer aqui uma análise cuidada e detalhada de todas as
estratégias de representação, e a sua distribuição pelos
episódios narrativos e relação com a faixa textual. Spanjers faz
desde logo esse trabalho, e de modo pormenorizado demonstra como essa
mesma distribuição é significativa e tem um papel decisivo em
termos éticos, no projecto do autor.
Não
tendo lido o último volume, que se estende até ao (então) presente
do autor, desconhecemos que tipo de investigação se fará sobre as
consequências a longo prazo desta interrogação sobre a História.
O título, em quatro monumentais volumes (datando de 1926 a 1989, com
mais de 500 páginas cada um), com introduções curtas mas
iluminadoras, pejados de notas explicativas das personagens
históricas e pormenores da cultura da época, é uma história
pessoal de um país e de uma cultura, um exercício pleno de
cidadania que procura perscrutar o lado negro de uma “alma
nacional”, os crimes a que ela levou, mas, ao mesmo tempo, à
possibilidade de que, através da interrogação no presente e à
responsabilização do próprio, se possa avançar para, não tanto o
saneamento da história, mas pelo menos à formulação das condições
necessárias a um diálogo são e pacífico.
Nota
final: agradecimentos a Filipe Abranches, pela troca e empréstimo
dos volumes, e a Rik Spanjers, pela troca de ideias e
disponibilização do seu paper.
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