E se a noite não fosse
habitada por monstros nem inquietações ou ansiedade, e fosse
simplesmente o momento de nos abandonarmos a uma fuga por entre
paisagens, onde decorrem festas e encontros? Esta é uma pergunta que
é colocada pelo homem desde que a consciência humana emergiu,
provavelmente, e são os autores da literatura e do cinema infantil
que mais têm respondido. O livro de Liao é uma outra dessas
respostas. (Mais)
Liao é um ilustrador que
gosta de explorar todo o espaço de composição a que tem acesso, e
particularmente parece apreciar preenchê-lo através das mais
apertadas texturas e superfícies que transmitem sensações tácteis,
em cores vivas e alegres que se contrastam ou complementam, mas
sempre se celebram. O seu trabalho a preto-e-branco (ou de cizentos,
ou cores mais contidas) faz com que a qualidade háptica da sua obra
se saliente, e, de certa forma, se crie um mecanismo de concentração
temática e conceptual.
Se existem afinidades com
outros autores nesse aspecto, elas poderão ser mais formais do que
narrativas, temáticas ou contextuais. Por exemplo, a forma algo
tranquila como as paisagens e os objectos são criados, mas com uma
presença carregada de texturas contrastantes (o pêlo do coelho
gigante, os troncos das árvores, a erva alta, os corsários da
protagonista, e mesmo os leves borrões das nuvens), poderiam
recordar a composição de Edward Gorey. Mas onde este último é
obsessivo, e cujo propósito é um ambiente inquietante, as largas
áreas em branco de Liao, e a aliança a um passeio nocturno
sossegado, torna essa fluidez mais sentida.
Em relação ao livro anterior publicado pela Kalandraka, Segredos na floresta
parece estar dirigido a um público mais jovem (o que não impede,
como é óbvio, a transversalidade dos públicos). Há uma maior
concentração de espaços, de tempo e de personagens, mas
precisamente para depois poder deixar soltar as amarras à narrativa.
Afinal de contas, é algo que possui uma estrutura clássica: o
passeio onírico. A noite inicia-se e convida os protagonistas a
atravessar as paisagens às quais o sonho se abre, e depois desse voo
o regresso ao mundo da vigília ou é garante de uma lição, ou de
uma profunda sensação de felicidade, ou até de alívio, ou então,
como é o caso subtil de Segredos, à possibilidade da
confusão desses territórios usualmente separados.
Bastará pensar na
“trilogia” de Sendak, também publicada pela Kalandraka, para
encontrar exemplos máximos dessa viagem e voo (por isso, falámos de
“alívio” no regresso, pois Sendak explora com mais intensidade a
angústia), mas também em filmes como The Snowman de
Briggs-Murakami, literatura como a Alice, etc.
Na sua esmagadora maioria,
as páginas apresenta-se em spreads, e mesmo quando a imagem
se isola numa das páginas, cria-se sempre a ilusão de uma paisagem
panorâmica e mais alargada, seja ela interior ou exterior. A matéria
verbal é sempre deixada numa margem ou espaço isolado, não porque
pudesse conspurcar a parte visual, mas porque se deseja concentrar na
sua estrutura mínima, e logo, na sua precisão semântica. Muitas
vezes as frases estabelecem questões respondidas ou intuídas pelas
imagens, outras poderá repetir ou tornar clara a sensação interna
da protagonista face aos comportamentos que testemunhamos, outras
tantas abre-se antes a uma interrogação mais profunda e
interrompida em termos do significado final. E são esses mesmos
momentos, talvez, aqueles que criam a lição de ferro do livrinho.
Porque não imaginar que os objectos quotidianos, como a passadeira
numa rua, possam ser os pontos de passagem de uma floresta onírica?
Que o negrume da noite é o pêlo de um animal imenso mas delicado?
Porque não imaginar que o assobio do vento à janela é um convite a
um passeio?
Nota final: agradecimentos
à editora, pela oferta do livro.
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